Inconstitucionalidade dos cirimes de perigo abstrato

Por jose soares junior | 21/01/2013 | Direito

INCONSTITUCIONALIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO FRENTE O PRINCIPIO DA OFENSIVIDADE

Com a acrescente da criminalidade e a sensação de impunidade fazem insurgir na sociedade contemporânea uma forte aspiração por legislações penais mais rígidas, pois, hoje não se tem outra punição mais gravosa do que privar o individuo de sua liberdade.

O legislador ordinário, em um tentame de apaziguar tais anseios, elabora desenfreadamente normas penais, em muito, sem se preocupar com os princípios orientadores do Direito Penal, adotando como solução para o problema a criminalização desmesurada, ao invés de aprimorar e dá efetivação ao sistema penal já existente.

Diante de uma impotência legislativa em promover a otimização da função social do direito penal vigente, que é de proteção dos bens juridicamente relevantes à coletividade de condutas danosas, e promover a ressocialização, proporcionando ao individuo reingresso na sociedade, após cumprir sua pena, preocupou-se em criar tipos para somente reprimir e não educar.

4.1 As faces do Principio da Ofensividade

Não é por acaso que o principio da lesividade ocupa lugar de destaque nas principiais discussões jurídicas, pois, ao enxertá-lo no texto Magno o constituinte vincula a persecução penal aos seus ditames, visto que a insuficiência de real conteúdo ofensivo não merece tolerância penal.

Importante postura defende o professor Luiz Flavio Gomes (2002 p. 28) que em outras palavras afirma que o principio de lesividade assume uma função político criminal e uma função interpretativa. Na primeira serve de paradigma para a feitura do tipo penal criminalizador da conduta, representando barreira limitadora do jus puniendi do estado, dirigindo sua influencia ao legislador.

Em uma segunda configuração, tem ares interpretativos, incidindo diretamente no interprete da lei penal (jus poenale), caso o legislador não cumpra sua função de selecionar condutas danosas esse oficio é repassado ao juiz ou ao interprete.

Assim, o principio da ofensividade na linha do referido autor dentro de um aspecto político- criminal assumi três dimensões, “a de impedir o arbítrio e a degeneração do poder punitivo”, ou seja, que não há lugar para um direito penal meramente restrito ao dever de punir, mas também de selecionar os bens que realmente são passiveis de sua proteção.

Em uma segunda dimensão, “servi de barreira contra abusiva expansão do direito penal”; quer dizer que o principio tem o condão garantista, pois funciona como obstáculo a uma dilatação exacerbada do direito penal, evitando um direito penal máximo.

Em terceira dimensão, “a de permitir o controle do conteúdo da lei penal”, quer dizer, ponderar a extensão do grau de ofensa da conduta, mensurando o nível de reprovabilidade da ação ou omissão, e eleger o objeto de proteção do direito penal, (bem jurídico).

4.2 Crimes de perigo abstrato e o núcleo de sua inconstitucionalidade

Ao perseguir condutas sem o condão de trazer dano a terceiros e sabendo que a potencialidade lesiva de uma conduta delituosa é condição sine qua non para o agente ser responsabilizado penalmente por seus atos, e assim responda junto ao Estado juiz pelo crime praticado, a Constituição sofreu grave violação ao se perseguir condutas não materializadas, até porque o individuo não é punido pelo que é mais pelo que faz.

Luiz Flavio Gomes entoa o seguinte argumento nesse sentido:

Para o Direito penal do Estado Constitucional e Democrático de Direito somente interessam as condutas (ação ou omissão) exteriorizadas, que comportam visibilidade perceptibilidade sensorial [...] “(a) ninguém pode ser castigado por seus pensamentos desejos ou intenções (b) a forma de ser da pessoa, sua própria personalidade, não serve de fundamento para responsabilidade criminal ou mesmo para o agravamento da pena” (Gomes 2002, p.39)

Na escolha dos crimes de perigo abstrato para proteger bens tutelados pelo direito penal, que deveria ser a ultima saída, e assim rechaçar condutas sem potencialidade lesiva, a atividade legiferante transgrediu grosseiramente os principio Constitucionais da intervenção mínima, culpabilidade, fragmentariedade, alteridade, materialização do fato, exclusiva proteção dos bens jurídicos, e o da ofensividade, onde este ultimo, é base para a elaboração de qualquer imperativo penal.

Como base nos conceitos desenvolvidos nos capítulos anteriores, os delitos de perigo abstrato são aqueles em que a pretensão punitiva se eleva para repelir a mera desobediência a normas jurídicas. Visto que há um juízo de reprovação ex ante que dá fundamento aos delitos de perigo abstrato, prescindindo da verificação, na conduta punível, da probabilidade de dano que importe em perigo para a vida social.

Nestes tipos de crime, o perigo não é elementar do tipo, ao contrário dos crimes de perigo concreto, sendo apenas a motivação para sua criação, quer dizer com isso, que estando a probabilidade de dano presente ou não, estará configurado o crime.

Os delitos de perigo presumido trazem consigo justamente a possibilidade de o individuo ser punido por uma presunção de perigo (iure et de iure) a um bem jurídico, onde a simples atividade passa a ser o núcleo do injusto, e a tutela do bem jurídico resta potencializada, se não vejamos, o artigo 306, do CTB [1], não exige para a sua configuração, prova da ameaça de dano, bastando somente a pratica da conduta.

O STJ em um dos seus julgados ratificado pelo STF prezou-se pela existência desses delitos no tipo penal em comento.

HABEAS CORPUS Nº 109.269 – MINAS GERAISHABEAS CORPUS. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ALEGAÇÃO DE QUE, POR SE REFERIR A CRIME DE PERIGO ABSTRATO, O ART. 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO NÃO É ACEITO PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. NÃO CABIMENTO. DANO POTENCIAL. DESNECESSIDADE. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DENEGADA.

1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de reconhecer a aplicabilidade do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro – delito de embriaguez ao volante –, não prosperando as alegações de que o mencionado dispositivo, por se referir a crime de perigo abstrato, não é aceito pelo ordenamento jurídico brasileiro.

2. Esta Corte Superior de Justiça entende que, com o advento da Lei nº 11.705/08, inseriu-se a quantidade mínima exigível de álcool no sangue para se configurar o crime de embriaguez ao volante e se excluiu a necessidade de exposição de dano potencial, sendo certo que a comprovação da mencionada quantidade de álcool no sangue pode ser feita pela utilização do teste do bafômetro ou pelo exame de sangue, o que ocorreu na hipótese dos autos. 3. Habeas corpus denegado.”

Dentre os doutrinadores pátrios também encontramos aqueles que são favoráveis e existência dos crimes de perigo abstrato, onde podemos citar como expoentes, Fernando Capez, (2008, p.24), afirmando que é justificável a proteção dos bens jurídicos pelos crimes de perigo abstrato como legitima estratégia de defesa, tratando-se de cautela na proteção de certos bens.

No entanto, apesar do Pretório Excelso, Suprema Corte e do renomado autor manifestarem posicionamentos favoráveis sobre a Constitucionalidade dos referidos delitos, a maioria da doutrina moderna refuta o reconhecimento do perigo abstrato, em razão da adoção, pela Constituição Federal, do princípio da lesividade, que pode ser extraído, implicitamente, do artigo 98, I, da Lei Fundamental.

Esse dispositivo trata dos Juizados Especiais Criminais que determina a sua competência para as infrações penais de menor potencial ofensivo, deixando evidente a exigência mínima de ofensividade na conduta, para que essa seja considerada fato típico.

Em consonância com destacado preceito, também conhecido como princípio da ofensividade do fato, para que se cogite a ocorrência de fato punível é imprescindível que o comportamento do agente atinja concretamente, ou pelo menos proporcione perigo de dano ao bem jurídico tutelado pela norma (nullum crimen sine iniuria).

Nessa esteira, o princípio da lesividade guarda intrínseca relação com a concepção dualista da norma penal, de forma que além de se exigir um desvalor da conduta, também é indispensável o desvalor do resultado naturalístico, o que só se verifica com a afetação do bem jurídico ou de um perigo concreto.

Em consequência, os delitos de perigo abstrato como sendo aqueles em estágio de latência, ou seja, embrionários, não trazem em sua essência potencialidade lesiva necessária para que haja reprovabilidade suficiente para causar dano a um bem juridicamente tutelado pelo direito penal, não guardando ligação com delito.

Luiz Regis Prado elenca as principais funções desempenhadas pelo Bem Jurídico, com o fim de selecionar as situações que realmente tragam prejuízo, e legitimem a incidência das normas do estatuto repressor.

Função de garantia: o bem jurídico é erigido como conceito-limite na dimensão material da norma. Essa função de caráter político-criminal restringe o jus puniend estatal e indica que não se pode descurar do sentido informador do bem jurídico na construção dos tipos penais. - Função Teleológica: como um critério de interpretação dos tipos penais, que condiciona seu sentido e alcance à finalidade de proteção de determinado bem jurídico como conceito central do tipo. - Função individualizadora: como critério de medida da pena, no momento concreto de sua fixação levando-se em contra a gravidade da lesão ao bem jurídico (desvalor do resultado)- função sistemática: como elemento classificatório decisivo na formação dos grupos de tipos da parte especial do código penal. Os próprios títulos ou capítulos da parte especial são estrutura com lastro no critério do bem jurídico em cada caso pertinente. Para que o bem jurídico possa bem cumprir o seu papel protetivo em uma sociedade democrática, deve a lei penal respeitar sempre os princípios penais de garantia. (PRADO, 2008, p.137, grifos do autor)

Sem embargos, o posicionamento da maioria esmagadora da doutrina é de combate veemente aos crimes de perigo abstrato, por este não se verificar no caso concreto, divergindo escancaradamente dos posicionamentos sustentados pelo Supremo Tribunal Federal, e do Superior Tribunal de Justiça, onde comungando com os tribunais referidos os doutrinadores estriam de igual forma diante de violação inaceitável dos princípios Constitucionais penais.

Os argumentos da doutrina podem ser resumidos nos moldes de Bittencourt apud Dotti.

São inconstitucionais os crimes de perigo abstrato, pois no âmbito do Direito Penal do Estado Democrático de Direito, somente se admite a existência de infração penal quando há efetivo, real e concreto perigo de lesão a um bem jurídico determinado. (BITTENCOURT apud DOTTI, 2009, p. 406).

Ao invés de fazer uso dos crimes de perigo presumido, para a proteção de bens jurídicos, estariam mais resguardados e de acordo com a proposta constitucional, se legislador e o aplicador do direito se valessem de outros ramos do Direito, como o Direito Civil, o Direito Administrativo e o Direito Tributário, pois ponderariam a gravidade da conduta com a responsabilização do individuo, sem que o estado tivesse privar o individuo de sua liberdade, para repelir o ato ilícito.

O Direito penal, nesse particular, mostra-se, inadequado e muito oneroso para o sujeito, tendo em vista a desproporcionalidade e a incompatibilidade da conduta do agente e a reprimenda que lhe é aplicada no caso concreto, e as seguelas de eventual encarceramento, por incorrer em tipos que descrevem condutas perigosas.

É de bom aviltre ressaltar, que a morosidade da justiça penal, por si, desde o inicio da ação penal, seu trâmite, até a sentença já se torna tão desgastante quanto à aplicação das penas para esses delitos, levando em conta o grau de reprovabilidade das condutas.

Fazendo uma analise antecipada, ou seja, prospectiva dos atos do individuo que não tragam possibilidade concreta de perigo, quiçá de dano, o legislador exerceu um juízo prévio de condenação, onde a presunção de inocência foi descartada ao se elaborar um tipo penal incriminador, que foge da sua função primária de proteção dos bens jurídicos de maior relevância, havendo uma incompatibilidade material com o texto Constitucional.

Ao que parece, o legislador pátrio ao elaborar as normas disciplinadoras dos crimes de perigo presumido não incorporou o espírito Neo Constitucionalista do Estado Democrático de Direito, onde, só se tem lugar para um Direito Penal Mínimo, subsidiário, complementar, e não um Direito Penal Máximo que em nada se firma nas bases principiológicas de um direito penal garantista.

Na esteira principiológica trazida pela nova ordem Constitucional, a ofensividade da conduta humana torna-se neste azo, componente implícito integrante do tipo penal, sendo corolário para a aferição de outros pré-supostos justificadores da ingerência do direito penal na conduta, como a intervenção mínima, fragmentariedade, intranscendencia e culpabilidade.

Assim sendo, nessa linha de raciocínio, temos que o mandado de criminalização de uma figura abstrata viola os paradigmas da lesividade, punindo previamente condutas ainda que não tenha de fato se concretizado a violação ao bem jurídico e nem se sabe se isso irá acontecer.

Pelo exposto, de forma sintética, os presentes argumentos demonstram a falibilidade de se sustentar no direito penal a aplicação dos crimes de perigo abstrato ante sua não recepção constitucional, pois não há como se formar o tipo de subsunção material da figura criminosa fundando na idéia (presuntiva) de que a lesividade dos bens jurídicos penais foram atingidos. Se se adotar esse referencial, acaba-se alargando por demais as figuras criminosas. Não sendo esta a idéia do legislador constituinte.



[1] Cf. artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro