Imunidade Parlamentar e EC n°. 35/2001: inconstitucionalidade ou limitação necessária?

Por Nayara Lacerda | 07/12/2015 | Direito

RESUMO

A Constituição da República de 1988, por meio da imunidade parlamentar, assegura aos deputados e senadores ampla autonomia e liberdade no exercício de suas funções, protegendo-os, assim, de possíveis limitações e arbitrariedades por parte dos poderes Executivo e Judiciário. No entanto, há uma série de fatos que configuram abusos dessa garantia por parte dos parlamentares. Diante disso, foi criada a Emenda Constitucional n°. 35, de 2001, tendo como propósito a limitação da amplitude dessa imunidade, especialmente da imunidade formal, de modo a impedir a ocorrência de tais abusos.Porém, esta emenda retira do Poder Legislativo a autorização que se fazia necessária para o início de processo contra parlamentares perante o Poder Judiciário. Diz-se, então, que tal emenda é inconstitucional, tendo em vista que constituiria uma afronta ao princípio da separação dos poderes. Nesse cenário, torna-se indispensável analisá-la, de modo a verificar a existência ou não dessa afronta à Constituição, bem como mostrar um posicionamento razoável acerca dessa questão.


Palavras-chave: Imunidade Parlamentar. Emenda Constitucional n°. 35/2001. Princípio da Separação dos Poderes. Inconstitucionalidade.

1. Introdução

Entende-se por imunidade parlamentar as prerrogativas irrenunciáveis atribuídas aos membros do Poder Legislativo, a fim de que eles possam exercer suas funções com autonomia e independência, protegendo-os contra processos judiciários tendenciosos ou prisões arbitrárias.
A Constituição de 1988 prevê que “Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Ademais, parlamentares não podem ser presos, desde a expedição do diploma, salvo em flagrante de crime inafiançável, e o Legislativo tem a prerrogativa de sustar processos que envolvam parlamentares perante o STF.
Tal imunidade mostra-se indispensável à democracia, uma vez que a representação parlamentar reflete o princípio fundamental da soberania popular, que determina que todo poder deve emanar do povo. Para que essa representação parlamentar esteja em conformidade com com a soberania popular, os membros do Parlamento necessitam de proteção e garantia frente às investidas dos demais Poderes. Assim, viabiliza-se a manutenção de um regime democrático e a efetivação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
Entretanto, evidencia-se que esse instituto é, por vezes, utilizado, não como um instrumento essencial à manutenção da democracia, mas como um privilégio, usado de forma irresponsável por seus destinatários. Esse fato ocasionou, então, a criação de uma emenda constitucional com o intuito de frear esse uso desvirtuado das imunidades parlamentares. Diante disso, o presente artigo realizará uma análise desse instituto previsto no artigo 53, CR/88, bem como das alterações por ele sofridas com o advento da Emenda n° 35/01, com o intuito de comprovar uma possível inconstitucionalidade nesta.

2. O instituto da Imunidade Parlamentar

2.1. Espécies de prerrogativas parlamentares

Dentre as prerrogativas concedidas aos membros do Parlamento pela Constituição de 1988, distinguem-se duas espécies: imunidade material e imunidade formal.

2.2.1. Imunidade material

A imunidade material refere-se, segundo Bernardo Fernandes Gonçalves, a uma “supressão da responsabilidade civil, penal, disciplinar ou política dos deputados e senadores por opiniões, palavras e votos”, desde que proferidos em razão de suas funções parlamentares e no exercício do mandato (GONÇALVES, 2001, p. 665).
É incontestável o fato de que a conjuntura do parlamentar em relação ao exercício de sua função exige um tratamento diferenciado. Os membros do Legislativo apresentam-se, conforme Andréa Viana, “em constante necessidade de expor determinadas idéias e opiniões, ao deliberar a aprovação ou não de projetos legislativos de assuntos diversos que, em grande parte, envolvem assuntos polêmicos e interesses múltiplos” (VIANA, 2012).
Diante disso, a utilização de determinadas expressões, nesse contexto, poderiam vir a ser consideradas crime. Todavia, amparada pelo art. 53, CR/88, tal utilização não poderá configurar crime, tendo em vista que, para que a função legislativa seja efetivamente independente, é necessário conceder certa liberdade aos seus agentes, a fim de que realizem suas deliberações de maneira eficaz e coerente aos anseios sociais.
Destaca-se ainda que tal inviolabilidade parlamentar não se restringe apenas ao âmbito do Congresso Nacional. Se o deputado ou senador estiver no exercício de sua função parlamentar, será protegido por essa imunidade em qualquer lugar do território nacional, não sendo considerado autor de nenhum crime por suas opiniões, palavras ou votos.
Assim, não se trata de uma simples disposição normativa que elimina a responsabilidade dos parlamentares. Trata-se, na verdade, de uma norma constitucional que exclui o a punibilidade de determinas condutas praticadas por parlamentares, com o intuito de assegurar o livre exercício da atividade parlamentar, uma vez que esta constitui um dos pilares essenciais ao regime democrático.


2.2.2. Imunidade formal

Esta espécie de imunidade, por sua vez, diz respeito à inviolabilidade dos congressistas no que tange à prisão, bem como ao processo a ser instaurado contra eles. Com relação à prisão, a imunidade formal determina que parlamentares federais, desde a expedição do diploma pela Justiça Eleitoral, não poderão ser presos. A única exceção a essa regra geral é a hipótese de flagrante de crime inafiançável.
Já com relação ao processo, a imunidade formal estabelece, após a EC n° 35/2001, que o STF não precisa mais de licença da Casa Legislativa para dar continuidade a processos contra parlamentar. Entretanto, esta poderá sustar o andamento do processo. Dessa forma, ao receber a denúncia contra congressista, o STF deverá dar ciência à respectiva Casa. A partir dessa notificação, qualquer partido político com representação nesta poderá solicitar a sustação do processo, tendo a Casa Legislativa 45 dias para decidir e, se aceito, deverá informar ao STF quanto a impossibilidade de dar continuidade ao processo.

2.2.Origem do instituto da imunidade parlamentar

Sabe-se que imunidade parlamentar surgiu na Inglaterra, no século XVII, como instrumento de proteção do Parlamento contra arbitrariedades monárquicas. A chamada “Revolução Gloriosa”, representada pelo golpe de Estado contra Jaime II, criou as condições necessárias à instauração de limitações ao Poder Monárquico, subordinando-o ao Legislativo.
Desse modo, o “Bill of Rights” constitui um avanço em relação à independência dos poderes, tendo em vista que propiciou o fim da censura política e das arbitrariedades cometidas pelo Monarca com relação ao Parlamento.
Comprova-se, então, que o surgimento das imunidades parlamentares apresenta estreita ligação com o principio daseparação dos poderes, não podendo ser interpretada como uma garantia personalíssima do parlamentar. É, antes de tudo, uma garantia do próprio Parlamento e da representatividade parlamentar.


2.3. Imunidade parlamentar nas Constituições brasileiras

No Brasil, desde a Constituição de 1824, tal instituto se faz presente. Seu art. 27 trazia a proibição expressa da prisão de deputadosesenadores, salvo em flagrante delito de pena capital, enquanto que, nos demais casos, necessitava-se de autorização da respectiva Casa para que se realizasse a prisão do parlamentar. O art. 28 desta mesma Constituição estabelecia ainda o procedimento para julgamento, determinando que, diante de pronúncia por parte da Casa Legislativa, o magistrado deveria suspender o processo até que a Casa Legislativa decidisse sobre o seu prosseguimento.
As Constituições seguintes também reconheceram tal instituto. Todas previram a vedação à prisão de parlamentares no exercício do mandato, exceto em caso de flagrante de crime inafiançável. Mesmo nos períodos de exceção,houve a manutenção dessa garantia parlamentar, como se evidencia na Constituição de 1937 e na Constituição de 1967, ainda que de formas mais ou menos limitadas.


2.4. Imunidade parlamentar na Constituição de 1988

A Constituição de 1988, por sua vez, consagra tal instituto em seu art. 53, assim redigido originalmente:

Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos.
§ 1º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa.
§ 2º O indeferimento do pedido de licença ou a ausência de deliberação suspende a prescrição enquanto durar o mandato.

Verifica-se que a Constituição de 1988 estabelececondições jurídicas necessárias à independência e autonomia do Poder Legislativo. Todavia, ao estabelecer a necessidade de licença prévia da respectiva Casa relativa à prisão e processo criminal de parlamentar, tal dispositivo abre espaço ao cometimento de abusos por parte do Parlamento. Eis que, desse modo, Deputados e Senadores se beneficiavam, nas palavras do Prof. Maurício Gentil Monteiro, “do corporativismo dos seus colegas – que dificilmente aprovavam a licença requerida pelo STF – utilizando-se dessa modalidade de imunidade para proteger-se da ação judicial, mesmo quando envolvesse crimes comuns, em nada relacionados à atividade parlamentar” (MONTEIRO, 2002).
Diante dessa conjuntura de evidentes impunidades de congressistas, criou-se uma emenda constitucional, que foi aprovada por “unanimidade nacional”, cujo objetivo foi frear tal ofensa à imunidade parlamentar formal.

2.5. Imunidade parlamentar após EC n° 35/2001

Com o advento da Emenda Constitucional n° 35, de 20 de dezembro de 2001, o texto original do artigo 53, CR/88 sofreu algumas alterações:

Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.
§ 1º Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.
§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.
§ 3º Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação.
§ 4º O pedido de sustação será apreciado pela Casa respectiva no prazo improrrogável de quarenta e cinco dias do seu recebimento pela Mesa Diretora.
§ 5º A sustação do processo suspende a prescrição, enquanto durar o mandato.
[...]

Evidencia-se, assim, que o propósito do legislador, ao produzir tal emenda, não foi outro senão evitar que a necessidade de licença prévia da Casa Legislativa para que o STF pudesse processar e julgar crimes cometidos por parlamentarescontinuasse conferindo proteção aos seus membros, permitindo, dessa forma, que estes ficassem impunes em relação aos crimes cometidos.
Segundo Pedro Lenza:

“A imunidade material, mantida pela EC n°. 35/2001, é sinônimo de democracia, representando a garantia de o parlamentar não ser perseguido ou prejudicado em razão de sua atividade na tribuna, na medida em que assegura a independência nas manifestações de pensamento e no voto. Em contraposição, a garantia da imunidade processual, antes da alteração trazida pela EC n° 35/2001, vinha sendo desvirtuada, aproximando-se mais da noção de impunidade do que de prerrogativa parlamentar, o que motivou a sua alteração [...].” (LENZA, 2012, p. 528)

O Prof. Maurício Monteiro declara, então, que:

“Dessa forma, ficou bastante limitada a imunidade formal do parlamentar, eis que será um desgaste político muito grande para o partido tomar a iniciativa de instaurar o procedimento de sustação do andamento do processo criminal no STF. Esse é o raciocínio do poder reformador: a sociedade cobrará muito mais desse partido político e do parlamentar processador, em caso de procedimento de sustação do andamento da ação, do que cobrada do Congresso Nacional como um todo a concessão de licença prévia anteriormente exigida. Garantido estará, então, o fim do uso da imunidade parlamentar formal como instrumento de ‘impunidade’ [...].” (MONTEIRO, 2012)

3. Análise da possível inconstitucionalidade da EC n° 35/2001

Conforme exposto acima, a necessidade de prévia licença por parte da Casa Legislativa para que o STF instaurasse um processo contra um parlamentar, repercutia em graves “anomalias”, uma vez que o instituto da imunidade parlamentar era usado com o objetivo de acobertar diversos crimes cometidos por deputados e senadores.
Desse modo, fez-se necessária a criação da EC 35/2001 com o intuito de limitar esse abuso da prerrogativa constitucional concedida aos parlamentares. Entretanto, o advento dessa emenda fez surgir uma série de criticas quanto a sua possível inconstitucionalidade.
Sabe-se que o princípio da separação dos poderes, consagrado no artigo 2° da CR/88, é de fundamental importância ao funcionamento de um Estado Democrático de Direito. Conforme já postulado por Montesquieu, a tripartição do poder permite a instauração de um instrumento de fiscalização e controle, de modo que o poder seja contido pelo próprio poder, constituindo-se, assim, um “sistema de freios e contrapesos”. Desse modo, evitar-se-ia abusos por parte de qualquer um dos três poderes.
Destaca-se, ainda, a importância dada ao principio da separação dos poderes no ordenamento jurídico brasileiro no artigo 60, §4°, III, que a protege a nível de cláusula pétrea. Dessa forma, não se permite, em hipótese alguma, que ela seja abolida ou mitigada da Carta Magna.
Diante disso, ao retirar do Poder Legislativo a função de conceder licença prévia à instauração de processo por parte do Poder Judiciário, a EC 35/2001 estaria ferindo gravemente o princípio da separação dos poderes. Partindo-se do pressuposto dos “freios e contrapesos” explicado acima, o Poder Judiciário, ao necessitar de licença do Poder Legislativo para julgar e processar parlamentares, estaria, assim, sendo controlado, de modo compatível com o que determina o principio constitucional previsto no artigo 2°, CR/88.
No entanto, ao analisar tal emenda, verifica-se que não há que se falar em ferir tal princípio constitucional, uma vez que, mesmo não sendo necessária sua autorização prévia para andamento do processo contra parlamentares, o Poder Legislativo continua exercendo sua função de fiscalização do Poder Judiciário, por meio da possibilidade de suspendê-lo a qualquer momento até a decisão final. Não se pode dizer, diante disso, que houve uma frustração à garantia da separação dos poderes, quando um poder continua exercendo sua atribuição de se colocar como “freios e contrapesos”, ao fiscalizar o outro.
O que é, de fato, inconstitucional, entretanto, é a utilização abusiva e equivocada de um dispositivo constitucional por parte do parlamentar. É notório que o instituto da imunidade parlamentar não se trata de um privilégio pessoal concedido aos parlamentares. Trata-se, na verdade, de garantias que dizem respeito às funções exercidas pelos membros do Poder Legislativo.
Nesse caso, ao utilizar a imunidade parlamentar para se tornar impune diante do cometimento de algum crime, o parlamentar fere o dispositivo 53, CR/88, uma vez que este é concedido com o único intuito de garantir o bom funcionamento dos Poderes, e não para garantir impunidades. Permitir isso, sim, constituiria uma afronta à Constituição.
Já a alteração trazida pela EC 35/2001, não só não configura uma inconstitucionalidade, como também se mostra de fundamental importância à garantia de que o instituto constitucional da imunidade parlamentar seja utilizado em conformidade com o seu objetivo ao ser inserido na Constituição de 1988, qual seja, o da manutenção de um Estado Democrático de Direito.

4. Considerações finais

Isso posto, não restam duvidas quanto à constitucionalidade da EC n°. 35/2001. Esta não representa de forma alguma uma afronta ao “Princípio da Separação dos Poderes”. Tal emenda se mostra, aliás, como instrumento essencial no controle da utilização da imunidade formal.
É certo que ainda há que se desenvolver outros mecanismos a fim de se limitar ainda mais as impunidades que insistem em ocorrerem. Entretanto, a alteração imposta ao texto constitucional constitui um grande avanço nesse sentido.
Conclui-se, então, que tal emenda não remete a uma inconstitucionalidade. Constitui, na verdade, uma limitação necessária ao instituto da imunidade parlamentar.

BIBLIOGRAFIA


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