IMPEACHMENT É GOLPE?

Por Jean Pires de Azevedo Gonçalves | 09/05/2016 | Geografia

O 18 DE BRUMÁRIO DE MICHEL TEMER


“A história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Inicio este texto com uma das frases mais notáveis e, ao mesmo tempo, vulgares, tamanha a sua força retórica, da tradição humanista nas ciências. A frase é inspirada no clássico “O 18 de Brumário de Luís Napoleão” de Karl Marx e alude de modo irônico a Hegel, para quem os fatos e os personagens de grande importância histórica ocorrem ao menos duas vezes. O mote hegeliano enseja, para Marx, uma paródia da qual a figura de Napoleão III é sua expressão mais burlesca e, ao mesmo tempo, melancólica.


O tema remete aos ecos da Revolução Francesa (1789), cuja luta de classes alçou a burguesia à condição de classe politica dominante. Entre capítulos trágicos e sangrentos, as classes populares prestaram um serviço vital à revolução antes de serem colocadas totalmente de lado. O golpe de estado de 18 de Brumário, protagonizado por Napoleão Bonaparte, jovem general que, à frente de um exército nacional e popular, sua Grande Armée, alastrou as chamas da liberté, égalié, fraternité sobre os resquícios de uma assombrada Europa feudal, arrematou de uma vez por todas os pontos ainda em abertos da trama burguesa no contexto da formação dos Estados modernos.


Ecos que ressonavam nas insurreições de 1848 como uma caricatura contrarrevolucionária da revolução, o bonapartismo. Representante do campesinato, da classe média e do lumpesinato, composição social que também sustentaria, quase um século mais tarde, a ascensão do nazifascismo, o Estado bonapartista foi um instrumento militarizado da burguesia francesa que, de um lado, se colocava acima de todas as classes e, de outro, comprava ou oprimia violentamente o operariado nascente.


Afastada inicialmente a ameaça proletária durante as jornadas de junho, sob o lema “propriedade, família, religião, ordem”, diante de um vazio de poder suscitado por um intrincado jogo de interesses manipulados no tabuleiro ilusório da democracia representativa da Segunda República, onde “cada partido ataca por trás aquele que procura empurrá-lo para frente e apoia pela frente naquele que o empurra para trás” (Marx), e do completo divórcio entre o Executivo e a Assembleia Nacional, a burguesia abdicou de um projeto de poder e apostou todas as fichas, por pura falta de opção, no então presidente Luis Bonaparte – qualificado ironicamente por Victor Hugo com o epíteto de “Napoleão, o Pequeno”, tendo-o por contraste o tio. Este, impossibilitado por determinação constitucional de concorrer à reeleição em um segundo mandato (ainda não havia sido imaginado o recurso do mensalão!) mas rodeado por toda a sorte de velhacos, tramou, conspirou e, enfim, perpetrou um golpe de estado que, a um só tempo, o proclamava Napoleão III e punha fim à república recém-fundada. Mas, para justificar o Estado forte do II Império, o sobrinho, à sombra do insigne sobrenome, pôs em marcha uma política expansionista fadada ao fracasso, como o apoio à fundação de um império católico no México, que resultaria no fuzilamento do imperador fantoche Maximiliano da Áustria, até a derrocada final das idées napoléoniennes, na guerra franco-prussiana.


Deixando o velho mundo para trás e, subitamente, situando-se no Brasil, em pleno terceiro milênio, anos depois dos fatídicos 21 anos de ditadura militar e da promulgação da Carta de 1988, o país viveu uma arrebatadora embriaguez de democracia que logo se desvirtuaria em delirante esbórnia autoritária, onde abaixo da linha do equador tudo é permitido. É neste cenário tropical, triste e sombrio, que os acontecimentos recentes envolvendo o impeachment da presidenta Dilma Rousseff possibilitam pela enésima vez tomar de empréstimo a surrada frase de Marx. Mas, desta vez, em um sentido invertido para, no final, desentortar os termos tortos.


Primeira inversão: a história se repete, a primeira vez como farsa, a segunda como tragédia.


Ao êxtase da primeira eleição direta, em 89, seguiu-se, imediatamente, em 92, o impedimento, não menos entusiástico, do presidente Fernando Collor. Enfim, a sociedade civil manifestava livre e vigorosamente sua vontade soberana ao eleger e destituir um presidente, acusado de corrupção.


Não era senão mera macaqueação (como “hablan nuestros hermanos” argentinos). A inveterada mania de grandeza mimética, ao simular valores copiados do Tio Sam como se fossem nativos, não poderia deixar de ser diferente quanto à democracia e, num curtíssimo intervalo de tempo, após a abertura política, o que fora fruto de um longo e doloroso processo histórico em solo norte-americano, foi resolvido pela Sexta República Brasileira como um desfile carnavalesco de caras-pintadas em cuja apoteose redundou no impeachment (não por acaso uma palavra anglo-saxônica) do presidente que deveria encarnar Franklin Roosevelt e Richard Nixon numa só pessoa. Realmente, a democracia brasileira estava completa, feita sob medida, conforme reza a cantilena, para inglês ver:


“Yes, nós temos bananas! Yes, nós também temos impítimam!”


Passados 24 anos da ressaca, quando pela primeira vez a Constituição foi verdadeiramente posta à prova, ela se revelou, no entanto, letra morta. A dita “constituição cidadã” não passava de uma fraude.


Sob o verniz democrático, a Carta Magna mostrou o lado obscuro de um autoritarismo adormecido. Assim como no “18 de Brumário” Marx afirma que a Constituição republicana de 1848 era inviolável mas tinha um calcanhar de Aquiles, aliás, uma cabeça, ou melhor, duas, a Assembleia Legislativa e o Presidente, a Constituição brasileira de 1988 também parece padecer do mesmo mal na lei do impeachment.


De fato, foram precisos apenas quatro mandatos consecutivos de um governo popular para o samba enredo da democracia desafinar em samba do crioulo doido. As elites, secularmente predatórias e corruptas, e a classe média, intrinsecamente fascista, saíram às ruas para protestar - pasmem! - contra a suposta corrupção do Partido dos Trabalhadores.


Como a bandeira da corrupção é apenas um pretexto, os setores conservadores tratam de substituir a presidenta Dilma Rousseff, a quem não pesa nenhum indício de enriquecimento pessoal ilícito, por elementos do atavismo político notoriamente desonestos e corruptos. Não por acaso, nos governos do PT, registrou-se um fato inédito em mais de quinhentos anos de história do Brasil: a prisão de grandes magnatas e bandidos de colarinho branco. Trata-se, portanto, de derrubar um partido popular para salvaguardar a arcaica estrutura de desmandos e impunidade na injusta e desigual sociedade brasileira.


Diante do assédio odioso representado pelos interesses particularistas da burguesia oligárquica, diga-se de passagem, racista, preconceituosa e escravocrata, a Constituição Federal deveria garantir a estabilidade do mandato presidencial e assegurar a soberania popular expressa no sufrágio universal. A crise política do governo Dilma demonstrou, porém, que a presidência é completamente vulnerável aos ataques dos mais abjetos esbirros pau-mandados das elites locais e, também, refém das chantagens de um parlamento de mentalidade coronelista.


Para pôr fim ao governo e reconduzir seus representantes ao poder, as classes dominantes, para variar, põem em curso um golpe de estado. Mas, ao invés de tanques, fuzis e tropas armadas, utilizam a lei. Para isso, bastava encontrar alguma atividade do governo passível de criminalização: manobras nas contas públicas, em um contexto de crise econômica, para pagar programas sociais, como o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida.


Desnecessário deter-se aqui numa reflexão sobre a legalidade das chamadas “pedaladas fiscais” ou da abertura de créditos suplementares, pois o assunto foi largamente discutido e demonstrado prática recorrente da administração pública (inclusive, realizada pelos algozes da presidenta). Pois bem, se não há base legal para o afastamento da presidenta, como explicar o processo movido contra ela?


A legislação do impeachment (1950), embora tenha fundamento jurídico, autoriza a deposição do presidente por meio de um processo exclusivamente político. De fato, legalmente, o impedimento do cargo da presidência está condicionado a um atentado à Constituição por parte de seu titular, em comprovado ato de violação da lei orçamentária, configurando-se, assim, crime de responsabilidade. Inexplicavelmente, porém, não é da competência do judiciário a apreciação técnica da matéria, mas da classe política, cabendo àquele apenas a função de fiscalizador dos ritos e definir o mérito do processo. Portanto, concernem à câmara dos deputados a autorização do processo e ao senado o julgamento, por meio de votação!  (Ao indeferir medida de liminar cautelar ao mandado de segurança 34113, por 8 votos a 2, o plenário do STF entendeu que o exame dos crimes de responsabilidade deve ser uma atribuição do senado). Estranhamente, aquilo que é da alçada do judiciário é delegado às partes julgar e, obviamente, a depender da correlação de forças nas câmaras legislativas e da omissão do STF, chafurdado na hermenêutica jurídica de conveniência, a jurisprudência permite a deposição, mesmo que injusta, de qualquer presidente sufragado pelo voto popular. Em tese, haveria ainda o argumento em defesa da legalidade, de que a qualquer tempo uma ação poderia ser interposta no Supremo Tribunal questionando a legitimidade do impeachment; porém, ela não teria efeito, mesmo que se acolhida pelos ministros, haja vista o princípio da separação dos poderes.


À semelhança de um tribunal medieval, presidido por inquisidores misóginos, que suspeitavam ser prática de bruxaria uma tempestade de granizo que arruinava plantações e por isso sentenciavam mulheres à fogueira, a sociedade brasileira, patriarcal, machista, chauvinista, antes mesmo de qualquer julgamento, já condenou a presidenta Dilma Rousseff; entres seus crimes, ser mulher, sem ser do lar, ser “minoria”.


O que é estarrecedor, no entanto, é que a destituição ilegítima da presidenta não é um caso de excepcionalidade. Acontece, antes, em toda sociedade brasileira, desde universidades aos becos e periferias das grandes cidades. As relações de poder, o clientelismo, a violência, o uso da força, em prejuízo da lei, estão encrustados em todos os níveis sociais. O Estado democrático de direito não passa aqui de mais um entre tantos eufemismos; maquiagem na face brutal da plutocracia despótica de um país que já mereceu a denominação de “Rússia dos Trópicos”, na feliz expressão de Gilberto Freyre, tal a sua similaridade não apenas à extensão continental do território, com sua Sibéria verde, mas também ao sistema político absolutista, à gigantesca máquina burocrática e à opressora estrutura feudal da época dos czares. Por isso, a questão não se resume se impeachment é constitucional ou se é golpe - é obvio que é constitucional - mas, sim, eufemismos (anglo-saxônicos) à parte, que o golpe é constitucional!


Antes de terminar, a respeito do título, o vice-presidente decorativo Michel Temer, do alto da sua insignificância, não merece mais do que intitular este texto e essa mísera mas generosa observação, quase como uma nota de rodapé. E só.


E, para realmente concluir, conforme anunciado acima, trata-se de desentortar a frase que iniciou estas reflexões, com um tempero bem brasileiro:


O golpe se repete, em 1964, como tragédia; em 2016, como tragicomédia de uma farsa democrática.


Yes, nós temos bananas!