HIPERTENSÃO ARTERIAL: tensão a flor da pele
Por Elen Paesante | 25/09/2010 | PsicologiaA sociedade moderna, com seu ritmo acelerado, vem contribuindo para o aumento do estresse, fator de relevância para o acometimento dessa doença. "À flor da pele" vive o hipertenso ? com o coração ? traz em seu corpo uma história de dor e sobrecarga. Sendo assim, este trabalho objetivou a criação de um espaço de acolhimento que possibilitasse a troca e a expressão dos aspectos psicoemocionais, estimulando o poder criador na busca de alternativas para o enfrentamento da doença. Foi realizado através de Oficina Criativa®, por se tratar de uma metodologia que permite a reconstrução de um caminho transformador e por se configurar numa forma de intervenção em arteterapia, funcionando como instrumento facilitador nos processos de consciência interior. Para tanto foram desenvolvidas atividades com diferentes recursos artísticos, oportunizando a materialização e a simbolização das dificuldades vivenciadas. Desta forma, a possibilidade de um contato com o EU favoreceu o autoconhecimento e com isso o resgate de sentimentos de autoestima e autoconfiança. A dor vivenciada pela doença pode ser minimizada e os conflitos ressignificados. O processo do dar-se conta foi sendo ampliado e as mudanças foram manifestadas na fala, na postura, na maneira de vestir e no jeito de ser. Surgiu então a consciência da necessidade do autocuidado.
Palavras-chave: Arteterapia. Hipertensão arterial. Oficina criativa
Introdução
Era, enfim, chegada a hora de pôr a mão na massa e de realizar o tão esperado estágio, requisito parcial ao título de especialista em arteterapia. Era o momento de colocar em prática tudo aquilo que foi aprendido, de sair do lugar de aprendiz para ser facilitadora dos processos internos de outrem. Para isso, era necessário encontrar um lugar onde fosse possível vivenciar essa experiência. Foi então que surgiu a oportunidade de realizar o projeto com servidores da Secretaria de Estado da Educação de Sergipe. O Núcleo de Saúde da Rede QualiVida, programa desenvolvido por esta Secretaria, iniciava um trabalho de apoio a servidores portadores de hipertensão arterial e demandava uma ação terapêutica. Desta forma, disponibilizei-me para desenvolver junto a esse grupo o projeto de estágio em arteterapia.
Para que o trabalho acontecesse, foi promovido um encontro com os servidores ressaltando-lhes a importância dos cuidados com a hipertensão, sendo o trabalho terapêutico fator essencial para a minimização da dor emocional e ressignificação dos conflitos experienciados com a doença. Na oportunidade, apresentamos o projeto dando visibilidade à arteterapia como processo terapêutico e o convite à participação nas oficinas. Neste encontro, também realizamos uma minioficina a fim de que as participantes pudessem experimentar o trabalho que seria desenvolvido.
O projeto teve como objetivo a criação de um espaço de acolhimento que possibilitasse a troca e a expressão dos aspectos psicoemocionais, estimulando o poder criador na busca de alternativas para o enfrentamento da doença; um espaço/tempo para estar consigo mesmo, sentindo-se apoiado e ampliando a consciência do que consigo acontece. "Dar-se conta, ter consciência de si próprio, ou seja, perceber o que de fato provoca o que se sente, leva o indivíduo a descobrir a sua responsabilidade no conflito e um novo fator de situação, que é ele mesmo, passa a ser considerado" (TRINDADE, 2006, p. 98).
A hipertensão arterial é apontada como uma doença multifatorial, sem um denominador comum para sua etiologia, revelando-se clinicamente dos 20 aos 40 anos, característica de uma sociedade moderna, individualista, competitiva, sedentária e com hábitos de alimentação e uso de substâncias alcoólicas irregulares. Dois fatores ambientais têm se destacado nas pesquisas sobre HA (hipertensão arterial): a ingestão de sal e o estresse. Como uma doença de adaptação, em situação de estresse, o organismo exige uma resposta adaptativa. Nesse caso, a elevação da pressão arterial. Conforme Campos (1992, p. 247): "Subsequentes pesquisas aventaram outras hipóteses acerca de determinadas características psicológicas correlacionadas com a HA, como alexitimia, depressão, passividade, dependência, expectativas negativas face às situações".
O fazer arteterapêutico possibilita o contato com o poder criador de cada um, proporcionando diferentes maneiras de lidar com as mudanças significativas que permeiam o cotidiano, e propicia o desvelamento e um reposicionamento na construção de uma vida melhor. "A probabilidade de falar e refletir sobre si mesmo, buscando alternativas de enfrentamento que não a resposta hipertensiva, foi suficiente para o controle tensional", relata Campos (1992. p. 248), após experiência com um grupo de portadores de hipertensão arterial. A arteterapia poderá ainda contribuir como suporte social, na medida em que pessoas estão reunidas em torno de um problema comum ? a HA, identificando fatores que interferem na doença ou no seu controle, sentindo-se, assim, mais valorizados como pessoa e mais dispostos a se cuidarem.
As oficinas
O projeto foi realizado através de Oficina Criativa®, por se tratar de uma metodologia que permite a reconstrução de um caminho transformador e por se configurar numa forma de intervenção em arteterapia, funcionando como instrumento facilitador nos processos de consciência interior. A periodicidade dos encontros foi semanal e o grupo constituiu-se, inicialmente, de nove servidores de ambos os sexos, com faixa etária entre 29 e 55 anos, acontecendo as oficinas no período de fevereiro a junho de 2008. Foram desenvolvidas atividades com diferentes recursos artísticos e em cada oficina uma atividade de crescente evolução, oportunizando a materialização e a simbolização das dificuldades vivenciadas. "O trabalho, por meio de recursos expressivos e artísticos, possibilita ao indivíduo concretizar sua imagem interna de modo significativo (ALLESSANDRINI, 1996, p.33).
Foram realizadas vinte e cinco oficinas e em cada uma delas uma temática diferente era abordada. Não descreverei aqui, todas delas, mas apenas as mais relevantes para o processo de crescimento do grupo. Vários recursos foram utilizados, dos mais simples aos mais complexos, levando em conta a predisposição do grupo e a disponibilidade interna para lidar com os sentimentos e sensações que pudessem emergir.
Segundo Allessandrini (1996), as oficinas criativas devem ser trabalhadas em etapas em que "o sujeito expressa criativamente uma imagem interna por meio de uma experiência artística para, posteriormente, organizar o conhecimento intrínseco a esse fazer expressivo" (p. 41). O processo inicia-se com uma sensibilização, através da qual "ele é convidado a tocar a si mesmo" (p. 41) a partir dos canais sensoriais, integrando sentimentos e sensações.
Como recursos para a realização dessa etapa podemos utilizar exercícios lúdicos, corporais e de observação, nos quais o assistido poderá estabelecer uma conexão com a atividade posterior, facilitando, assim, a expressão da experiência vivida por meio da linguagem não-verbal, a Expressão Livre. Neste processo, expressa livremente o seu sentimento e pensamento por meio de técnicas e recursos artísticos, dando forma ao que estava disforme, presentificando a figura para que possa tomar consciência desta.
Na Elaboração da Expressão, a linguagem é aprimorada e o "indivíduo ?re-elabora, ainda na perspectiva da arte e da representação não-verbal, o conteúdo emergente nas etapas anteriores. Há um retrabalhar as figuras e formas, dando-lhes mais contornos, linhas e cores" (p. 43). Nesta etapa ocorre a Transposição para a linguagem verbal e/ou escrita, ressignificando todo o processo. Por fim, a Avaliação, momento de poder se rever nas etapas anteriores e avaliar "a dimensão de significado simbólico da totalidade da experiência vivida" (p. 44).
As etapas vividas durante as oficinas possibilitam que os envolvidos possam, cada um no seu tempo e ritmo, ir tomando consciência do seu processo. É interessante observar o movimento de crescimento dentro do grupo, pois, ao dar-se conta do que consigo acontece e do seu entorno, pode, então, ressignificar e transformar.
Para um melhor desenvolvimento e compreensão dos processos internos dos participantes, as oficinas foram divididas em subgrupos, e em cada um deles temas foram vivenciados.
Iniciamos com a "Apresentação pessoal", onde foi trabalhada a História do nome, e a Trajetória pessoal. Utilizamos materiais diversos como giz de cera, lápis de cor, cola colorida, cartolina, revistas velhas e cola. Nesta atividade, puderam, então, entrar em contato consigo mesmo, revisitando algumas etapas da vida, principalmente as histórias da infância: "me senti uma verdadeira criança no jardim de infância, queria pegar tudo". Os participantes também perceberam as diferenças em cada trabalho realizado: "cada um é diferente do outro. Incríve! não tem nenhum igual". Conforme Rhyne, (2000, p.40): "Cada linha que você traça é unicamente sua; as que eu desenho são individualmente minhas; cada um de nós esta envolvido num acontecimento pessoal".
Durante os primeiros encontros, observei a grande dificuldade, por parte do grupo, de trabalhar com os recursos disponibilizados, insegurança e falta de habilidade em lidar com materiais. Pareciam não se sentir muito à vontade diante do material apresentado e, inicialmente, escolhiam os recursos mais simples e pediam desculpas pelo errar, por não saber escrever direito ou pelo simples fato de se emocionar. Tiveram a possibilidade de deitar-se no chão e experimentar ser criança novamente. De voltar a aprender.
"Na arteterapia os valores estabelecidos são diferenciados, não importa aquilo que faço, mas como faço e o que sinto a partir daquilo que construo. A beleza não está no painel de fora, mas do cenário de dentro, no ato de criar, onde o valor do experimento encontra-se no que é sentido e na representação do objeto para quem o faz" (grifo do autor; PAESANTE, 2008 p.23).
Chamou-me a atenção como se permitiram à entrega, ainda que nos primeiros encontros. Relatavam coisas muito fortes para o início de um trabalho. Apenas alguns se continham em suas falas, mas a grande maioria se expunha com muita facilidade, trazendo fatos da infância que marcaram toda uma vida de dor e sobrecarga.
Em "Minha vida", os temas trabalhados foram: Laços da vida; Transformando com as mãos, e o Presente precioso. Os materiais utilizados foram laços de fita de cores e formas variadas, jornal, cola, cartolina, tesoura, lápis de cor e giz de cera. Nessas oficinas, mergulharam mais nas questões pessoais. As lembranças de fases que marcaram a vida foram trazidas e compartilhadas no grupo: "me senti muito feliz em poder falar, me sinto bem quando posso desabafar e ser ouvida". Sensações estavam aflorando: "me senti querendo criar algo, não sabia como, pois nunca fiz nada parecido. Acho que está tudo partido, aos pedaços, mas minha intenção era fazer tudo certinho; "estou me sentindo uma pessoa, me achando capaz, fazendo o que nunca fiz na minha vida, tentando fazer o que vale a pena".
"A arteterapia "promove a melhoria da qualidade de vida ao relacionar significativamente o mundo interno e o externo, propiciando o reconhecimento e desenvolvimento de potenciais, o autoconhecimento, a aprendizagem significativa e o crescimento psíquico" (ARCURI, 2006, p. 79;80).
Em "Autopercepção", os temas foram: Cores e formas; Brincando com os sentidos; Desenhando no escuro; Os papéis de minha vida; Você em cartaz, e Figura e fundo. Utilizamos filó, tinta guache, giz de cera, papéis diversos, cola, tesoura, bandeja de papelão, cartazes de filme, lápis de cor e folhas A3 e A4. O momento era de tomada de consciência com relação aos papéis que exercem na vida pessoal e profissional: "me senti uma bailarina dançando com o filó, a criança que não fui". Segundo Rhyne, (2000, p. 38): "A maioria de nós, no momento em que somos considerados adultos e maduros, já esqueceu como ser si mesmo". O resgate da criança é presentificado na atividade sugerida e as percepções mais aguçadas: "com os encontros estou me conhecendo melhor, vou transferir este amargo e mudar minha vida, meu jeito de ser". É a arte como possibilidade de expressão, facilitando o autoconhecimento e o despertar da consciência, contribuindo para que mudanças significativas possam ocorrer.
Literalmente "à flor da pele" vive o hipertenso, no limite de suas forças, com o coração: "vou de coração". Talvez seja esta a razão da grande evasão do grupo, pois é mexer em coisas muito difíceis para eles: "isso me machuca muito, perdi a identidade profissional"; "tão mãe, mãezona, que sou mãe da mãe. Quando eu fui filha?".
"Transformação", literalmente, pois muito foi transformado na vida dessas mulheres. O grupo chegou a esta etapa apenas com mulheres. Mulheres com tripla jornada de trabalho, mãezonas, mulheres que carregam o mundo nas costas: "na minha casa é uma batalha e filme de humor. Meu marido parece um palhaço, mas quando ele não está na fase de humor eu que sustento a família". Trindade (2006. p. 118) diz que "[...] o individuo, ao colocar-se disponível para si, desenvolve uma autopercepção quanto ao seu modo de funcionar consigo próprio, com o outro e com o mundo ao seu redor". Uma das participantes disse: "é como se eu estivesse atenta para o meu olhar, para as coisas de minha vida, tenho que mudar o meu olhar". Nessa etapa trabalhamos com os temas: Construindo meu mundo; Modelando a si mesmo; Metamorfose; As cores do meu mundo; Construindo um boneco, e Personagem de vida. Como recursos plásticos, usamos massa de modelar, argila, jornal, tinta guache, pincel, tecidos diversos, lã, miçangas, cartolina, bola de isopor e cola quente.
"Se este mundo fosse meu, eu o deixaria mais colorido; deixando muito aberto, fica difícil de observar. Sou seletiva, tinha que ter firmeza". Neste momento, uma das participantes fala de si mesma, mas refere-se ao trabalho da colega, sugerindo mudanças, pois, afinal, essa era a proposta do trabalho: "Eu, que tenho que abrir, não posso esperar que outras pessoas venham no meu mundo e abram. A necessidade é minha, eu é que tenho que fazer isso no dia a dia, constantemente, o que é meu tá no outro". Essa foi a resposta.
"Quem nunca viu uma BER bonita vai ver agora, cinturinha fina de pilão, batidinha. Sou uma artista [...] tá saindo, nunca aprendi, nunca estudei, não tenho coordenação, sou péssima, mas ninguém é perfeito, cada um faz do seu jeito. Percebi que fiz o quadril largo igual ao meu, os cabelos também", relata uma das participantes após perceber que fez seu autorretrato utilizando o barro como instrumento. Conforme Zinker (2006, p. 16): "A criatividade é um ato de coragem que diz: estou disposto a me arriscar ao ridículo e ao fracasso para experienciar este dia como uma novidade, como algo inédito". Essas mulheres estavam ousando, experimentando, sendo si mesmas, trazendo como figura o que estava obscuro: "ficou diferente de mim". Peço para descrever a sensação, ela sente dificuldades e diz: "de me ver assim transformada? Me transformei muito, hoje sou alegre, não encontrava palavras para me aproximar das pessoas, era uma tabaroa, hoje estou mais solta, me transformei sem querer".
"O fazer artístico muitas vezes é descartado do mundo adulto, a não ser, quando se trata de uma prática profissional assumida. É como se somente às crianças fosse permitido pintar e bordar, inventar modas, pintar os sete. Esta é uma tarefa delas, cabendo aos adultos distanciar-se cada vez mais, não sendo, desta forma, permitido adentrar ao universo infantil, que também os representa, ou pelo menos, deveria" (grifo do autor; PAESANTE, 2008, p. 24).
Ao trabalhar a construção da personagem, surgiram histórias de vida. Cada personagem recebeu um nome, e a história pôde ser dramatizada. Sem ter consciência do que acontecia, cada uma trazia sua própria história e de forma lúdica iam se desnudando, mostrando-se por inteiro a si e ao outro: "eu chamarei minha boneca de Maria Quitéria. Tem traços japoneses ou seriam chineses? Não sei! Dos seus olhos cai uma lágrima, eu diria ser de tristeza, pelas conquistas que não vieram e pelas quais tanto lutou. Ela é guerreira, cheia de entusiasmo e um coração valente. Tem medos, sim, e quer vencê-los. Como? Não sei! Ela quer se permitir sonhar e um dia ser vitoriosa perante filhos e netos. Seu maior desafio: passar pela vida, não como coitadinha, e sim como uma mulher guerreira que tantas lutas venceu. Parabéns a esta pequena mulher que com seus laços coloridos festeja a vida, como se ela fosse uma grande cerimônia de alegria, vida e perdão. Não queiram tachar esta mulher de rótulos que certamente não serviriam, pois ela em sua brejeirice veio dizer ao mundo que existe e que só quer dele uma coisa: ser feliz!!!?.
Para Paesante (2008), ao se trabalhar com outro em um processo terapêutico: "É preciso respeitá-lo na sua individualidade para que se possa caminhar com ele de forma suave e sem que se aperceba possa alçar vôos na direção daquilo que acredita ser o melhor para si. Descortinar-se não é tarefa fácil, pois implica mostrar-se na sua inteireza, nos seus alinhavos e fendas. Esse processo precisa ser alinhavado cuidadosamente, ponto a ponto, para que possa ser visto e apreciado" (p.24).
"Fechamento" foi a nossa última etapa. Nessas últimas oficinas caminhamos para a despedida do grupo, o fim de um processo de muitas descobertas. Os temas foram: Histórias de vida; Juntando caquinhos; Desvelando a persona; Galeria, e Fechando ciclos. Os materiais utilizados foram livros de histórias e contos infantis, canga, TNT, bandeja de papelão, cola, tesoura, atadura engessada, vaselina, filme, toalha, tinta guache e pincel.
Nessa etapa tínhamos um grupo reduzido, o que proporcionou um aprofundamento do trabalho. As participantes estavam integradas, e sempre que havia atraso por parte de uma delas, ficavam na expectativa da chegada da outra para que o trabalho pudesse começar. Já haviam criado vínculos de confiança, e a partilha havia se tornado algo natural: "as nossas histórias... todas nós temos histórias para contar". Na atividade de modelagem, ao ser modelada, uma delas diz: "sinto esse aprisionamento de fazer e pensar o que as pessoas querem, me sinto mal, travada, sou velha para viver como um fantoche". Com a consciência ampliada, a transformação vai surgindo de forma espontânea, pois vai sendo visualizada a cada objeto construído. "Há uma mobilização de emoção porque não é um ?falar sobre?, mas viver o conflito. Vivenciar o conteúdo facilita a compreensão, o reconhecimento e a tomada de posse; portanto, a possibilidade de transformação" (NOGUEIRA, 2004, p. 219). Outra participante olha para sua criação e diz: "não sei se perceberam, mas não usei preto, nem me lembrei, agora é que olhei. Não foi proposital, estou me libertando de alguma coisa, levantando a cabeça. Para Zinker, "toda pessoa pinta o mundo com as cores de sua vida interior" (2007, p. 26). Elas partilham a fala e o aprendizado: "pode ir mais devagar? Ela se joga sem pensar!", referindo-se à colega que solta seu corpo com facilidade durante um jogo de confiança, e ao observarem umas às outras, se surpreendem e se permitem experimentar.
"As expressões artísticas fazem a ponte entre nosso inconsciente e nosso consciente, e revelam arquivos guardados e escondidos em nosso imaginário, que representam lembranças, emoções e sentimentos, que ainda permanecem presentes" (ARCURI, 2006, p. 128).
Em "Desvelando a persona" permanecemos por quatro oficinas. Uma experiência grandiosa e belíssima, mas muito delicada. O trabalho foi realizado em duplas, no qual elas mesmas, seguindo as consignas, modelaram-se, construindo suas máscaras. Estavam preparadas, mas bastante ansiosas para vivenciarem essa atividade; um misto de relaxamento e de entrega: "me senti muito relaxada... frescor...". O trabalho com máscaras é por demais revelador, é a "responsabilidade de cuidar do outro e não retratá-lo com deformidade", diz uma delas. Para Arcuri (2004): "A máscara em gesso do próprio rosto, fossiliza, dando-lhe uma nova roupagem e trazendo à luz aspectos não conscientes que poderão ser integrados à consciência, ampliando-a" (p.136).
Durante o processo, houve a consciência do ritmo, do excesso de vaidade, do perfeccionismo, características reconhecidas pelas participantes: "calma que preciso, não tenho. Quero as coisas para ontem. Não coloco prazer nas coisas que faço, não me sinto na obrigação de caprichar. Quando penso em você, eu capricho; quando penso em mim não capricho. Acho que não mereço caprichar". Conforme Rhyne apud Ciornai (2004, p. 29): "O valor terapêutico da atividade artística está tanto no processo de criação quanto nas possíveis reflexões e elaborações posteriores sobre os trabalhos realizados".
Estávamos fechando. Expressão de tristeza em cada olhar por deixar as companheiras, confissão de arrependimento por não terem participado de todas as oficinas, mas a demonstração da satisfação por estar concluindo: "é como se fosse um...", neste momento se referia a um trabalho de conclusão de curso, uma monografia: "me senti feliz, surpresa comigo mesma, me realizando, nunca fiz quando criança na escola, tô aprendendo, me descobrindo aqui, tentando fazer este trabalho de minha maneira, e para mim é importante, não é só criança que aprende a fazer as coisas. Nunca fiz muitos trabalhos desses quando criança, me considero uma vitoriosa, tudo isso que faço aqui é de primeira vez".
Por fim, agradecem a companhia e a partilha: "gostei da proposta e embarquei, vim com a bagagem, fui abrindo e jogando para vocês". Encerram com uma última atividade "Fechando ciclos", na qual elaboram um caminho tracejando todo o percurso das oficinas e das descobertas vivenciadas.
Fechando ciclos
"[...], pretendemos ver na ?doença?, não somente um conjunto de fenômenos que nos cabe curar, mas, muito além disso, uma experiência de sofrimento que pode ser ressignificada ou traduzida em possibilidade de crescimento e transformação" (RODRIGUES, 2006, p. 18).
Campos (2005, p. 38) ressalta esse olhar sobre a doença com bastante propriedade quando ele diz, que "[...] olhar para a doença não é o suficiente. Urge encontrar o sujeito. O ato terapêutico será o olhar. Descobrir aquele que vive (e que sofre) atrás da sua doença. [...] não é tanto a doença que precisa ser tratada, mas o que ela significa. De que fala aquela doença? O sujeito quer ser ouvido, quer ser compreendido. O ato terapêutico é ouvir. Descobrir o significado que se esconde atrás da doença".
A doença não foi o foco desse trabalho, mas o sujeito sim. O encontro foi com aquele que vive e sofre por trás da sua doença, por não se conhecer o suficiente e por não saber lidar com seu o seu próprio processo de adoecimento. Na arteterapia, o ato terapêutico é o criar; é a permissão para adentrar um mundo repleto de significados, que vão surgindo e sendo visualizados à medida que a entrega vai acontecendo.
Fechamos um ciclo. Quanta emoção, quanto aprendizado! Quantas vezes me arrepiei ao me deparar com o crescimento do grupo. Foi uma experiência encantadora, onde cada uma pôde vivenciar de uma forma diferente; elas como aprendizes e eu como facilitadora desse processo. Encerrar é inevitavelmente começar de novo. Como diz Ribeiro: "[...] tendo fechado uma gestalt , recomeçar uma nova caminhada, um novo processo de vida" (1995, p. 35).
Era a hora de experimentar, na prática, todo aquele novo aprendizado. Na última oficina, enquanto pingava a vela no caminho final, uma das participantes explicava o uso das duas velas em sua mão: "uma minha e outra da companheira, não posso mais iluminar somente o caminho do outro, preciso cuidar de mim também". Mergulhou profundamente no processo de construção interna do seu ser e parecia ter despertado para vida de uma forma saudável. Aprendeu a lidar consigo de forma mais equilibrada, aceitando-se na sua inteireza, adaptando-se ao olhar do outro e se integrando, sem se sentir diferente, assumindo seu ser. Percebeu ao final que o grupo se desfez porque cada um é um; porque nem todos estavam preparados para vivenciar as mudanças que a arteterapia poderia promover e, portanto, precisavam de justificativas para abandonar esse caminho.
Segundo Ribeiro (2006), a necessidade "aparece como uma demanda do próprio organismo, que sempre segue a lei da preferência" (p. 150). Foi a necessidade que fez com que cada um caminhasse em direção a esse experimento, pois sabiamente o organismo sinaliza aquilo que parecia ser de relevância para a conservação e continuidade do seu ser; porém é preciso estar atento a esses sinais, pois nem sempre é possível percebê-los com clareza.
Finalizo este trabalho homenageando uma servidora, a quem chamei de "pessoinha especial". Uma mulher simples e grandiosa. Ela se jogou e se permitiu viver a arte de forma plena e maravilhosa. Aprendeu muita coisa. Aprendeu que pode ainda aprender; que pode brincar de ser criança sem se perder de vista; que as barreiras somos nós que as colocamos, e que a cancela sempre estará aberta se quisermos adentrá-la. Descobriu que pode ser ela mesma; que pode fazer bonito e do seu jeito; que pode se maquiar e ficar bela. Aprendeu que o diferente é simplesmente diferente e não feio, e que o feio não existe. Ela estava realmente mais bonita, arrumava-se mais e fazia a diferença na sua equipe. Percebi que sua autoestima estava mais elevada, pois já não temia se expor e valorizava o que fazia. Quando queria dizer algo e não sabia a palavra, não mais silenciava; ela agora pedia ajuda.
As palavras que iam sendo colocadas ao final de cada oficina possibilitaram não somente a reflexão, mas também o ampliar do seu vocabulário. O desejo expresso em redigir um texto contando sua histórica transformação reforça o quanto ela progrediu e o quanto se sentia importante por finalizar mais essa etapa em sua vida. Comparou o fim das oficinas ao final de um curso, merecendo um diploma de conclusão. "Vitória" foi uma de suas palavras, pois se sentia uma vitoriosa.
Assim como essa "pessoinha" eu também senti uma enorme necessidade de materializar este trabalho, de compartilhá-lo com outras pessoas, pois a riqueza dos conteúdos que compuseram o trabalho é de extrema importância para o crescimento de qualquer pessoa, principalmente para um arteterapeuta.
Trabalhar com o hipertenso foi uma experiência bastante enriquecedora. Eles são ansiosos; carregam uma carga muito densa; preocupam-se demais com tudo e com todos, e muito pouco com eles. O grupo, então, teve a possibilidade para aprender a cuidar de si. E eu me sinto bastante satisfeita por poder ter sido facilitadora dessa conquista do outro.
Ao final desta encantadora experiência, o que ainda posso dizer é que sem a arte não consigo mais atuar. Meu palco nunca mais será o mesmo, pois a arte ganhou seu espaço, e eu como coadjuvante deste grande enredo que é a vida, sinto-me extremamente honrada em poder trabalhar com ela ao meu lado, ajudando-me na condução dos diversos processos dos seres que passam por meu caminho.
E a todos eles o meu muito obrigada!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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