ARTIGO: Hermenêutica e Direito Penal – O direito de punir do Estado e a (in)eficácia dos direitos fundamentais

Por Lucas Brito Ferreira Sousa | 21/06/2018 | Direito

Lucas Brito Ferreira Sousa

1 DESCRIÇÃO DO CASO

No dia 11 de novembro de 2009, por volta das 15h15min, na Rua João Goulart, 330, Bairro São Luiz, em Timom, MA, o denunciado tentou subtraiu, para si, mediante rompimento de obstáculo, o valor de R$ 63,00(sessenta e três reais) em objetos, conforme auto de apreensão e avaliação de fls. não numeradas, respectivamente, do Inquérito Policial, de propriedade da vítima Lauro Benedetto.

Na ocasião, o denunciado, após arrombar o cadeado do portão do pátio da residência, adentrou na casa davítima e tentou subtrair os bens acima descritos.Entretanto, o fato delituoso só não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do denunciado, vezque populares perceberam a ação delituosa, localizaram uma guarnição militar que estava em serviço depatrulhamento no local e comunicaram o fato. Ato contínuo, a aguarnição da Polícia Militar foi até o local, entrou na residência e logrou êxito em prendero agente em flagrante.

A pena foi dosada da seguinte maneira: pena-base fixada em 01 ano e 04 meses de reclusão; pela reincidência, aumentada em 06 meses; ante a confissão, diminuída em 04 meses; pela tentativa, minorada em 2/3, tornadadefinitiva em 06 meses de reclusão, em regime semiaberto, mais pecuniária de 10 dias-multa, à razão mínima.Inconformada, a Defensoria Pública apelou. Busca a absolvição do acusado pela aplicação do “princípio dabagatela” (sic) ou pela insuficiência probatória. Alternativamente, pugna pela fixação de regime menos gravoso.Nesta instância, a Procuradoria de Justiça, pelo Dr. Lenio Luiz Streck, manifestou-se pelo parcial provimento do apelo para, mantida a condenação do réu, seja redimensionada a pena imposta. (descrição retirada da proposta do case)

 

 

2  DECISÃO DO CASO

2.1. José Vargas da Rosa deve ser absolvido.

 

Uma das funções do direito é regular as relações sociais, relações essas que se mostram inconstantes ao longo do tempo e é impossível abordar o direito penal sem antes analisarmos a evolução da sociedade. A idade média foi marcada pela grande religiosidade, sendo a igreja católica a detentora do conhecimento inquestionável e o direito canônico responsável por castigar aqueles que contrariavam os seus dogmas. Por outro lado, o inicio da modernidade foi marcada pelo enfraquecimento da igreja, a maior valorização do homem como centro do mundo e o direito absolutista foi capaz de gerar inúmeras injustiças e punições ilimitadas. Séculos se passaram e o direito penal ainda é utilizado de uma maneira máxima e com o intuito de limitar a sua intervenção, surgiu o direito penal mínimo que por meio do princípio da intervenção mínima, busca limitar o poder punitivo do Estado;

O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o Direito Penal, deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade. (BITENCOURT, 2010, p.43)

 Assim como o princípio da intervenção mínima que defende a limitação do poder punitivo do estado, a teoria garantista de Luigi Ferrajoli afirma que os direitos fundamentais devem se sobrepor perante a defesa social

A teoria do garantismo penal, antes de mais nada, propõe-se a estabelecer critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueista que colcoa a 'defesa social' acima dos direitos e garantias individuais. Percebido dessa forma, o modelo garantista permite a criação de um instrumental prático-teórico idôneo à tutela dos direitos contra a irracionalidade dos poderes sejam públicos ou privados. Os direitos fundamentais adquirem, pois, status de intangibilidade de esfera do não-decidível, nucléo sobre qual sequer a totalidade pode decidir. Em realidade, conforma uma esfera do inegociável, cujo sacrifício não pode ser legitimado sequer sob a justificativa da manutenção do 'bem comum' [...] Adquirem, portanto, a função de estabelecer o objeto e os limites do direito penal. (CARVALHO; CARVALHO, 2002, p.19)

A politica criminal do direito penal máximo foi bastante utilizada em décadas passadas. Seu estilo incriminador de intolerância zero só considera a conduta e o resultado, sendo assim o sujeito deverá receber punição de imediato, caso esteja tipificado em lei de acordo o principio da legalidade que se encontra no artigo 5°, inciso XXXIX da Constituição Federal Brasileira “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (BRASIL, 1988), deixando de observarem-se os demais fatores que levaram o sujeito a praticar determinada ação.

  A partir de uma abordagem totalmente oposta ao conceito de Direito Penal do Inimigo para GüntherJakobs (2007) onde o delinquente não deve ser reconhecido como cidadão, pois sua conduta lesiva desconfigura o caráter de cidadania, gerando assim uma liberdade ao estado para combater esse inimigo sem ao menos cogitar os direitos fundamentais. José Vargas da Rosa não deve ser considerado como inimigo do estado, nem mesmo um ser sem cidadania. Diferente dos direitos fundamentais de primeira dimensão histórica que é marcada pelos direitos de liberdade e uma limitação do Estado (função de defesa), a segunda dimensão que compreende o surgimento dos direitos sociais, é marcada pela necessidade de uma interferência estatal capaz de solucionar graves problemas apresentados na sociedade. José Vargas deve ser considerado como um ente fraco e resultante da ineficácia estatal em promover uma vida digna.

O direito penal não deve ser visto apenas à luz do Código Penal, pois é necessária a análise dos princípios constitucionais e infraconstitucionais para a correta observação de que uma punição de âmbito penal é a melhor sanção para o caso, como o princípio da insignificância.

Segundo tal princípio, o Direito Penal não deve preocupar-se com bagatelas [...] Se a finalidade do tipo penal é tutelar um bem jurídico, sempre que a lesão for insignificante, a ponto de se tornar incapaz de lesar o interesse protegido, não haverá adequação típica. É que no tipo não estão descritas condutas incapazes de ofender o bem tutelado, razão pela qual os danos de nenhuma monta devem ser considerados fatos atípicos [...] O Superior Tribunal de Justiça, por intermédio de sua 5ª Turma, tem reconhecido a tese da exclusão da tipicidade nos chamados delitos de bagatela, aos quais se aplica o princípio da insignificância, dado que à lei não cabe preocupar-se com infrações de pouca monta, insuscetíveis de causar o mais ínfimo dano à coletividade.O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, assentou “algumas circunstâncias que devem orientar a aferição do relevo material da tipicidade penal”, tais como: “(a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada”. Assim, já se considerou que não se deve levar em conta apenas e tão somente o valor subtraído (ou pretendido à subtração) como parâmetro para aplicação do princípio da insignificância. (CAPEZ, 2012).

Considerando o princípio da insignificância, a conduta de José Vargas é atípica e não deve receber uma sanção penal, pois a soma dos valores dos bens furtados resulta em apenas R$ 63,00 (sessenta e três reais). Valor fútil perante o patrimônio da vítima Lauro Benedetto, já que um chuveiro elétrico em uma propriedade localizada na cidade de Timom-MA que comumente faz 30 °C (trinta graus) deve ser considerado como uma benfeitoria voluptuária que serve apenas para satisfazer os prazeres do dono. Para alguém que possui chuveiro elétrico em uma cidade de temperaturas quentes, não há porque falar de uma lesão significativa no bem jurídico protegido pelo furto que é o patrimônio de Lauro Benedetto.

O grau de reprovabilidade do comportamento também deve ser considerado para adotar o princípio de insignificância. Nesse caso qualquer cidadão de bom sensor tornaria aceitável a absolvição de uma pessoa que não possui nenhuma enfermidade ou deficiência mental que resulte na sua absoluta incapacidade de discernir os seus atos, que foi capaz de furtar algumas toalhas, um chinelo, um fio dental, uma pasta de dentes, uma escova, dois shampoos e um boné, se não fosse pelo motivo de sua pobreza e por não ser amparado pelo estado e nem pela sociedade. Perante a conduta de José Vargas, o seu direito fundamental a liberdade não deve ser restringido pelo direito penal.

Em favor da absolvição da pena de José Vargas, a sua posição na sociedade deve ser importante para a observação da sua culpa, pois a exclusão social teve papel crucial para a sua conduta.

Todo sujeito age numa circunstância dada e com um âmbito de autodeterminação também dado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarrega-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, uma ‘coculpabilidade’, com a qual a própria sociedade deve arcar. (ZAFFARONI apud GRECO, 2014, p.421)

 

A teoria da vulnerabilidade foi elaborada por Zaffaroni e tem como ideia principal a redução da culpabilidade para aqueles que têm as maiores chances de sofrer punições do direito penal. Para esta teoria, não é só na pobreza que reside a causa maior da criminalidade. A criminalidade está presente todas as camadas sociais, entretanto somente alguns setores da sociedade se encontram mais vulneráveis a punições severas [...] Conclui-se que para a teoria da vulnerabilidade o que se pretende é a justiça e igualdade entre os desiguais, ou seja, uma atenuante para aquele que cometeu o delito porque é desprovido de condições sócioeducacionais, destituído de proteção familiar e dotado de características físicas vistas com preconceito. A teoria da vulnerabilidade busca adequar a pena às condições pessoais do agente de forma contextualizada. (DAMASCENO, 2014)

Por meio de todos os fundamentos expostos a cima, o réu José Vargas deverá ser absolvido de sua pena privativa de liberdade de 6 (seis) meses de reclusão em regime semiaberto, a sua culpa é reduzida devido a falta de amparo recebido pelo estado e a sociedade, deixando-o em uma posição inferior aos demais, ferindo assim o princípio da igualdade , pois o estado vem se mostrando ineficaz ao criar politicas publicas suficientes para promover a igualdade. Além disso, a conduta torna-se atípica pois a lesão ao bem jurídico foi de teor insignificante, excluindo qualquer necessidade de intervenção do direito penal para punir esse cidadão.

REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto.  Tratado de Direito Penal – Parte Geral 1. 15. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

 

BRASIL. Constituição (1988). In: VadeMecum Saraiva. 17. ed. atual. eampl. São Paulo: Saraiva, 2014.

 

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 16. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

 

CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo. Aplicação da Pena e Garantismo. 2 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002.

 

DAMASCENO, Sabine Pereira da Veiga. O que se entende por teoria da vulnerabilidade?. Disponível em: http://www.conteudojuridicio.com.br/?artigos&ver=2.46911&seo=1. Acesso em: 22 mar. 2015.

 

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014.

 

JAKOBS, Gunther; MELIÁ, Cancio Manuel. Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. Org. e Trad. André Luis Callegari, Nereu José Giacomolli. 2. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

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