Geografia: Ana Fani e A produção da produção
Por João Monti | 26/09/2015 | ArteGEOGRAFIA: ANA FANI E A PRODUÇÃO DA PRODUÇÃO
Autor: João Monti
Vou iniciar uma série de textos em que pretendo comentar artigos publicados por geógrafos brasileiros da atualidade, dos quais, muitas vezes, ostentam a insígnia máxima de “professor titular” de universidades das mais conceituadas do país. Veremos se a qualidade da produção acadêmica desses professores faz jus às honrarias a que foram agraciados (ou se a Geografia – serve para não fazer nada).
Começo por analisar o artigo de Ana Fani Alessandri Carlos. “Novas” contradições do espaço, publicado no livro “Espaço no fim do século: novas raridades”, São Paulo, Contexto, 1999.
Dizem que Ana Fani conquistou grande influência na corporação dos geógrafos universitários. Embora tal informação seja relevante para entender os bastidores do ensino e da pesquisa nas universidades, o que me interessa é, inversamente, a sua produção científica e, por conseguinte, verificar se esta tem a mesma eficácia de seu prestígio pessoal. Vejamos:
O referido artigo promete, como sugere a autora, realizar uma análise das “novas” contradições do espaço – novas está entre aspas – pelo enfoque “de uma economia política do espaço”. Para isso, Ana Fani estabelece, como ponto de partida, a tarefa de “decifrar” o “nosso [dela] entendimento sobre o espaço geográfico” (p. 62); “decifrar” esse que não seria, conforme explicita o texto, um discurso sobre o espaço, mas, sim, um “revelar, na medida do possível, a produção do espaço numa teoria” (p. 62), algo que deve ser elaborado por “uma atividade do pensamento abstrato” (p. 62). Depois, afirma o argumento, atribuído a Henri Lefebvre, de que, se a prática social é passível de ser observada empiricamente, não ocorre o mesmo com a “problemática do espaço”, a qual só pode ser formulada no “plano teórico”, composta “de uma interrogação” (?), porque, de acordo com ela, a produção de conhecimento é a produção de conceito.
Nas palavras de Ana Fani:
“O desafio que se coloca, inicialmente, é como é possível orientar a análise de uma ‘economia política do espaço’. Em primeiro lugar é preciso decifrar como ponto de partida, nosso entendimento sobre o espaço geográfico. Isto porque não se trata de produzir um discurso sobre o espaço, mas de revelar, na medida do possível, a produção do espaço numa teoria. Colecionar fatos não nos conduz a lugar algum no que se refere à tentativa de desvendar os conteúdos mais reveladores do espaço geográfico enquanto espaço histórico e social. E isso é uma atividade do pensamento abstrato. Como afirma Lefebvre, em La production de l’espace, a prática social se observa empiricamente, mas a problemática do espaço é formulada no plano teórico, compõe-se de uma interrogação, isto porque a produção do conhecimento diz respeito à produção de conceitos” (p. 62).
Inicialmente, além do estilo empolado, presunçoso e cheio de clichês, o desafio proposto, de orientar a análise de uma “economia política do espaço”, só fica nesse inicialmente e para por aí mesmo. Tudo o que Ana Fani não faz nesse artigo é analisar a produção do espaço sob o ângulo da economia política. Para isso, bastaria situar o trabalho no cerne da produção de mercadorias e, por conseguinte, a transformação do espaço em mercadoria pelo trabalho. Mas que espaço? Espaço não é sinônimo de espaço geográfico e não se justifica o abuso do termo apenas para atender fins corporativos de uma área do conhecimento. A associação direta entre espaço e espaço geográfico nunca fica clara no texto de Ana Fani, chegando ao ponto de, em certo momento do artigo, também logo no início, abandonar inteiramente o geográfico. Sendo assim, antes de retornarmos ao parágrafo citado acima, vejamos como Ana Fani decifra o espaço geográfico:
“É conveniente insistir que o espaço geográfico articula duas dimensões, aquela da localização (de um ponto do mapa) e aquela que dá conteúdo a esta localização, que o qualifica, singulariza. Este conteúdo é determinado pelas relações sociais que aí se estabelecem – o que confere ao espaço a característica de produto social histórico. Mas por ter uma materialidade indiscutível, o processo espacial tem uma dimensão aparente, visível na paisagem geográfica marcada pela heterogeneidade própria dos lugares, mas que também aponta o reprodutível, e nesse caso também contém um mundo de imagens, formas, aparências que apontam para a tendência à homogeneização de nossa sociedade e que podem ser melhor apreciadas na paisagem urbana da grande metrópole” (p. 65).
É conveniente insistir que nem sempre um ponto do mapa (localização) tem um conteúdo determinado pelas relações sociais que aí se estabelecem. Um ponto no oceano Pacífico não representa um conteúdo determinado pelas relações sociais que aí se estabelecem, porque nenhuma relação social se estabelece no meio de uma imensidão de água por muito tempo, e nem por isso o oceano Pacífico deixa de ser espaço geográfico. Um ponto no oceano Pacífico é espaço geográfico porque ele é uma representação, de um acidente geográfico, relativa ao processo de constituição da geografia no contexto da formação dos Estados nacionais e da expansão da economia capitalista. Ou seja, não há uma relação de identidade entre forma e conteúdo, apenas uma construção de ordem epistemológica e abstrata sob a perspectiva de um conhecimento específico no quadro das ciências.
Desfeito esse embaraço, do espaço geográfico, podemos voltar ao início do texto. (O restante do parágrafo do espaço geográfico será comentado mais adiante).
Naquele pequeno preâmbulo, confuso, é verdade, como também será todo o texto, já há muita informação e é preciso considerar os pressupostos metodológicos que são assumidos pela autora desde o início. Em primeiro lugar, segundo Ana Fani, para orientar a análise de uma economia política do espaço é preciso antes decifrar o que se entende por espaço geográfico (já foi decifrado acima), algo que não seria um discurso sobre o espaço mas revelar a produção do espaço numa teoria. Nota-se um grande equívoco logo de saída, pois, Ana Fani distingue discurso e teoria. A julgar pela proposição da autora, teoria prescindiria da linguagem, pois teria a capacidade quase teológica de revelar positivamente a natureza das coisas (verdade em si). Ora, teoria, em sentido moderno, é precisamente discurso. (O sentido antigo de teoria, sim, é “contemplação”). A própria Ana Fani se desdiz ao afirmar, mais abaixo, que conhecimento é produção de conceito. Sem dúvida, a matéria prima dos conceitos não é uma entidade oculta que está vagando por aí, no mundo das ideias, para ser absorvida misteriosamente pelo pensamento abstrato, que, através dela, produz conceitos. Na realidade, o conhecimento surge de uma atividade especializada, prática e social, que visa descrever (conceitos), sob o prisma de determinado método, os fatos (objetos) a serem investigados por certa disciplina. Em vista disso, toda teoria é, não apenas discurso científico, mas, acima de tudo, discurso sistematizado, racional, sobre os mais variados assuntos, como a estética, o teatro, o esporte etc. Logo, ao contrário do que propõe Ana Fani, trata-se justamente de produzir um discurso sobre o espaço e sua produção. Em seguida, Ana Fani opera uma separação radical entre prática social empírica e problemática do espaço que só pode ser acessada, de acordo com ela, no plano teórico. Tal divórcio pode ser desdobrado numa inflexão negativa (subentendida) e outra positiva, do seguinte modo: a) a prática social se observa empiricamente, (por isso) não se compõe de uma interrogação, isto porque não é produção de conhecimento, que diz respeito à produção de conceitos; b) problemática do espaço é formulada no plano teórico, compõe-se de uma interrogação, isto porque a produção do conhecimento diz respeito à produção de conceitos. E aqui fica patente a filiação deliberada, por parte da autora, à escola do idealismo filosófico. Por isso, o problema do espaço – e aqui se pode entender também o espaço geográfico, já que a autora não distingue nem um nem outro – não diz respeito à prática social, empírica, concreta, que pode, inclusive, ser observada (e por isso não se compõe de “uma interrogação”), mas, de modo inverso, à prática teorética, que só pode ser devidamente formulada em seu próprio nível, exterior, isto é, no plano teórico, conceitual e ideal, alheio à pratica social empírica. Quer dizer, a realidade (prática social empírica) não pode ser conhecida senão quando se está fora da realidade (prática social empírica). Portanto, todo trabalho consiste em abstrair a problemática do espaço do mundo real e raptá-la para o mundo do pensamento puro (pensamento abstrato, literalmente, “separado”).
Nota-se ainda que nada prova que a prática social empírica não se compõe de uma interrogação, e que, com isso, por si só, seria “transparente” e dispensável à analise, apenas a afirmação peremptória de Ana Fani que, no entanto, se exime de toda responsabilidade, imputando-a, convenientemente, a Henri Lefebvre. Na verdade, Ana Fani devia imputar a seguinte passagem a Edgar Morin. Vejamos:
“Como afirma Lefebvre, em La production de l’espace, a prática social se observa empiricamente, mas a problemática do espaço é formulada no plano teórico, compõe-se de uma interrogação, isto porque a produção do conhecimento diz respeito à produção de conceitos” (p. 62, grifado por mim).
E mais adiante, Ana Fani argumenta que o trabalho intelectual consiste em “‘desmistificar’ ou descobrir o sentido de representações que permeiam a vida cotidiana no mundo moderno com seus modelos de felicidade e bem-estar” (p 62, grifado por mim).
No capítulo “A cultura planetária”, do livro de MORIN (Edgar) “Cultura de massas no século XX (o espírito do tempo)”, Rio de Janeiro: Forense, 1967 [“L’esprit du temps”, 1962], o referido autor escreve o seguinte:
“Em toda parte onde o desenvolvimento técnico ou industrial cria novas condições de vida, em toda a parte onde se esboroam as antigas culturas tradicionais, emergem as novas necessidades individuais, a procura do bem-estar e da felicidade” (MORIN, 1967, p. 166).
“Isso significa igualmente, que (...) a cultura de massa favorecerá em profundidade, numa segunda fase o desenvolvimento dos valores e dos modelos do individualismo, do bem-estar e do consumo” (Ibidem, p. 171).
No capítulo seguinte:
“São os mitos-modelos da realização privada, da felicidade privada” (Ibidem, p. 183).
E, curiosamente, no capítulo “O espírito do tempo”, Morin introduz o capítulo com o seguinte subtítulo “A interrogação” (Ibidem, p. 173).
Coincidência, não?
Mas, em vista dessa defesa do idealismo, daí a importância conferida, pela autora, à análise, que aparece como sujeito (impessoal, abstrato e transcendental), que, por si, organiza do alto a empiria, sem, no entanto, tocá-la.
Ao cavar um abismo entre teoria e empiria, e interditar a análise a iniciar-se a partir da prática social empírica, pois, segundo a autora, seria como “colecionar fatos [que] não nos conduz a lugar algum no que se refere à tentativa de desvendar os conteúdos mais reveladores do espaço geográfico enquanto espaço histórico e social”, ironicamente, os conteúdos empíricos não podem ser “revelados” a partir da forma enquanto forma, sendo preciso chegar aos fatos (!), o que faz com que Ana Fani, em certo momento do seu artigo, como veremos, passe justamente a colecionar fatos!
Mas tal perspectiva idealista é no mínimo estranha em se tratando de um texto que, supostamente, se apoiaria na obra de Henri Lefebvre, pensador materialista que tanto bebeu na fonte de Marx e Nietzsche. Este último, por sinal, desprezaria tal proposição de Ana Fani como mais uma manifestação do execrável niilismo, na medida em que Ana Fani renuncia a realidade empírica (pratica social), da vida, para encontrar respostas dentro da caverna, no universo etéreo das ideais. O fato é que o próprio Henri Lefebvre, tendo por base a filosofia nietzschiana, rejeitaria tamanha defesa da espisteme (no caso, a lógica formal), insistindo no valor do irredutível (ao conceito), isto é, à própria vida vivida, cotidiana (prática social empírica), através de um conhecimento amparado na poiesis (ver a obra “Metafilosofia” do referido autor).
Tendo reconhecido, logo de partida, que a problemática do espaço não é a do mundo mas, sim, do espaço celestial, Ana Fani deixa claro seu entendimento sobre o trabalho intelectual que, conforme já se percebe, é puramente contemplativo e especulativo. E então ela demonstra sem meias palavras sua total indisposição com a pedra angular da filosofia marxista (e por tabela, a lefebvriana): a práxis. Diz ela: “O trabalho intelectual, (sic) preocupado com a interpretação do mundo não produz sua transformação (...)” (p. 62). Só para que não restem dúvidas, cito a célebre 11ª. tese de Marx contra Feuerbach: “Não se trata de compreender o mundo, mas de transformá-lo”. Ao que parece, para Ana Fani, o trabalho intelectual consiste somente em “‘desmistificar’ ou descobrir o sentido de representações que permeiam a vida cotidiana no mundo moderno com seus modelos de felicidade e bem-estar” (p 62). Tudo se passa como se o intelectual fosse um ser superior e iluminado que, por mera generosidade, resolve ensinar às pessoas comuns – que vivem imersas nas trevas e no caos do mundo profano do dia a dia – a verdade que está, segundo Ana Fani, por trás de representações, como felicidade e bem estar. Realmente, Ana Fani parece sofrer, com essa afirmação, de uma profunda recaída no iluminismo mais ingênuo.
Mas, após reabilitar a escolástica, Ana Fani cita, curiosamente, outro autor materialista, desta vez, Walter Benjamin. Citação gratuita que, aliás, aparece extemporânea, é intempestiva e despropositada, e de caráter puramente ornamental. Pois, simplesmente, é inaceitável que um livro inteiro de Walter Benjamin, no caso, “Rua de mão única”, citado na bibliografia, mereça uma citação de apenas uma linha!
Tal citação de Benjamin aparece para justificar a maneira como Ana Fani entende o trabalho intelectual, ao qual me referi acima. Vejamos:
O trabalho intelectual, preocupado com a interpretação do mundo, é um passo importante na desmistificação ou descoberta das representações... “Antes de mais nada, permite trazer à tona a questão formulada por Benjamin: ‘será que o gosto pelo mundo de imagens não se alimenta de uma resistência contra o saber’” (p. 62).
A citação de Benjamim – autor que, aliás, goza de grande reputação no meio acadêmico (e citá-lo [por citá-lo], sem dúvida, é um bom capital simbólico na universidade) – é como a “ponta de iceberg” que mostra a principal característica do artigo de Ana Fani, isto é, uma coleção de fórmulas de autores (Henri Lefebvre, principalmente) transplantadas pura e simplesmente para o seu texto, quase como um dever de casa, obrigatório, uma profissão de fé.
O artigo também possui grandes problemas estilísticos, cheio de jargões ao gosto acadêmico, também jogados gratuita e demasiadamente nas frases, aos quais vou me ater de comentar em pormenores.
Com relação ao tema, a produção do espaço, o termo espaço, como já foi assinalado acima, é totalmente acessório, e se fosse suprimido do texto não faria a menor diferença, o texto não perderia em nada o seu sentido. Mais uma vez pode se dizer que a inclusão da noção de espacialidade aparece atendendo a fins exclusivamente corporativistas, do que um conceito propriamente necessário. Se o “objeto” de estudo da geografia é o espaço, então o espaço tem de aparecer a qualquer custo.
Depois de tomar como ponto de partida decifrar o entendimento [dela] de espaço geográfico, Ana Fani toma outro ponto de partida (?), desta vez a categoria trabalho, pois, afinal, o tema do artigo é sobre “economia política do espaço”! Realmente, Ana Fani se lembra, num único parágrafo, do trabalho, “considerado como processo produtor do espaço geográfico”, para logo depois esquecê-lo no restante do artigo.
Daí em diante, o texto até começa bem, ao se referir ao argumento de Henri Lefebvre que distingue a produção em dois sentidos, um restrito e outro amplo. Veremos que esta referência é um artifício para fugir do tema em questão, a saber, “uma economia política do espaço”. Nas palavras de Ana Fani:
“Em várias de suas obras, Lefebvre se refere à importância de considerar os dois sentidos de produção: o stritu senso (sic), que se refere à produção de bens e mercadorias, e o latu sensu, que se liga à ideia de que o que se produz também são relações sociais, uma ideologia, uma cultura, valores, costumes, etc.” (p.63).
Antes de prosseguir, devo aqui fazer uma reparação no uso incorreto da ortografia do latim, embora não seja de todo comprometedora, diante do que está por vir. Porém, não posso deixar de chamar atenção para um erro crasso que poderia despertar a ira de um latinista ciceriano zeloso pelas tradições clássicas. Foi-se o tempo, aliás, em que um professor universitário era versado não apenas em latim, mas no grego antigo também! Naqueles tempos, citações de expressões latinas conferiam a um texto certa elegância e erudição. Mas o que dizer do artigo de Ana Fani? O correto é stricto sensu.
De qualquer forma, afora o deslize ortográfico do idioma que originou nossa flor do Lácio, depois dessa referência muito apropriada, o texto se perde em um imbróglio tão espantoso, que chega a ser difícil acreditar que alguém possa realmente levar a sério o que está nele descrito.
Para se ter uma ideia do que estou falando, analisemos, primeiramente, esta frase:
“A reprodução coloca a perspectiva de compreensão de uma totalidade que escapa ao plano econômico, abrindo-se para o entendimento da sociedade em seu movimento, o que pressupõe a totalidade” (p. 63).
Ora, essa frase não significa absolutamente nada!
Vejamos, primeiro, o que Ana Fani quer dizer com reprodução.
Mais acima está a resposta:
“...reprodução refere-se, de um lado, ao processo de realização e acumulação de capital, por outro, sinaliza o processo de desenvolvimento da sociedade humana” (p. 63)
Pois bem! Se a reprodução é, de um lado, o processo de realização e acumulação de capital (...), como, então, a reprodução coloca, de outro lado, a perspectiva de compreensão de uma totalidade que escapa ao plano econômico? É preciso fazer muito malabarismo verborrágico para explicar como a reprodução, sendo ela em parte econômica, escapa ao plano econômico.
Aliás, como definir uma totalidade em que algo lhe escapa? Se o plano econômico lhe escapa, então, não é rigorosamente totalidade.
Ora, só para não deixar as coisas no ar e colocar os pingos nos is. A noção de totalidade é própria da metafísica e da filosofia racionalista. Totalidade pressupõe uma sequência dedutiva que parte de um princípio que engloba todo um encadeamento lógico, nos mínimos detalhes, sem deixar nada escapar, e que já está desde sempre contido no princípio. Ou seja, totalidade envolve a noção de sistema. Aqui Ana Fani pega a dialética hegeliana pelo rabo, misturando alhos com bugalhos, já que tem por referência autores materialistas, como são Marx e Lefebvre.
Ou seja, ouviu o galo cantar e não sabe onde.
Aliás, esse é o grande mistério do artigo a ser decifrado. Como, através de uma perspectiva idealista, tratar de pensadores notoriamente materialistas? Essa proeza é o que estamos penosamente tentando descobrir em nossa crítica.
Continuemos.
Essa “perspectiva de compreensão de uma totalidade [...]” abre (!!!) “para o entendimento da sociedade em seu movimento [...]” .
Só para registrar: compreensão [...] abre para o entendimento [...]. Ou será o inverso?! O entendimento abre para a compreensão?! Ou a compreensão abre para o entendimento... Eis a questão!
Mas a tal perspectiva, como se diz, abre para o entendimento da sociedade em seu movimento...
Que movimento? Não há uma única referência desse movimento no texto, nem anteriormente nem posteriormente. Se Ana Fani pensa que nos engana com um truque barato, envernizado por pretensa dialética, ela pode tirar o cavalinho da chuva! Pois nem mesmo a dialética hegeliana infere seus termos de modo dedutivo e arbitrário. Qual é o movimento da sociedade? O espírito, a luta de classes? Simplesmente, Ana Fani não sabe! E desafio alguém, tomando o texto em questão, dizê-lo.
Vejamos ainda um pouco mais dessa frase no mínimo obscura:
“...uma totalidade [...] da sociedade em seu movimento, o que pressupõe a totalidade” ou, o que dá na mesma, “...totalidade [...] que pressupõe totalidade”, já que não sabemos que movimento é esse.
Nada mais a dizer sobre isso: tautologia pura!
Depois dessa fraseologia completamente vazia, Ana Fani inicia outra frase com a conjunção “portanto”, que tem função anafórica e indica ideia de conclusão. Portanto, Ana Fani arremeda a frase anterior com uma frase ainda mais intrigante. Vamos a ela:
“Portanto, a noção de produção articulada àquela de reprodução das relações sociais latu sensu – num determinado tempo e lugar” (p. 63).
Ora, a produção, como vimos, já implicava uma produção stricto sensu e outra produção lato sensu. Não há razão, ou melhor, não faz sentido a noção de produção estar agora desmembrada numa reprodução das relações sociais lato sensu! Tanto a produção estrito senso quanto a produção ampla envolvem reprodução. Quanto a estar determinado num tempo e lugar, isso é óbvio; não estariam elas a vagar no vácuo! Quanto à totalidade da totalidade, isso permanecerá sempre um mistério em seu movimento...
Depois, de maneira completamente intempestiva, Ana Fani muda completamente de assunto, introduzindo, porém, um “isto porque”, para explicar o que foi dito sem, no entanto, explicar nada. Se formos condescendentes, no máximo, podíamos entender esse “isto porque” como um infeliz recurso de retórica.
“Isto porque – como aponta Lefebvre -, as relações sociais têm uma existência real enquanto existência espacial concreta, na medida em que produzem, efetivamente, um espaço, aí se inscrevendo e se realizando” (p. 63).
Ora, não precisamos do apontamento de Lefebvre para saber que as relações sociais têm uma existência real enquanto existência espacial concreta. Isso é o obvio ululante!
Descarte já ensinava, todo o corpo é extenso, e, Kant, o espaço é continente (no caso, categoria a priori da intuição).
Porém, essa ideia, atribuída à lavra lefebvriana, também é bastante intrigante, porque, no fundo, tem o mesmo teor do velho paradoxo do quem nasceu primeiro, ovo ou galinha? Vejamos:
“[...] as relações sociais têm uma existência real [...]” – pergunta-se, como seria uma existência não real das relações sociais? – ah, sim! só existem enquanto existência espacial concreta [...]” – ou seja, choveu no molhado: as relações sociais existem, realmente, como existência espacial concreta (!!!) – pergunta-se, existiriam sem corporeidade, sem materialidade? Eu só existo porque tenho corpo! – “[...] na medida em que produzem, efetivamente, um espaço, aí se inscrevendo e se realizando [...]”.
Traduzindo: As relações sociais só existem porque existem como espaço concreto ao produzir espaço (abstrato ou concreto?) e, sendo espaço (concreto), ao se inscrever nele, se tornam reais!!!
Se não fosse um texto científico, bem que seria um bom trava línguas:
Em um ninho de mafagafos havia sete mafagafinhos; quem amafagafar mais mafagafinhos, bom amagafanhador será.
Ou uma charada:
Qual é a cor do cavalo branco de Napoleão?
Perdoem-me a brincadeira; não pude resistir: Ridendo castigat mores, dizia Juvenal em bom latim!
Vejamos mais alguns exemplos:
“Assim o plano da produção articula a produção voltada para dois planos” (p. 64).
“No primeiro caso – a reprodução de mercadorias – envolve o reproduzível e o repetitivo, referindo-se, diretamente, à atividade produtiva que produz coisas no espaço ao mesmo tempo que produz o espaço, enquanto mercadoria” (p. 64).
“Como o processo de produção é contínuo, como o é o processo de reprodução da sociedade como um todo, a análise sobre o modo pelo qual as relações se reproduzem concretamente produzido, ou melhor, reproduzindo o espaço, impõe-se no momento atual” (p. 64).
“As relações entre processo de produção-desenvolvimento das forças produtivas, (sic) produzem no mundo moderno, (sic) novas possibilidades de realizar a acumulação, que em sua fase atual, liga-se cada vez mais à produção do espaço – produção que se coloca numa nova perspectiva, onde novos lugares ganham valor de uso” (p. 64).
“O processo de reprodução do espaço a partir do processo de reprodução da sociedade se realiza, hoje, produzindo novas contradições – suscitadas pela extensão do capitalismo, o que nos coloca diante da necessidade de aprofundar o debate em torno da contradição entre espaço público e o privado, espaço do consumo-consumo do espaço, abundância relativa da produção-novas raridades, fragmentação-globalização do espaço” (p. 64).
Não se preocupem em entender o que está escrito, porque não há o que se entender aí. Prossigamos!
Produzir produzindo o reproduzível do produzido produto... moderno, atual, novo, hoje, atualmente...
Tudo isso em menos de vinte linhas. Se Ana Fani acredita que as mistificações do cotidiano serão desmistificadas (perdoem-me a redundância!) através de seu texto, ela não tem a menor consciência do que está a propor. Na verdade, ela só vai trazer mais confusão na cabeça de seus pobres leitores!
E nesse quesito, Ana Fani é mestre na arte de dizer a mesma coisa de modo diferente sem dizer nada.
Nota-se que não há nexo semântico nenhum entre as palavras e as frases. Tudo vai sendo despejado num turbilhão de palavras que parecem brotar de si mesmas.
E o texto prossegue nesta toada. Comentar frase por frase seria, como alguém já observou, verdadeira tortura chinesa. O que se sobressai é um texto construído em cima de um tedioso jargão acadêmico, como, por exemplo: “o que significa”, “permeia”, “deve ser entendido”, “suscitada”, “em última instância”, “isto posto”, “posto que” etc. etc. etc., que visa, por si, produzir (!!!) um efeito de conteúdo pela aparência, ao que poderíamos chamar sem erro de fetiche da linguagem.
O que Ana Fani parece não entender é que um texto escrito é um tipo de linguagem e como tal deve ter função comunicativa. Ou seja, deve ter feedback, ainda que não instantâneo. O interlocutor deve participar, através da leitura, do desenvolvimento do texto, compreendendo seu conteúdo, e não se prostrar, diante da forma escrita, numa postura de completa alienação. Aliás, foi-se o tempo em que as missas eram rezadas em latim!
Da minha parte, não há o que explicar nesse artigo; quem tem de explicar o está escrito aí, em bom português, é única e exclusivamente a autora.
Continuemos:
“Todavia o espaço geográfico é produto, condição e meio para a reprodução das relações sociais no sentido amplo de reprodução da sociedade, num determinado momento histórico – um processo que se define como social e histórico; o que significa que há uma relação necessária entre espaço e sociedade que é o cenário que encaminha a análise” (p. 63).
Mais acima eu havia mencionado que a referência ao duplo sentido de produção em Lefebvre era um meio de se esquivar do problema, a análise de uma economia política do espaço. Se, de fato, o desafio era orientar a análise de uma “economia política do espaço”, então caberia focar a produção no seu sentido estrito, da produção de mercadorias. Ora, se o espaço geográfico é produto, condição e meio para a reprodução das relações sociais no sentido amplo de reprodução da sociedade, então o desafio é respondido como uma negativa e a análise desvirtuada. A produção em sentido amplo é, rigorosamente, a produção da essência do ser humano, que não é fixa, mas constituída historicamente. Ela começa no instante em que o ser genérico liberta-se dos determinismos naturais. A produção em sentido restrito refere-se às relações sociais mediadas pela troca de mercadorias (economia). Nas sociedades capitalistas, a economia é o determinante social; isto é, trata-se aqui da produção em sentido estrito, pela qual o ser genérico é reificado, ou seja, transformado em coisa – mercadoria. Portanto, orientar a análise do espaço dentro da economia política implicaria necessariamente em se ocupar desta produção e não da outra.
Ao invés de encarar o desafio, Ana Fani sai pela tangente. Veremos mais adiante o porquê.
Antes, nesta frase, Ana Fani escreve o seguinte: “...cada vez mais o lazer e o flanar, o corpo e os passos são restritos a lugares vigiados, normatizados, privatizados” (p. 64). Aqui chama a atenção a palavra flanar, celebrizada pelo ensaio de Charles Baudelaire “O pintor da vida moderna” (in Poesia e prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995), bem como o ensaio bem conhecido de Walter Benjamin sobre Charles Baudelaire e a cidade de Paris (em Obras escolhidas: “Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo”, São Paulo: Brasiliense, 1994). Sem entrar em detalhes no assunto, Baudelaire toma como valor estético da modernidade o presente, transitório e fluído (ruptura com o passado), e, a partir disso, cria sua lírica com base no prazer embriagante em transitar sem destino pela cidade parisiense, em constante transformação (“A velha Paris não existe mais [a forma de uma cidade/Muda mais rápido, ah! que o coração de um mortal]” – O Cisne), e, com isso, admirar a arquitetura dos edifícios, as diferentes paisagens urbanas, a sua história, e também um certo voyeurismo, em observar, sem ser notado, os transeuntes imersos em sua vida cotidiana; sensações que fazem o poeta pensar a cidade por metáforas como espelho ou caleidoscópio. Grosso modo, segundo Benjamin, o flâneur é um fenômeno tipicamente moderno, da sociedade industrial, e, como tal, dilacerado, não só por causa da embriaguez extática que não extingue a solidão, o anonimato em meio à multidão, do exílio num tempo que destrói e, ao mesmo tempo, recorda o passado, mas, sobretudo, pelas imposições do mundo da mercadoria. Nesse sentido, cabe se perguntar como Ana Fani transpôs, sem reservas, um conceito do século XIX para o final do século XX e limiar do XXI. Como ela operou essa mágica? Caberia, sim, refletir se ainda é possível o flanar nas metrópoles atuais, marcadas por brutal impessoalidade e automatismo, reduzidas à condição de espetáculo (mercadoria) e, tomando-se a própria tese de Ana Fani, sem história (espessura), e, a partir daí, buscar na lírica poética uma experiência análoga à angústia do flâneur, ou descobrir se só restou desespero. O seja, no momento em que artigo esboça um instante de brilho, Ana Fani se furta de seu cintilar efêmero. Assim, “o flanar”, no artigo de Ana Fani, aparece apenas como positividade e de modo descontextualizado. Novamente, Ana Fani cita apenas por citar, numa tentativa de auferir certa reputação de alto nível ao seu artigo, mencionando indiretamente Baudelaire e Walter Benjamin. E, assim, como citou, esquece “o flanar” antes de a poeira abaixar. Talvez, tudo isso porque Ana Fani não compreenda que no capitalismo o espaço público não passa de uma quimera.
O que, no fundo, Ana Fani quer dizer, com melismas e coloraturas desafinadas, é que o espaço se torna mercadoria. O que não é nenhuma novidade. Porém, complica ao tentar abordar o assunto pela dupla determinação da mercadoria (enfatizando principalmente o valor de uso) quando, na verdade, podia partir de uma perspectiva do capitalismo nascente e descrever o processo em que a propriedade privada (imóvel) se torna intercambiável por dinheiro (móvel). Aí, sim, poderia analisar o espaço sob a forma da mercadoria em suas várias etapas. Porém, Ana Fani opera mal os conceitos da economia política, daí sua recusa de encarar frontalmente o desafio temático. Desconsiderando por completo a noção de propriedade privada, talvez, por pura conveniência, Ana Fani quer convencer que o espaço se torna mercadoria quando ele é ressignificado pelo turismo e lazer e daí é privatizado.
“Nessa vertente de raciocínio e tomando como pano de fundo da análise a metrópole de São Paulo, podemos afirmar que existem profundas mudanças [quais?] nos espaços públicos da metrópole – tanto no que se refere à sua diminuição, limitando as formas de acesso aos lugares onde se desenrola a vida [à parte meu, a vida se desenrola ou enrola tanto no espaço público quanto no privado], quanto ao seu uso com transformações nas formas de apropriação do espaço; influenciando, como consequência, às (sic) relações entre o cidadão e a metrópole.
“O processo de reprodução espacial na grande metrópole é influenciado, hoje, pelo desenvolvimento de uma nova atividade produtiva, um novo ramo econômico: o turismo e o lazer. Esta atividade que se articula à tendência da transformação do espaço em mercadoria, traz profundas mudanças, visto que é uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modelos de acesso” (pp. 64 e 65).
E aqui é o que há de mais estarrecedor neste artigo de Ana Fani: toda produção do espaço é reduzida à Disneylândia ou a maçã (“Big Apple”) do ano novo em Nova Iorque!
Talvez, porque Narciso acha feio o que não é espelho, toda a teoria da produção do espaço para Ana Fani se resume à experiência de vida pequeno burguesa. Tudo se passa como se todas as pessoas do mundo pudessem fechar pacotes de turismo e viajar alegremente pelo mundo afora. Ora, será que a autora ignora que metade da população mundial vive abaixo da linha da pobreza, sobrevivendo com apenas 2 dólares por dia (3 bilhões, segundo a OIT [2015], sendo que 1 bilhão sobrevive com menos de 1 dólar diário)? Será que esse contingente extremamente numeroso, de que se compõe a prática social empírica, não interessa à análise do pensamento abstrato? No Brasil, segundo dados do IBGE (2010), 115 milhões (60 % da população brasileira) sobrevivem com menos de um salário mínimo; 50 milhões, com até meio salário mínimo por mês; 16,2 milhões, com 70 reais por mês; e quase 5 milhões não têm renda alguma. Infelizmente, estas pessoas não podem se dar ao luxo de pôr o pé na estrada e borboletear ora em Paris, ora em Nova Iorque, pois lutam sem cessar para garantir o pão nosso de cada dia, o pagamento do aluguel, dos juros do agiota etc. Infelizmente, para a análise, a teoria, a representação de felicidade e bem estar, o estado miserável de mais da metade da população mundial não se constitui de “uma interrogação”.
Porém, Ana Fani não está interessada em pessoas, mas em apreciar e apontar os lugares, as formas, as aparências, as paisagens etc.
“Mas por ter uma materialidade indiscutível [alguém discute isso?], o processo espacial tem uma dimensão aparente, visível na paisagem geográfica marcada pela heterogeneidade própria dos lugares, mas também que aponta o reprodutível, e nesse caso também contém um mundo das imagens, formas, aparências que apontam para a tendência à homogeneização de nossa sociedade e que podem ser melhor apreciadas na paisagem urbana da grande metrópole” (p. 65).
Sem dúvida...
“A metrópole em sua visão de grandiosidade aparece em formas exuberantes, o símbolo do ‘moderno’, marcado por construções arquitetônicas arrojadas – se bem que semelhantes – vias expressas em grande quantidade – pontes, viadutos, túneis, sinalizando a hegemonia do automóvel” (p. 65). [O que vem depois é mais um destes trava-línguas que é desnecessário citar].
Nem sinal da favela, dos cortiços, dos bairros de periferia, das construções em “broco”, do transporte público... Favela, para Ana Fani, talvez, só se for na pacificada e feliz Rocinha!
Para Ana Fani, diferença, só mesmo aquela entre usadores do espaço público (“lugar da comunicação, do diálogo, de morar [na rua?], de brincar, de namorar, de se expor, de conversar, de reivindicar”, p. 66) e usuários de equipamentos coletivos: “uma diferença fundamental” (p. 66).
E aí mais um batalhão de frases prolixas e parágrafos sem nenhum nexo.
Continuemos:
“Por sua vez, as relações de produção que engendram as atividades de repartição e consumo, (sic) se realizam sob a égide de liberdade e igualdade, sob as leis do reprodutível, do repetitivo, anulando diferenças no espaço e no tempo, destruindo a natureza e o tempo social” (p. 66).
À parte: Às vezes, tenho a séria suspeita de que Ana Fani escreve tudo o que vem à sua mente sem muito refletir no que está fazendo. Honestamente, faz algum sentido esta afirmação extraída da frase acima: as relações de produção que engendram as atividades de repartição e consumo, se realizam sob a égide de liberdade e igualdade! Quais são as leis do reprodutível, do repetitivo?! Sob a égide de liberdade e igualdade? Essa pergunta não merece nenhuma resposta. Mas como anular diferenças no espaço e no tempo?! O que Einstein diria sobre isso!!!
Porém, deve ser importantíssimo o que acaba de ser dito, pois está na origem da discussão do espaço turístico e de lazer:
“Essa ideia está na origem da discussão da origem dos espaços turísticos e de lazer produzidos a partir de estratégias de reprodução, num determinado momento da história [ué, não é no fim do século XX?] do capitalismo que se estende cada vez mais para o global, criando novos setores de atividades, dentre elas o turismo, com extensão das atividades produtivas” (p. 66).
“O turismo representa a conquista de uma importante parcela do espaço que se transforma em mercadoria (e que entra no circuito da troca), como é o caso das praias, montanhas e rios, tornando-se um novo e rentável ramo da atividade produtiva, sob esta determinação” (p. 66).
Ora, se é mercadoria não entra no circuito da troca, porque já está lá desde o início. (O que define a mercadoria é justamente o fato de ser um objeto produzido para ser trocado).
Ademais, sei que em muitas regiões de países europeus [apesar de nunca ter saído do Brasil], como a Riviera Francesa, existem muitas praias particulares, mas, ao que me consta, no Brasil, todas as praias são públicas. Talvez, Ana Fani, que tem uma predileção por tudo o que é Reviera, confunda Brasil e França, e desconheça essa informação. Quantos as montanhas (reservas, parques etc.) e rios estão sob a jurisdição da União.
“E nesse sentido os lugares passam a ter existência real através de sua trocabilidade, através da atividade dos promotores imobiliários que se servem do espaço como meio voltado à realização da reprodução” (p. 66).
E antes desse sentido, esses lugares não tinham existência real? Vamos supor que, sendo assim, Saint Tropez não existia antes de sua trocabilidade!
“Desse modo, o espaço é produzido e reproduzido enquanto mercadoria reprodutível” (p. 66).
O que vem a ser uma mercadoria reprodutível? Uma mercadoria que se reproduz por osmose?
Ah, quanta imaginação!
“No contexto em que novas áreas adquirem valor de uso, o processo de apropriação passa a ser determinado pelas leis do mercado, isso é, definido pela sua trocabilidade. Neste contexto...” (p. 66).
Como novas áreas adquirem valor de uso? Por decreto do faraó? O processo de apropriação não deveria vir primeiro?
Na verdade, uma mercadoria só tem valor de uso depois que passa pelo circuito da troca. No processo de produção capitalista, quando se há apropriação, isto é, quando se consome trabalho (o valor de uso do trabalho é produzir valor de troca), e expropriação (mais-valia), a finalidade do produto não é, rigorosamente, o valor de uso. O fundamental do capital é a produção de valor de troca. Somente na esfera do consumo, o produto mercadoria passa a ter valor de uso (deixa de ser, se não for colocado novamente à venda, mercadoria). No cerne da produção capitalista, a materialidade da mercadoria é apenas fenomênica; o essencial é a troca, expressa na seguinte fórmula D-M-D’; ou seja, a valorização do valor. Lições básicas de economia política sob um viés marxista!
“Neste contexto, as parcelas do espaço, sob a forma de mercadoria, se encadeiam ao longo do circuito da troca – a partir de uma estratégia e de uma lógica” (p. 67).
Que parcelas? Como se encadeiam? Que estratégia? Que lógica?
Haja paciência!
“Por sua vez, o espaço dominado, controlado, impõe não apenas modos de apropriação, mas comportamentos, gestos, modelos de construção que excluem-incluem” (p. 67)
!!!!!!!!!!!!!!
“A criação de espaços turísticos e de lazer a partir de novas estratégias [Ana Fani ainda não explicou o que são essas estratégias] interfere na produção de novas centralidades, no sentido em que produzem polos de atração que redimencionam (sic) o fluxo das pessoas num espaço mais amplo” (p. 67).
!!!!!!!!!!!!!!!
“...em nome de um presente programado e lucrativo...” (p. 67)
!!!!!!!!!!!!!!!
“O espaço reproduzindo na perspectiva do eminentemente reprodutível, campo onde o homogêneo triunfa...” (p. 67).
!!!!!!!!!!!!!!!
“Na realidade, a natureza destruída aos poucos pela técnica recria-se de forma artificial, produzindo-se enquanto simulacros, base dos espaços turísticos” (p. 67).
Espera aí! Deixa-me ver se eu entendi. Vamos por parte. Na realidade, isto é, nisso que chamamos de real e que não é o irreal (é preciso frisar bem!), a natureza recria-se de forma artificial, porque foi destruída aos poucos [não seria aos muitos?] pela técnica. Eu particularmente (e acredito que todo mundo) desconhecia essa capacidade natural da natureza se recriar de forma artificial. Se isso for verdade, quer dizer então que um morango, por livre e espontânea vontade, pode ser tornar um chiclete de sabor artificial de morango? E essa forma artificial é um simulacro, base dos espaços turísticos, a natureza recriar-se a si mesma como natureza artificial?
E eis que começa a viagem de Ana Fani. Entendam isso como bem quiserem, até mesmo como um diário de férias.
“Os exemplos tendem a ser cada vez em maior número. Pode-se pensar na Disneyworld, Miami, na Califórnia, que tem a pretensão de se constituir enquanto ‘mundo em si’, com direito a um castelo que só tem fachada, o que significa a redução suprema do espaço à imagem de fachada, feita só para ser vista, a qual sem nenhum referencial, pretende copiar a arquitetura do castelo de Neuschwanstein, na Baviera, feito para o rei Ludwig II” (p. 67).
Afinal, Ana Fani é professora de sociologia, não é? Não?! De geografia! Mas a Disneyworld não fica em Orlando, estado da Flórida, assim como também fica a cidade de Miami?!
Sejamos condescendentes novamente e, para não desconstruir o raciocínio, vamos supor que a Disneyworld foi para Miaimi, que por sua vez foi para a Califórnia, e continuemos bravamente!
Com relação ao “mundo em si”, sempre ouvi falar em consciência-de-si. O que seria um mundo em si? Um mundo autossuficiente, sujeito, autônomo? O noumenon?
Mas atentemos para esta revelação! Quer dizer então que o castelo da Disneyworld é de fachada? Cenário, igual aqueles dos filmes de cinema? Estou chocado! Puxa vida, agora magoou; lá se foram por água abaixo meus sonhos de infância!
Mas o que Ana Fani queria? Que o Mickey, a Minei, o Pato Donald e o Pateta morassem em um castelo de verdade?!!!
E como assim não tem referencial? Ana Fani dá a ficha completa: arquitetura do castelo de Neuschwanstein, na Baviera, feito para o rei Ludwig II. (As informações procedem, acabei de checar na Wikipédia. Só faltou dizer que o castelo foi construído na segunda metade do século XIX, por Ludwig II, o rei “louco” da Baviera, por influência do compositor romântico Richard Wagner. O que significa que o referido castelo apenas remonta estilisticamente à tradição medieval, pois foi construído em plena Era Moderna!).
“Pode ser um castelo como o de Hearst em San Simeon, na Califórnia, EUA, [a geografia está correta agora, com direito a um EUA!] construído a partir de pedaços de igrejas e mosteiros europeus, aonde (sic) vieram se juntar construções recentes; simulando o passado e reunindo num único edifício as mais diferentes épocas, como se fossem a mesma, cria um espaço de representação” (pp. 67 e 68).
E o castelinho da Avenida Brigadeiro Luis Antonio?!
“O pequeno cais – o “píer 39” –, em São Francisco, é um outro possível exemplo (...)” (p. 68).
“Pode ser um centro de cidade completamente simulado, como se vê em San Diego (...)” (p. 68).
“Um outro caso pode ser um pedaço de estacionamento como o de ‘Mallory Square’, em Keys West (...)” (p. 68).
“Pode ser um hotel, que sozinho, se transforma num lugarejo, como o caso de Portillo, no Chile” (p. 68).
“Para citar os casos brasileiros, podemos elencar o Beto Carreiro World, em Santa Catarina, na esteira do sucesso dos parques temáticos; Aquiraz, um cenário de novela da TV Globo, no Ceará, que se transforma num “lugar”; os parques de dimensões na esteira do padrão norte-amaricano, como o Parque da Mônica em São Paulo; ou mesmo lugares menores dentro da metrópole, destinado ao lazer, como o restaurante Os Monges, ou a casa de chá As Noviças, ou ainda a área das cantinas italianas no Bexiga” (p. 68).
Para tratar da produção do espaço, despenca-se da teoria numa coleção de fatos!
Todos estes lugares (“lugares” ou não-lugares), por sinal, estão nas Américas. A julgar pelos exemplos de Ana Fani, o espaço só se torna mercadoria no Novo Mundo.
“Sem exceção, trata-se de espaços dominados por estratégias de marketing e que só tem sentido o que lhe é conferido pelo marketing na medida em que são vistos como uma imagem e um signo de bem-estar e felicidade que apaga suas configurações de mercadoria, mas é redutor da realidade que pretende representar” (p. 68).
As estratégias de marketing (de mercado) ou de publicidade jamais apagam a configurações de mercadoria de um determinado produto, seja uma lata de tomates, seja o ingresso em um parque temático. O mais cruel no capitalismo é que somente pela aquisição de mercadoria pode-se alcançar o estado de bem-estar e de felicidade; o que se apaga, assim como faz o artigo de Ana Fani é, de fato, a mais-valia, a exploração e a miséria do trabalhador.
“Nesse caso, o espaço aparece sem espessura (sem passado, sem identidade, isto é, sem história) geométrico, visual, uma abstração vazia, onde o privado se reafirma e se impõe em detrimento do público” (p. 68).
Só reproduzi esse fragmento, porque ele será importante para o conceito formulado por Ana Fani de “não-lugar”. Nota-se, por ora, o que a autora entende por “espessura”: sem passado, sem identidade, isto é, sem história. Mais adiante farei um comentário a respeito.
“Os casos citados são a expressão do movimento que transforma o espaço em mercadoria, produzindo o consumo do espaço. Uma mercadoria que se constitui sob a égide da simulação e da mimésis, posto que a produção de representações acompanha a criação desta nova atividade econômica” (p. 68).
Fica claro que Ana Fani não define o que é esse espaço. Ao que parece, para ela, o espaço enquanto mercadoria restringe-se a estes grandes ou pequenos empreendimentos, destinados ao lazer ou ao turismo, como, por exemplo, o Parque da Mônica. Entretanto, nada fala sobre a propriedade privada, que subjaz e ultrapassa todos estes negócios, e que está na base do surgimento do capitalismo. Quanto ao conceito de mimesis, há uma discussão bastante aprofundada, sobre a práxis, na obra já citada por mim, “Matafilosofia”, de Henri Lefebvre. Não vou entrar em detalhes aqui, só mencionar que o conceito de mimesis reporta a Platão, que compreende a arte como imitação.
“Lugares que ganham sentido enquanto centralidades de fluxos no plano global atraindo consumidores-turistas do mundo todo, portanto lugares de acumulação, articulados às estratégias de reprodução, cujo papel se redefine constantemente no plano das estratégias globais” (pp. 68 e 69).
Quem são esses consumidores-turistas? Quem faz as estratégias globais? Quem são os promotores? Isso tudo fica no ar, como numa teoria da conspiração; Ana Fani nunca explicita quem são estes sujeitos. Seriam os burgueses, os capitalistas, os gestores, o capital? Quem?
Em seguida, o texto segue falando sobre o papel da mídia em produzir estímulos que induzem os consumidores a frequentar estes “lugares”.
E aí Ana Fani narra a passagem do ano em Nova Iorque. Relato com uma riqueza de detalhes tão grande, que me faz ter certeza de que mesma é testemunha ocular da história, tendo investigado o fato in loco. A citação é longa, mais vale a pena (as observações entre colchetes são sempre minhas):
“O ano novo em Times Square, Nova York, é o exemplo mais claro do poder da mídia em fabricar representações; mas aqui ela vai mais longe, pois consegue vender ‘o nada’ (!!!). [Agora não adianta reclamar e pedir o dinheiro de volta!]. Por volta das 10 horas do dia 31 de dezembro, a massa de quase um milhão de pessoas começa a se acotovelar nas avenidas Sétima e Oitava – em áreas pré-determinadas pela polícia de Nova York [evidentemente, não seria a polícia de Londres ou de São Paulo], que coloca cavaletes para sinalizar as áreas que podem ser ocupadas e com isso permitir a evacuação imediata, pelas ruas transversais das avenidas que desembocam em Times Square, depois da festa [nada como polícia de primeiro mundo!]. Nesta praça apertada e de tamanho insignificante, há uma bola e um locutor que vai anunciando os minutos que faltam para o ano novo. O interessante é que não se vê absolutamente nada [não é verdade, alguém viu a bola e um locutor!]: a multidão e o espaço exíguo não permitem [as cabeças na frente constituem obstáculos; aí o conselho é esticar bem o pescoço ou subir na guia]. Também não há muito o que ver [de fato, só a bola e um locutor], é só saber que se está num lugar em que a mídia define como ‘o lugar’ [Obama definiu Lula de “o cara”; a mídia não gostou muito e redefiniu “o cara” de Obama] estar na noite do dia 31 de dezembro em Nova York. A multidão, massa disforme de corpos, se aglomera nas duas avenidas [gente suada, desodorante vencido...], voltada para a direção de Times Square, quase sem se olhar [eles estão tentando enxergar a bola!]. Aqui parece não haver prazer, nem desejo, apenas a expectativa passiva da chegada da meia-noite. [Mal posso esperar!]” (p. 69).
“À meia-noite [quer dizer, dez segundos para a meia-noite], então, o que acontece? [O quê? O quê? – suspense no ar...] O locutor faz a contagem regressiva [dez, nove, oito... ah, não! é em inglês: ten, nine, eight, seven, six, five, four, three, two, one...], uma bola branca é solta no ar [para onde foi a bola?! para onde foi a bola, alguém viu?!], mas poucos podem ouvir ou ver [sem dúvida, quem chegou primeiro]. A massa acotovelada nas avenidas [tem um gringo com um cotovelo no meu olho!] grita por um ou dois minutos: “happy new year!” [tradução: “feliz ano novo!” – puxa, lá na Praia Grande todo mundo grita também, só que não tem bola nem locutor], e depois se dispersa ruidosamente [where is the ball?], será que satisfeita? [não tenho a menor dúvida] Só uma poderosa mídia consegue mobilizar tanta gente para o ‘nada’ [até tu, Brutus!]. Aqui se trata indiscutivelmente de mais um espetáculo que representa a não-comunicação em meio à massa de pessoas que se aglomera, olhando para um ponto distante [a bola!] à sua frente onde está Times Square, como se fosse uma ‘Meca (temporária) moderna’ que atrai os olhares e expectativas que não se realizam [estraga prazer!]. O mais assustador é ação dos guardas da polícia que, aos bandos, agem de forma violenta [tolerância zero, prefeito Giuliani], distribuindo cassetadas em quem, segundo um padrão não identificável [então eles dão bordoadas em todo mundo!], se comporta de forma inadmissível [bêbados felizes e inconvenientes – o ser humano é igual em qualquer lugar do mundo!], ‘confinado’ num espaço pré-determinado [famoso chiqueirinho; já apanhei muito também!]” (p. 69).
“Os americanos são mestres na arte do espetáculo que produzem [e em dar borrachadas na cabeça de bagunceiros de plantão]” (p. 70).
E nós, latinos americanos, não somos americanos também? Só porque estamos aqui em baixo, no mapa, devemos ser ignorados? E, como assim, os americanos são mestres na arte do espetáculo que produzem? Isso é o mesmo que dizer que os americanos são mestres em produzir bolas brancas e vender o “nada”?
Depois da passagem do ano em New York, aliás, um raro momento de clareza no texto, é hora de curar a ressaca numa lanchonete, afinal, como diz o dito popular, saco vazio não para em pé. No primeiro do ano, a odisseia de Ana Fani por Nova Iorque vai levá-la a novas peripécias, inauditas para grande parte de nós tupiniquins:
“A lanchonete da rede Planet Hollywood, na rua 52, em Nova York, é um exemplo significativo de um comportamento imposto pelo cotidiano programado. Antes mesmo de abrir suas portas, atrai filas imensas de gente que se reveza, ao longo do dia, ininterruptamente, esperando – pacientemente e ordenadamente – [que sufoco, heim Ana Fani?! Aqui em casa a gente come a sobra da farofa do Reveillon e ninguém fica estressado] não só por um lugar para comer, mas também para comprar objetos com o logotipo da lanchonete. Lá dentro a música alta e os programas, feitos especialmente para passar nos telões instalados estrategicamente em vários pontos, mostram o glamour do cinema de Hollywood, onde estrelas megalomaníacas, donas da rede, aparecem” (p. 70).
Na verdade, estas estrelas de Hollywood não são nem um pouco megalomaníacas e, sim, muito espertalhonas.
“E, assim, lugares ganham uma centralidade saturada de objetos, logo, vazias de sentido” (p. 70).
Eis uma construção de frase tipicamente ao estilo de Ana Fani. Aqui a palavra logo tem a mesma função de portanto, indicando conclusão de um raciocínio. Não há nada intrínseca e semanticamente em “centralidade saturada de objetos” que sugira carência ou esvaziamento de sentido. O leitor apenas tem de aceitar isso e pronto.
“O espaço turístico se liga, diretamente, ao plano do consumo do espaço enquanto lugar de acumulação, articulado às necessidades de reprodução da sociedade” (p. 70).
Ana Fani já não tinha dito essa frase ipsis litteris antes?
“É consequência do fato de que hoje no mundo moderno não se produz apenas mercadorias convencionais como mesa, roupas ou cadeiras, mas o espaço voltado ao consumo” (p. 70).
É consequência do fato de que hoje no mundo moderno se produza também sofá, prateleira, geladeira, fogão, automóvel, computador, telefone... e uma infinidade de outros produtos. Quanto ao espaço, há muito que se produzem casas, apartamentos, clubes, cinemas, parques, shopping center etc. que, ao que me consta, são voltados para o consumo. Não é algo que diz respeito exclusivamente ao mundo moderno de hoje.
“Aos espaços turísticos acrescentamos aqueles destinados ao lazer – dentro da metrópole – são também lugares que guardam ou produzem criando uma centralidade que direciona o fluxo de pessoas, consumidores em potencial. No caso das áreas de lazer da metrópole paulista, estas surgem como decorrência do processo de urbanização que adensa e amplia a malha urbana, transformando periodicamente, áreas inteiras; muitas entram no circuito de atração dos habitantes como polos de lazer pago – áreas de restaurante, bares, casas noturnas, etc., e acabam se tornando meio de segregação espacial, posto que o acesso pago restringe o público. Neste contexto, produz-se centros na metrópole que ganham funções e significados diferenciados, em função da construção e da necessidade de áreas lazer” (p. 71).
Puxa vida, agora até eu me perdi!
Vamos por parte:
“Aos espaços turísticos acrescentamos aqueles destinados ao lazer (...)”. Ué, os espaços turísticos não são espaços de lazer? O correto não seria dizer que os espaços de lazer não são necessariamente espaços turísticos?
Os espaços de lazer, que estão dentro da metrópole (podiam estar dentro de cidades médias e pequenas, ou mesmo fora, na zona rural), “guardam ou produzem criando uma centralidade que direciona o fluxo de pessoas (...)”. Os espaços de lazer guardam centralidades, produzem criando centralidades? Direciona o fluxo de pessoas para onde, para as centralidades? Sem comentários.
Com relação à metrópole paulista: os espaços de lazer surgem “como decorrência do processo de urbanização que adensa e amplia a malha urbana, transformando periodicamente, áreas inteiras”. Isso me parece natural. A malha urbana é ampliada e adensada com o processo de urbanização; afinal, o que é urbanização senão o aumento da população urbana em relação à camponesa e a transformação de regiões campestres em urbanas? E que nesse processo apareçam áreas de lazer, isso também me parece razoável, afinal, “nem só de pão viverá o homem” (Deuteronômio 8:3).
Espaços de lazer que “entram no circuito de atração dos habitantes como polos de lazer pago – áreas de restaurante, bares, casas noturnas, etc., e acabam se tornando meio de segregação espacial, posto que o acesso pago restringe o público”. Posto que o acesso pago restrinja o público, isso é evidente. Desde o início do capitalismo, quando sequer existia o tempo livre ou a indústria do entretenimento e a cultura de massa, e ainda nos tempos atuais, quem não tem dinheiro (isto é, o proletariado) é segregado. Assim foram os bairros operário, repletos de cortiços, doenças e penúria, no auge da Revolução Industrial; e assim é até hoje. Não é o espaço de lazer que segrega, mas o capitalismo!
“As atividades produzidas no contexto das atividades de lazer apontam para contradição entre espaço de consumo-consumo de espaço. O que ilumina outra contradição: a capacidade de cada vez mais o espaço se reproduzir no plano do mundial sem impedir sua fragmentação em pequenas parcelas apropriadas individualmente, segundo as exigências da reprodução, no plano local” (p. 71).
Ilumina a contradição?!!! Em primeiro lugar, “espaço de consumo-consumo de espaço” não é uma contradição e, sim, uma identidade. Se um parque temático é um espaço de consumo, então é de se esperar que haja um consumo deste espaço, isto é, uma certa clientela que paga para estar nele. Seria contradição se num espaço de consumo as pessoas não consumissem este espaço: espaço de consumo-não consumo de espaço. Aristóteles ensinou em sua lógica que o princípio de não-contradição, que deve ser evitada pela lógica formal, é A é não-A, e que o princípio do terceiro excluído, que também deve ser evitado, é A não pode ser A e não-A (isto é, verdadeiro e falso ao mesmo tempo). E Hegel, pai da dialética moderna, ensinou que uma contradição não é oposição (mesa não é telefone, branco não é preto etc.), mas negação determinada (homem não é mulher, claro não é escuro etc.). Também não ilumina a segunda contradição: o fato do espaço se reproduzir no plano global sem impedir sua fragmentação não indica contradição, pois pode haver aí justaposição. A contradição implica, isto sim, uma relação reflexiva.
“Ou, ainda, a contradição entre a abundância relativa de produtos e a constituição do que Lefebvre chama de novas raridades, no caso da produção do espaço onde os lugares ganham novo sentido, seja para o turismo, seja para o lazer – e com isso tornam-se escassos” (p. 71).
Não sei se Ana Fani descobriu um novo método, que consiste em escrever a esmo até que, de repente, apareça do nada a verdade revelada, ou se espera que por força de seus títulos (diplomas) suas ideias sejam engolidas pelos seus leitores (diga-se, pós-graduandos ansiosos por uma bolsa de pesquisa).
Onde está a contradição entre abundância relativa e novas raridades? Ora, se a abundância é relativa, ela pode ser abundância em meio à raridade, sem ser uma contradição. Para ser uma contradição, o correto seria afirmar que a abundância absoluta é (ou coexiste com a) raridade, ao mesmo tempo (é o que se passa no capitalismo). Em segundo lugar, Ana Fani chama de novas raridades a produção de lugares que ganham novo sentido (turismo e lazer) – onde está a raridade aí? Se fossem raros, seria insignificante, reduzido em número, exatamente o inverso do que o texto quer dizer. E o que dizer da proposição “ao ganhar novo sentido se tornam escassos”? Isso, sim, é que é uma escassez de sentido!
Sempre li as novas raridades em Lefebvre do seguinte modo: a produção nas sociedades pré-capitalistas sempre foi muito escassa e dependente dos ciclos naturais. Para resumir, essas sociedades produziam apenas o alimento, o vestuário, a residência etc. Mas a alimentação era insuficiente, pobre e constituía-se basicamente de pão, ervas, enfim, pouca carne; isso quando a fome não assolava, às vezes, continentes inteiros por longos períodos. A moradia, a não ser para aqueles que viviam em castelos (não de fachadas!), era pequena, precária, insalubre etc. A sociedade capitalista, porém, inaugura uma nova fase em que a produção (a riqueza) é exponencialmente infinita. No século XX, em países centrais do continente europeu, com seu histórico imperialista, ocorreu uma superação quase completa do flagelo da fome, algo que tornaria a frase da rainha Maria Antonieta (não a da geografia) profundamente procedente: “se o povo não tem pão, que coma brioches”. Mas, infelizmente, para Maria Antonieta, a França de seu tempo era um país politicamente feudal e a burguesia ainda era a classe revolucionária e o povo estava ao seu lado. Essa perspectiva de produção ilimitada levou a muitos intelectuais, entre os anos de 1950 a 1970 (fase dourada do capitalismo), a cunharem a expressão “sociedade da abundância”. Porém, é quase nessa mesma época, com as crises do petróleo, nos anos 70, que se dá a crise dos recursos naturais. De certa forma, a produção capitalista, dependente de petróleo e extremamente poluidora e nociva à natureza, despertou a consciência do problema do colapso do meio ambiente. É nesse sentido que entendo as novas raridades; a crise hídrica, por exemplo, que assola o estado de São Paulo. Novas raridades: falta ar, falta água, falta energia, falta habitação, falta natureza, falta espaço! Porém, é preciso muito cuidado com a expressão, porque, se a produção é ilimitada, ela também é superconcentrada, e, de fato, não suprimiu as antigas raridades. Aliás, segundo organizações não governamentais e órgãos de organizações internacionais, para se acabar com a fome no mundo (1 bilhão de pessoas passa fome, conforme dados da FAO) seria suficiente um valor corresponde a 44 bilhões de dólares, cerca de 1/5 da riqueza dos três maiores bilionários do planeta, que têm a fortuna estimada em 202,8 bilhões de dólares. Segundo a revista Forbes, existem hoje no mundo 1.826 bilionários, enquanto a população mundial é de 7,2 bilhões de pessoas. (Todos esses dados são de 2015). A abundância só é relativa no sentido que ela é apropriada por uma minoria; é da essência do capitalismo a desigualdade político-social-econômica. Esses números fazem nos questionar se Ana Fani realmente faz geografia crítica.
No parágrafo seguinte, Ana Fani analisa o bairro do Bixiga como um “não-lugar”.
“O antigo bairro da metrópole paulista (a 2km do centro), inicialmente habitado por imigrantes italianos que aqui chegaram no fim do século passado, deixa hoje, como resquício desse passado, uma área de restaurante que é cada vez menos ‘italiana’. Trata-se de um dos lugares de lazer da metrópole, inscrito no circuito turístico gastronômico com seus restaurantes, cantinas e pizzarias com toalhas xadrez, fitinhas com as cores da bandeira italiana, garrafas de vinho e queijos pendurados nas paredes e no teto, os indefectíveis posters de cidades italianas e, em alguns casos, com sua música alegre. Na realidade, se assemelha a tantos outros no mundo, como o ‘litle Italy’ de Nova York, ou o quadrilátero italiano em Amsterdan, “North Beach” em São Francisco, ‘Nord Endle’ em Boston, que atraem uma grande multidão nos finais de semana vindas de toda parte da metrópole e de fora dela” (p. 71).
Ora, os italianos chegaram, em grandes levas, num fluxo contínuo, com raras interrupções, em São Paulo, entre o final do século XIX, (1880) e início do XX, mais ou menos os anos 20 e 30. É evidente, que depois de quase 100 anos (o artigo foi publicado no ano de 1999) findado o fluxo migratório, o bairro do Bixiga não abrigue mais italianos, pois seus descendentes se tornaram brasileiros e, desses, muitos se mudaram para outros bairros da cidade de São Paulo. Nesse sentido, não é porque uma pessoa tem uma origem italiana que ela e os seus rebentos devam ser condenadas a residir num bairro italiano para sempre. Quanto a dizer que o bairro do Bixiga, que não se reduz a uma rua de restaurantes, se “assemelha” a tantos outros bairros italianos pelo mundo, é ignorar o tecido social do Bixiga e as diferenças históricas que separam todos estes bairros em cidades de países muito diferentes.
“Essa área transformada em polo de atração se realizou capturando o que havia ou dizia respeito à cultura do imigrante italiano, reproduzindo-se enquanto simulacros” (p. 72).
Que o bairro do Bixiga, em São Paulo (Brasil!), não é a Itália e nem poderia sê-lo, isso me parece uma questão, não apenas histórica e geográfica, mas de sensatez. Agora, dizer que as cantinas do Bixiga são simulacros é, no mínimo, desrespeitar pessoas que são, sim, de origem italiana e tiveram sua história de vida marcada pelo bairro ou pela imigração italiana. O que dizer daqueles donos de cantina, muitos deles, senhores de idade, que passam de mesa em mesa para saber se o freguês está satisfeito, como, por exemplo, o simpático seu Gianotti, da cantina que leva o seu nome?
“Cada vez mais os lugares do turismo ou lazer, nesta sociedade, produz-se como ‘não-lugares’” (p. 72).
Ora, tal afirmação deve antes pressupor o que é “lugar”. Em nota, Ana Fani diz que esta ideia de produção de “não-lugares” foi desenvolvida por ela em seu texto “A produção dos não-lugares” (ótimo, faremos em breve uma crítica desse texto também). (Esta noção de “não-lugar” é de Marc Augé; nada que valha muito a pena perder muito tempo em se entreter com conceito, digamos, tão caprichoso).
“O que defino como não-lugar refere-se ao espaço produzido pela indústria do turismo, um espaço destinado ao consumo, que se transforma num espaço presente sem espessura, quer dizer, sem história, sem identificação: o espaço do vazio, da ausência, que se realiza através dos signos” (p. 72).
Vejamos. O uso corrente da palavra lugar é, antes de tudo, polissêmico e, em contrapartida, muito vago, geral e abstrato. Lugar pode definir muitas coisas, desde uma posição hierárquica a um trecho de página num livro. Nada indica, porém, que lugar deva, intrínseca e semanticamente, carregar um significado de conteúdo histórico. Ao contrário. Por isso, a definição pressuposta no argumento do “não-lugar” já de saída encontra problemas.
Dizer também que o espaço produzido pela indústria do turismo se transforma num espaço presente é mais uma das redundâncias do artigo. Espaço (simultaneidade ou sincronia) é sempre presente, por mais que seja resultado da ação do tempo (diacronia). É preciso extrapolar muito nas metáforas para afirmar que um espaço sem história e identificação é um espaço vazio, de ausência, que se realiza através dos signos, isto é, referenciais supostamente alheias àquele lugar. Espaço vazio do quê? De pessoas, de coisas, de história? Só poderia ser mesmo de história, como a própria Ana Fani sustenta. O que é impossível. (Essa era justamente a discussão sobre Baudelaire e Benjamin!). O fato é que a história é uma construção mental, do conhecimento, a posteriori, e tem relação com a memória. Por exemplo, se no início da modernidade, os renascentistas imitavam em quase tudo a cultura greco-românica, e, a partir dela, criavam suas representações, isso não significa que o Renascimento não teve história (o termo Renascimento, aliás, foi cunhado no fim do século XIX por Jacob Burckhardt). Seria o mesmo que dizer que as obras de Michelangelo não passam de simulacros! Na verdade, há muitos outros exemplos de representações do passado que guiaram ações no presente. Carlos Magno se coroou imperador agraciado pelo Papa e representado como um general romano, o mesmo fez Napoleão. Se a indústria do turismo usa de representações históricas – nem sempre, afinal, que representação histórica em si haveria em um lugar como os Lençóis do Maranhão, em que a representação de natureza é o grande atrativo? –, é porque há um momento, na história do capitalismo, em que isso se tornou bastante lucrativo.
Na verdade, Ana Fani agarra-se à lógica formal e quer daí encontrar identidades, o ser primevo e autêntico, o paraíso perdido, a tradição. Ana Fani quer um chinês preparando yakissoba em Hong-Kong, e não um alagoano, em um restaurante delivery em São Paulo. Busca sem fim. O próprio conceito de Estado-nação (nacionalidade), ao qual ela se prende, é uma invenção da modernidade. No caso da Itália, exemplo que ela cita para falar do Bixiga, não há qualquer identidade entre os “italianos” das várias regiões da península. O arrogante “lombardo” de olhos castanhos é hostil ao “negro” siciliano, de olhos azuis; a língua do toscano Dante é a língua oficial da Itália; etc.
Mas a própria Ana Fani cai em contradição ao falar do Bixiga: O antigo bairro da metrópole paulista (a 2km do centro), inicialmente habitado por imigrantes italianos que aqui chegaram no fim do século passado. Que ela tenta remediar em seguida:
“Mas a construção destes simulacros não ocorre no vazio, utilizam-se do fato de que nenhum momento da produção espacial desaparece totalmente, seja através dos traços da paisagem, seja da cultura ou do imaginário da sociedade” (p. 72)
Era vazio, depois não é mais. Ao invés de dizer que tudo vira mercadoria e que a indústria do turismo é mais um segmento da economia capitalista, Ana Fani tenta forçar uma teoria do espaço através de um conceito impreciso com fachada de precisão, o de “não-lugar”. Rigorosamente, um não-lugar simplesmente não existe empiricamente e só pode existir como ideia indemonstrável numa teoria que propõe o divórcio com a prática social empírica.
O tal de não-lugar é utopia. Na história da literatura, as utopias eram ilhas distantes, perdidas e habitadas por povos cuja organização social era perfeita, situadas no horizonte (futuro) e que serviam de modelo para uma crítica sutil das sociedades do presente, marcadas pela corrupção, ganância dos políticos, imoralidade, riqueza, avareza etc. Mas Ana Fani quer dizer, por outros meios, que a indústria do turismo cria utopias, ou melhor, espaços de ilusão. Ora, Marx, em O Capital, já descrevia que a “mercadoria é, antes de tudo, um objeto exterior, uma coisa que, pelas suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. Que essas necessidades tenham a sua origem no estômago ou na fantasia, a sua natureza em nada altera a questão” (Karl Marx, “O Capital”, tomo I). Simples, é só aplicar isso ao espaço e temos a teoria do não-lugar. Porém, como foi dito, Ana Fani não abandona a geografia tradicional e crê em culturas e nacionalidades autênticas. Porém, a realidade dos fatos, da prática social empírica, inacessível à teoria do espaço de Ana Fani, contraria suas expectativas. Eis, enfim, o movimento! Tudo é, desde sempre, devir. Além do mais, a indústria do turismo não se alimenta apenas da venda de pacotes para a Disneyworld, o Jurassic Park, Beto Carreiro World, Planet Hollywood etc. O que dizer de passeios distantes das Américas, pela cidade de Veneza, ou para Atenas, Nova Deli, Praga, Egito etc. Um turista diante da Muralha da China não está diante de um simulacro!
O fato é que o consumidor quer comprar a fantasia quando vai a um parque temático. Ninguém sai decepcionado de um parque de dinossauros só porque não viu dinossauros de verdade!
Depois desses exemplos empíricos (coleção de fatos), Ana Fani volta a teorizar e, aí, já sabemos, seu texto não tem pé nem cabeça. Recuso-me a transcrever o parágrafo na íntegra, mas deixo esta pequena amostra:
“A mimesis estabelece, no fictício, o visual, o ótico privilegiado, ora simulando a natureza primeira, ora simulando um passado, produzindo o imediato, a corporiedade. O espaço torna-se, neste contexto, um espaço abstrato, que cria uma prática espacial homogênea, coercitiva, enquanto produção do reprodutível através da imitação” (p.72).
O espaço torna-se espaço abstrato. Isso, desde sempre, já nasceu abstrato.
Esse espaço abstrato cria uma prática espacial homogênea!, coercitiva, enquanto produção do reprodutível através da imitação. Não preciso dizer mais nada.
Em seguida, Ana Fani começa com uma adversativa...
“Mas, por sua vez, o espaço pode se pensado como lugar no qual o desejo poderia se manifestar e mesmo se desenvolver, e isto tanto na praia, quanto na montanha, ou mesmo na metrópole” (p. 72).
Que desejo? Desejo necessita de alguém que deseja. Desejo não está aí flutuando como nuvens brancas no céu, nem tomando sol na praia, nem escalando montanha, nem esperando o transporte público na metrópole.
O que Ana Fani quer dizer agora é tudo o contrário que dizia até aqui.
“No caso dos bairros italianos, convém lembrar que há momentos da festa (dentre outras que acontecem na metrópole) ligados a uma tradição cultural que se mantém viva” (p. 72).
Convém lembrar, que há momentos de festa quando a bola sobe no ano novo em Nova Iorque, no Planet Hollywood, diante da fachada de castelo da Disneyworld etc.
“No caso das áreas da festa, uma parte da rua cheia de barracas de comidas italianas não impede o passo do flâneur que observa o panorama colorido em meio a sons dissonantes de conversas alegres, misturadas à música que sai dos auto-falantes (sic), rodeado pela comida típica que exala um cheiro agradável e convidativo. Já a área restrita do restaurante improvisado com mesas formadas com uma tábua sobre cavalete, é destinada apenas àqueles que compraram convites vendidos com muita antecedência. Esse encadeamento do público com o meio-público, e do privado descrevem o espaço social em sua multiplicidade” (p. 73).
Leia e julgue você mesmo!
Agora tente ler rapidamente o parágrafo abaixo:
“A existência da festa ajuda a relativizar a massacrante tendência da sociedade à constituição do homogêneo enquanto estratégia de poder ou vinculada à tendência de se ignorar os resíduos que emergem juntamente no cotidiano programado, onde é possível pensar que trabalho/festa não se separam, que o lazer, enquanto possibilidade de manifestação-realização de desejos, relativiza programado” (p. 73).
Ótimo! Então está tudo muito bem e não tratemos mais do assunto. (Por favor!)
“Na preparação que antecede o início da festa de San Genaro, na Mooca (outro bairro italiano da metrópole), por exemplo, encontram-se, nos bastidores da organização ou na cozinha, muitos que já não moram mais na Mooca, aqueles que vêm, inclusive, de fora de São Paulo, que retornam a cada ano para trabalhar na festa e são recebidos pelos antigos vizinhos. São pessoas que se ligam num objetivo comum, renovam uma amizade, se reencontram reafirmando uma identidade com o lugar e com a vida que nele se desenrola. Na cozinha nem sempre barulhentas, posto que todos aí trabalham muito, “as mammas” preparam os molhos, as massas, às vezes, sem se falar, mas com grande ‘ar’ de cumplicidade. São a prova viva de que nem tudo implodiu ou foi capturado. Na verdade, revelam a contradição do processo de produção do espaço; marcam o limite das metamorfoses impostas ao espaço, pelo processo de reprodução, revelam o sentido da presença que se realiza enquanto transgressão numa ordem imposta” (p. 73).
Caspita!
“(...) Isto porque o espaço produzido enquanto produto, meio e condição da reprodução entra em conflito com suas próprias contradições, com seus próprios resultados, é aqui que ele é ocupado, controlado e orientado em direção ao reprodutível, se realiza também, realizando o não reprodutível” (p. 73).
O texto tem varias pérolas. Mas gostaria de entender como o espaço entra em conflito com suas contradições?
“No espaço se estabelecem, se aprofundam ou mesmo se renovam laços de amizade, solidariedade e vizinhança; na efervescência das festas e encontros que pontuam a vida na metrópole podem surgir a cada esquina, a cada momento – a grande cidade é o teatro da ação. E isto só pode se realizar nos espaços públicos – o espaço do uso enquanto apropriação possível” (p. 74).
Claro que laços de amizade, solidariedade e vizinhança estão sobre um determinado espaço, não estariam no nada, afinal! Mas dizer que amizade, solidariedade, vizinhança, festa e encontros só podem ocorrem nos espaços públicos e nunca dentro de uma residência é algo difícil de acreditar.
A melhor definição para este artigo de Ana Fani pode ser encontrada no próprio artigo de Ana Fani: mimesis e simulacro. O texto de Ana Fani não passa de uma imitação, ou melhor, uma macaqueação de textos de outros autores, notadamente Henri Lefebvre, dos quais coleciona fórmulas (não fatos) sem, no entanto, dominá-las por inteiro e que são reproduzidas avassaladoramente sem explicação de conteúdos, talvez, na expectativa de levantar uma cortina de fumaça e convencer pela incompreensão. Também o artigo pode ser encarado como um simulacro de artigos científicos e acadêmicos.
No mais, o artigo de Ana Fani se assemelha a uma bolha de sabão: superficial, frágil e vazio. Ana Fani parece desconhecer os pressupostos teóricos dos autores que ela cita, se valendo apenas, para interpretá-los, de uma avaliação superestimada de que faz de si mesma, talvez, baseando-se única e exclusivamente na trajetória de sua carreira acadêmica exitosa.
Sobre FHC, o genial Millôr Fernandes avaliou o seguinte:
“O que me impressiona é que esse homem, que escreve mal — se aquilo é escrever bem o meu poodle é bicicleta [sobre o livro de FHC] — e fala pessimamente — seu falar é absolutamente vazio, as frases se contradizem entre si, quando uma frase não se contradiz nela mesma, é considerado o maior sociólogo brasileiro”.
O diria Millôr Fernandes de Ana Fani?
Só para constar, Ana Fani é professora titular do departamento de geografia –FFLCH/USP.
Nota: Este texto faz parte de nossas publicações nos blogs “Geografia – isso não serve para fazer nada”, “Geografia X Anarquia” e “Atualidade da geografia”.