Geisel, o botafoguense vascaíno
Por Laércio Becker | 08/05/2012 | HistóriaPor: Laércio Becker, de Curitiba-PR
Quando criança, sempre me perguntava qual a origem da expressão “virar casaca”. Um dia, sem pesquisar, cheguei a pensar que tinha origem no futebol. Mais especificamente, no apelido dos torcedores do Vasco. Como é sabido, os vascaínos eram chamados de “casaca”, graças ao grito de guerra da torcida: “Casaca! Casaca! Casaca-zaca-zaca! A turma é boa, é mesmo da fuzarca! Vasco! Vasco! Vasco!” (ver o capítulo “Primeiros sons da torcida”, em nosso livro Do fundo do baú). Então, em minha hipótese inicial, “virar casaca” significaria “virar vascaíno”, expressão que, depois, teria passado a designar a passar a torcer para os outros clubes também.
Que decepção foi descobrir, no dicionário de Magalhães Jr., que a origem é mais antiga e não tem nada a ver com o futebol. Eis o que ele diz:
“Mudar de partido, trocar de opinião política com facilidade e visando tirar proveito pessoal. Usa-se na Itália a mesma expressão: Rivoltar-se la giacca e metterla magari a rovescio. Também na França se diz virar a casaca. Veja-se esta passagem de Jacques Baroche, em ‘Les Monstres de l’Histoire’: Dès qu’il sut à qui Il avait à faire, il tourna brusquement casaque et convia Marc-Antoine à souper (Desde que soube o que ele vinha fazer, virou bruscamente a casaca e convidou Marc-Antoine a cear).”
No Brasil, diz Mário Prata, atribui-se a expressão a Domingos Fernandes Calabar, por ajudar ora os portugueses, ora os brasileiros. De fato, na política, virar-casaca é um costume muito mais antigo que o próprio futebol. Joaquim Manuel de Macedo, p.ex., na peça A torre em concurso, de 1863, um personagem critica o outro por ter mudado de partido, “que isso é não ter princípios políticos”. O outro responde: “faço o que muitos têm feito, e é assim que se arranja a vida”. Pouco depois, ambos perguntam ao juiz de paz qual o partido dele, que responde com esta pérola de Realpolitik tupiniquim: “eu sou do partido que ficar de cima, que assim é que faz muita gente do meu conhecimento”.
Mais antigo e mais comum, diga-se. Porque a fidelidade a um time é muito mais estável do que a estabilidade do próprio quadro partidário. Vale dizer, é mais fácil mudar de partido e até mudar o partido inteiro (fundação, cisão, extinção) do que passar a torcer para outro time. Se para mudar de partido há sempre uma explicação, boa ou não, a mudança de torcida é simplesmente injustificável (sobre o assunto, ver Lever).
Isso não significa que não seja comum as famosas “simpatias”. Com isso, é possível torcer para um time, mas ter um “segundo time”, bem como simpatia por outros tantos. O América, p.ex., é famoso por ser o “segundo time” de todo carioca. Orlando Cunha e Therezinha de Castro lançam a tese de que isso teria origem no fato de o clube ser convidado a inaugurar estádios dos outros times. Em termos de simpatia, Tancredo Neves, na qualidade de político e mineiro, soltou a pérola: “sou torcedor do América, mas tenho simpatia por Cruzeiro e Atlético, assim como por todos os clubes do interior”. Sem dúvida, é uma flexibilização, mas não significa virar a casaca.
Um passo um pouco além da simpatia é efetivamente torcer por mais de um time. Se de cidades diferentes, vá lá, é relativamente comum. Mas rivais? Da mesma cidade? Em nosso artigo “Influências carnavalescas no futebol carioca”, já mencionamos o caso do folião “Lord Fla-Flu”, torcedor de ambos. E agora temos que lembrar o caso do Presidente Ernesto Geisel.
Não encontrei em sua biografia nada sobre Geisel ter praticado futetol. Pelo contrário; em depoimento, ele reconhece que “não competia, não era muito dado ao esporte”. Marcos Guterman diz que ele nem sequer gostava de futebol. Mas é claro que ele jamais admitiria isso em público. Daí o teor do seguinte improviso, que pronunciou no Palácio Piratini, em Porto Alegre, em 25.05.1978, por ocasião da despedida da seleção brasileira que iria disputar a Copa na Argentina (entre colchetes, minhas observações):
“Eu vim a Porto Alegre e vou assistir a esse jogo que se realizará dentro em pouco, de nossa Seleção, que vai disputar o Campeonato mundial, e da Seleção do nosso querido Rio Grande do Sul [Geisel era gaúcho].
Esta minha vinda, na realidade, tem uma significação. Não é apenas o meu interesse pessoal pelo futebol e pelos jogadores que vão jogar hoje aqui, embora eu goste muito do esporte e tenha procurado, ao longo dos anos de minha vida, apreciá-lo e conhecê-lo cada vez melhor [esta frase revela um esforço de demonstrar interesse pelo futebol, mas a parte final parece dizer que ele foi recente]. Mas afora esse aspecto pessoal, há um outro: a significação que tem para todos nós o trabalho que a Seleção vai realizar em Mar del Plata, na Argentina. Isso é uma decorrência, de um lado, como bem disse o Ministro Ney Braga, da circunstância de que o futebol é realmente no Brasil o esporte nacional, e, de todos os esportes que se praticam aquele que é realmente popular, que se difundiu no seio das massas e que todos os brasileiros conhecem. Do outro lado, é a nossa tradição, é o nosso passado. As nossas delegações, em anos sucessivos, realizaram um bom trabalho no exterior e vitórias alcançaram, o que nós não podemos esquecer. Eu sei que, desde então, outros países se aperfeiçoaram nesse esporte e constituem hoje, através de suas delegações, adversários de alto valor da nossa seleção. Fizemos tudo que estava ao nosso alcance para apoiá-la, para prepará-la e assegurar-lhe as melhores condições de enfrentar essa pugna que se vai realizar em breve [o que se fez foi militarizar o futebol, como vemos em nosso artigo “A futebolização da política”]. Acredito que esse trabalho não foi em vão e sei que todos os membros da delegação e todos os jogadores estão imbuídos de um sentimento de que é necessário dar de si todo esforço e tudo que for capaz no sentido de conquistar a vitória. Acho que é essencial, e me permito, embora um pouco leigo, lhes fazer uma recomendação: futebol é, na realidade, um trabalho de equipe [esta confissão, de ser leigo, reforça a tese de que realmente não tinha muito trânsito com assuntos do futebol; mas a recomendação que fez é pertinente e válida]. É um trabalho de conjunto. É um esforço em que todos têm que colaborar anonimamente se for o caso, uns em proveito de outros, para que o conjunto alcance o melhor resultado. Ponham de lado os sentimentos pessoais e façam do time um conjunto que realmente possa trazer a vitória. Só assim espero lhes desejar sucesso e me sinto confiante no resultado que nós alcançaremos [que acabou sendo o título de “campeão moral”]. Vim aqui trazer-lhes a minha despedida, neste momento e nos minutos ou horas em que assistirei ao jogo que vão realizar. Mas essa despedida não é apenas pessoal. Eu estou aqui revestido do cargo que exerço e posso dizer-lhes que represento, nos meus sentimentos, agora, realmente, os sentimentos de toda a nação brasileira.”
Fã ou não do futebol, não sei como, gaúcho, Geisel acabou virando torcedor do Botafogo, mas suponho que tenha sido no período em que estudou na Escola Militar do Realengo, ou quando serviu no Grupo-Escola de Artilharia, sediado na Vila Militar, no Rio.
Fato é que, apesar de botafoguense, no final do mandato, em 01.02.1979, ele recebeu o título de Presidente de Honra do Vasco da Gama, como agradecimento pela cessão de um terreno. Pelo menos no discurso de improviso que fez na cerimônia em que recebeu o diretor do clube no Palácio do Planalto, Geisel avisou que passaria a ser um torcedor de ambos os alvinegros cariocas (só faltou o Campo Grande AC) – entre colchetes, observações minhas:
“Agradeço as lembranças e as palavras dos senhores. Eu tenho me preocupado com o problema do esporte no Brasil, sobretudo com a educação da nossa juventude, do ponto de vista físico e do ponto de vista intelectual. Geralmente abandonamos o físico [parece que houve uma mudança nesses últimos trinta anos; Geisel fez a sua parte, com o projeto “Desenvolvimento da Educação Física, Desportos e Recreação”]. Esse desenvolvimento fica por conta de cada um e, de acordo com o maior ou menor gosto ou prazer que os jovens têm. Por isso, creio que o Brasil é um país ainda muito atrasado no que se refere ao seu desenvolvimento físico, isto comparado com outros países [de fato, até o século XIX, o modelo de jovem era pálido, fraco, tuberculoso e intelectual, como vemos nos textos de João do Rio, Luís Edmundo, Olavo Bilac, Mendes Fradique, Nicolau Sevcenko e Rosane Feijão]. E por isso mesmo preocupei-me com certos problemas, inclusive com o aspecto profissional. Afinal, nós ressentimos muito a falta de uma legislação adequada. É possível que aquilo que se fez ainda seja imperfeito, ainda não satisfaça, realmente, as necessidades que os esportistas tenham efetivamente, mas, a gente sempre tem que começar, não pensar em fazer obras perfeitas, e esperar que a continuidade e o tempo indiquem as falhas e a maneira de corrigi-las. Neste quadro, sei que o Vasco tem um papel destacado, pela sua tradição, pelo que ele representa no conjunto nacional e pela quantidade de pessoas que ele congrega em torno de si. E foi também dentro deste espírito que eu acolhi a proposta que me fizeram de ceder ao Vasco aquela área de terreno, sobretudo tendo em vista a finalidade que acaba de ser mencionada.
Estou muito honrado pelo título de sócio honorário que me dão. Sabem que eu não sou vascaíno e tenho minhas preferências pelo Botafogo. Aliás, não sou sócio do Botafogo, mas sou mais ou menos vinculado ao Botafogo há muitos anos. Mas eu agora tenho uma vantagem sobre os dois times: tenho dois clubes para torcer. E eu tenho um exemplo, no meu círculo de amizade: tenho um amigo que teve a grande habilidade de ser vascaíno e ser fluminense ao mesmo tempo. É um médico muito ligado ao Vasco e muito ligado ao Fluminense, de modo que quase sempre é campeão. Ele tem facilidade de torcer, de uma maneira geral, exceto quando os dois times jogam. Mas, aí, ele fica satisfeito com a vitória de qualquer um dos dois. Então, o meu problema, também, fica um pouco facilitado proque eu agora posso torcer pelo Vasco e não apenas pelo Botafogo.
Muito obrigado pela presença e pelas lembranças que me trazem e os meus votos são de que o Vasco continue progredindo em todos os ramos em que ele está engajado, sobretudo na sua obra educacional, na sua obra social que se desenvolve como uma instituição que é realmente importante para o País. E que o exemplo do Vasco frutifique em outras agremiações semelhantes. Muito obrigado.”
Assim, à luz das explicações que dei no início deste artigo, pode-se dizer que Geisel não “virou a casaca”, pois não mudou de time, nem “virou casaca”, já que não trocou o Botafogo pelo Vasco (“casaca”). Apenas acumulou a torcida, passando a ser um botafoguense vascaíno...
Cumpre lembrar que, antes disso, Geisel também recebeu, em 22.10.1976, no Rio, o título de Presidente de Honra do Clube Ginástico Português. Nessa ocasião, disse algo que se aplica também ao Vasco da Gama:
“Este Clube, da mesma maneira que os seus congêneres que estão espalhados pela extensão de todo o Brasil, mais do que um clube recreativo, ou do que um clube da comunidade porotuguesa, é uma sociedade que serve de elo entre a sociedade portuguesa e a sociedade brasileira. E, dessa forma, serve para estabelecer entre nós uma perfeita integração. Não é um quisto que se instala. É o contrário. Uma sociedade que se abre, rasga horizontes e que constrói com sua atividade e pelo seu entrelaçamento com os brasileiros, uma sociedade progressista, moderna, luminosa e que tem diante de si um futuro luminoso, sem dúvida.”
Por fim, o fato de conceder a um botafoguense confesso o título de Presidente de Honra do Vasco não foi algo inédito. Basta lembrar que o vascaíno Getúlio Vargas foi Presidente de Honra do Fluminense e o flamenguista Emílio Garrastazu Medici foi Presidente de Honra do America.
Fontes:
BILAC, Olavo. Registro. Campinas: Unicamp, 2011. p. 94.
CUNHA, Orlando. Cronologia de uma odisséia. Rio de Janeiro: s/n, 2001. p. 35.
CUNHA, Orlando; CASTRO, Therezinha de. O America na história da cidade. Rio de Janeiro: ed. dos autores, 1990. p. 27.
CURY, Levy. Um homem chamado Geisel. Brasília: Horizonte, 1978. p. 35.
D’ARAUJO, Maria Celina; CASTRO, Celso (orgs.). Ernesto Geisel. 5ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 39.
EDMUNDO, Luís. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003. p. 521.
FALCÃO, Armando. Geisel: do tenente ao presidente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
FEIJÃO, Rosane. Moda e modernidade na Belle Époque carioca. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2011. p. 153.
GEISEL, Ernesto. Discursos. Brasília: Imprensa Nacional, 1976. v. 3, p. 289-90.
GEISEL, Ernesto. Discursos. Brasília: Imprensa Nacional, 1978. v. 5, p. 241-2.
GEISEL, Ernesto. Discursos. Brasília: Imprensa Nacional, 1979. v. 6, p. 13-4.
GUTERMAN, Marcos. O futebol explica o Brasil: uma história da maior expressão popular do país. São Paulo: Contexto, 2010. p. 188.
LEVER, Janet. A loucura do futebol. Rio de Janeiro: Record, 1983. p. 152-3.
LIMA, Carlos Alberto de. Novo dicionário de futebol. Rio de Janeiro: ed. do autor, 2006. p. 125.
MACEDO, Joaquim Manuel de. A torre em concurso. In: Coleção clássicos do teatro brasileiro. Rio de Janeiro: Funarte, 2002. v. 1, p. 1.190.
MAGALHÃES JR., R. Dicionário brasileiro de provérbios, locuções e ditos curiosos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Documentário, 1977. p. 314.
MARANHÃO, Haroldo. Dicionário de futebol. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 262.
MENDES FRADIQUE, José Madeira de Freitas, dito. Goal! In: A lógica do absurdo. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, 1925. p. 107-11.
PENNA, Leonam. Dicionário popular de futebol. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 71.
PRATA, Mário. Mas será o Benedito?: dicionário de provérbios, expressões e ditos populares. 6ª ed. São Paulo: Globo, 1996. p. 175.
RIO, João Paulo Alberto Coelho Barreto, dito João do. Hora do futebol. In: BOUÇAS, Edmundo; GÓES, Fred (orgs.). Melhores crônicas João do Rio. São Paulo: Global, 2009. p. 301-3.
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: NOVAIS, Fernando A. História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. v. 3, p. 568 e ss.