Fogo sobre a dor vã

Por António Lourenço Marques Gonçalves | 04/08/2012 | Arte

 FOGO SOBRE A DOR VÃ*

 

António Lourenço Marques

 

 

Chegados ao limiar do século XXI, embora confrontados persistentemente com imensas misérias humanas cujas origens se prendem ao próprio homem - tantas guerras, tanta fome, tanta tragédia de múltiplas índoles tenebrosas, que nos humilham a todos e enfraquecem a nossa dignidade - apesar disso, podemos ainda falar de algumas novas esperanças. É que há uma parte do mundo que trabalha e insiste no sentido de a vida ser um pouco melhor. Mas como o caminho é lento e difícil!

 

A luta contra a dor foi inscrita, como princípio universal, no cerne do edifício da própria medicina. A lei “Ninguém deve sofrer dor desenecessariamente” vai determinar uma obrigação incontornável aos profissionais de saúde. Ao mesmo tempo que intentam o tratamento das doenças, devem evitar sempre a dor e o sofrimento dos seus doentes. É de realçar esta orientação da arte médica, para o século XXI, como se estivéssemos desiludidos ou insatisfeitos com a preponderância da perspectiva curativa tradicional, com a qual temos vivido há muitos anos. A grande medicina, foi-nos ensinado, era aquela que se preocupava com a eliminação das doenças, de forma quase pura, “científica” ao extremo e com uma boa dose de aplicação das tecnologias. Importava combater a doença, para a retirar do doente, o seu triste portador. Como se fosse uma realidade muito bem circunscrita, algo que se intrometia no corpo, a exemplo de um parasita.

Ora, não há doenças mas sim pessoas doentes. A luta contra a doença, nesta perspectiva, é mais eficaz, e pode concorrer melhor para a felicidade dos indivíduos. A eliminação ou, pelo menos, a suavização do sofrimento, é um objectivo concreto e mais interessante, porque é o que deseja, no fundo, quem procura o refrigério da medicina. 

Quem tem dor sofre. Devemos esclarecer estes dois conceitos - a dor e o sofrimento - procurar traços de união, no sentido de nos aproximarmos o mais possível de tais realidades. Desde logo, o sofrimento é um sentimento negativo geral sobre a própria vida e que afecta a sua qualidade. Múltiplos factores podem contribuir para tal consciência amarga do viver. Um deles é, naturalmente, a dor, com aspectos físicos e psicológicos, que se repercutem na globalidade do ser.

            Importa compreender também quais são os significados que utilizamos, quando nos referimos à dor. A melhor definição é a estabelecida pela Associação Internacional para o Estudo da Dor que a descreve como “uma experiência sensitiva e emocional desagradável relacionada com uma lesão real ou potencial de tecidos do corpo, ou descrita em termos de tal lesão”. Se estivermos perante uma experiência agradável, não a consideramos dor, mesmo que o estímulo ou os estímulos envolvidos produzam, regra geral, dor na maioria das pessoas. Dor que não dói, digamos assim, no sentido de incomodar negativamente e em vez disso, é desejável, não é a dor de que falamos. Excluímos tais experiências que até podem ser gratificantes para o sujeito.

            A nossa dor é aquela cujo termo inglês é “pain” derivado do latim “poena”, palavra que quer dizer castigo. Ou seja, a esse aguilhão foi, desde muito cedo, atribuído o significado de mal, uma punição a suportar por algo de irregular ou errado que a fragilidade da própria vida humana subentendia. Seriam até razões insondáveis ou incompreensíveis, projectadas no domínio da imaginação e do fantástico. Mas porque a realidade da dor atingia penosamente os sentidos, o combate contra ela terá começado imediatamente. Foi descoberta uma referência à utilização de opióides para aliviar a dor registada há 4.250 anos.

            Devemos, no entanto, notar que a dor, embora desagradável, e talvez por isso, não é absolutamente inútil. Não há dúvida que é uma das mais eficazes formas que a natureza encontrou para assinalar o irregular funcionamento dos órgãos, de modo a ter-se consciência de tal desarranjo, com vista à autodefesa e ao equilíbrio. Se tal sinal não tivesse esta potência, a queixa mais frequente que leva os doentes ao médico, a vida humana seria ainda mais frágil. Neste sentido, pode não ser aconselhável a sua eliminação imediata e cega. Mas logo que compreendido o seu significado e preservada a sua função, deve ser minimizada ou pelo menos tornada suportável. E quando é inútil, absolutamente abolida.

            O tratamento da dor e a suavização do sofrimento é pois um objectivo central dos profissionais da medicina. Note-se que este propósito não traduz apenas algo que se relaciona com um legítimo anseio das pessoas. É que as investigações clínicas mais actuais reforçam a ideia de que há grandes vantagens no tratamento da dor e em particular se este for feito de uma forma enérgica, desde a primeira manifestação, ou de preferência antes, quando se sabe que vai ocorrer.

            Um dos campos mais promissores desta investigação tem a ver com a prevenção da dor, ou seja aquilo a que se chama analgesia preventiva. Está demonstrado que a intervenção analgésica, antes do estímulo doloroso actuar, pode ter grandes benefícios, já que evita ou reduz, de forma marcada, a dor subsequente, que pode ser tratada então com medidas mais simples ou com doses menores de medicamentos. Este interessante fenómeno explica-se através do moderno conceito da “plasticidade do sistema nervoso”. Expliquemos melhor. As células nervosas, que são o suporte deste fenómeno da dor, podem sofrer alterações estruturais e funcionais permanentes, quando sujeitas a certos estímulos nocivos ou traumatismos. O sistema nervoso não está preprogramado, pelo que tais estímulos podem produzir alterações profundas da anatomia e do ambiente químico ou bioquímico que suporta estes processos fisiológicos. São alterações ou “deformações” que uma vez produzidas irão persistir e influenciar decisivamente os processos dolorosos futuros. Tal “plasticidade”, ou seja a capacidade de o sistema nervoso se modificar perante os estímulos, permite armazenar a sua memória, ampliando e reforçando as experiências subsequentes. Quer dizer, o sistema nervoso fica desta forma mais sensível e a dor posterior é de maior intensidade. Perante estímulos intensamente dolorosos, como por exemplo nas incisões cirúrgicas, se tal “memória dolorosa” for impedida ou minimizada pela administração prévia de analgésicos, no acto da anestesia, para tratar a dor, depois da intervenção cirúrgica, necessita-se menores quantidades de medicamentos e o doente, regra geral,  tem um pós-operatório muito mais tranquilo.

            As experiências em animais são conclusivas. Estímulos dolorosos muito intensos aplicados nos tecidos profundos do organismo de animais, no laboratório, determinam hipersensibilidade aos estímulos posteriores. Mas se antes da aplicação dos estímulos se administrarem certos analgésicos, como os opióides, diminui drasticamente tal hiperexcitabiliadde.

            Do mesmo modo, outros estímulos intensamente dolorosos, como por exemplo os produzidos pelos tumores, se não forem combatidos com medidas terapêuticas correctas, logo que começam a manifestar-se, podem marcar profundamente a “memória dolorosa” no sistema nervoso dos doentes, criando situações de profundo sofrimento, progressivamente mais difíceis de atenuar.

Infelizmente, há doenças que provocam dor num número elevado de casos. São particularmente dolorosos os cancros sólidos e a SIDA. Se a medicina não tivesse evoluído, a quase totalidade dos doentes, vítimas de tais enfermidades, quando em estado avançado,  morreriam submergidos em atroz sofrimento causado por dores de vária ordem, habitualmente mais intensas, quando se aproximam as fases últimas da vida.

            Hoje, o avanço da medicina da dor, com os seus aportes e contributos multidisciplinares, tornou virtualmente possível, tratar este sintoma, na quase totalidade dos casos, ou seja em cifras para além dos 90%. Só que a realidade diz-nos que tais recursos benfazejos não são muitas vezes aplicados ou são insuficientemente utillizados, pelo que um grande número de pessoas, no mundo, sofre desnecessariamente. A dor aguda não é tratada em quase metade das situações e a dor crónica ainda é mais sofrida. Há países pobres em que a dor do cancro não é tratada em mais de 90% dos doentes. Mesmo nos países desenvolvidos, só cerca de metade de todos usufruem de correctas terapêuticas da dor. E, no mundo, morrem por ano muitos milhões de pessoas com esta doença. Em 1996, sucumbiram 6.346.000, prevendo a OMS cerca 7 milhões no ano 2.000 (4 milhões de homens e 3.2 milhões de mulheres)

            Se nos referirmos à SIDA, a prevalência da dor crónica e o panorama do seu tratamento é tanto ou mais desolador. Cerca de 50% a 60% dos doentes hospitalizados têm dor que passa a atingir perto de 70%, quando no domicílio. Nas fases terminais, esta grandeza chega aos 97%. Quantos são tratados? O facto de existirem poucos estudos sobre o tratamento da dor destes doentes, reflecte provavelmente a penúria/ausência de cuidados nesse sentido, pelo que não será exagerado afirmar que o fim da vida destes infelizes pode estar a ser em muitos casos verdadeiramente difícil e desumana. Em 1996, 1.5 milhão de indivíduos morreram com esta gravíssima infecção.

            E no panorama geral, ainda as crianças, as mulheres e as pessoas idosas são, entre todos as que sofrem, aquelas que menos usufruem das terapêuticas da dor.

            Não tratar a dor ou tratá-la de forma incorrecta não tem qualquer vantagem. Um dos mais importantes investigadores modernos dos processos da dor, e um pioneiro da nova fase da luta contra a dor, o professor de Psicologia americano, Ronald Melzack, afirmou que devido ao grande impacto na morbilidade e na mortalidade dos doentes “ a dor pode significar a diferença entre a vida e a morte”. É bem conhecida a associação entre a dor e a depressão nervosa, e está definitivamente estabelecido que é um importante factor de risco de suicídio, em determinadas circunstâncias. Sabe-se também que pode diminuir a capacidade imunológica do indivíduo, facilitando e agravando as infecções, e altera as respostas fisiológicas normais perante o estresse. A cicatrização dos tecidos chega a ser mais demorada nos indivíduos com dor não tratada.

            Reafirmo que a dor aguda e a dor ligada ao cancro, devido aos grandes avanços técnicos e farmacológicos, hoje disponíveis, pode ser eficazmente tratada em quase todos os doentes. A utilização de opióides é a pedra de toque do tratamento da dor crónica, quando moderada ou intensa. É o bálsamo eleito, para afastar o cálice desta amargura. Por outro lado, a aproximação multidisciplinar ao fenómeno doloroso tem permitido outros importantes progressos, não só quanto ao seu conhecimento mas também na ampliação das possibilidades terapêuticas.

            O que é lamentável é que persista uma assinalável indiferença, em alguns sectores com responsabilidades, que atribuem escassa importância ao tratamento da dor desnecessária e vã. Imagens como essas, de pessoas reais, que assim vivem ou viveram, são meros exemplos de um universo bastante amplo, que está junto de nós, onde ainda se sofre muito.

            Quando há sete anos, o Jornal do Fundão (12/05/1992) publicou a notícia e a imagem cruel de um homem, com a face destruída por um tumor, que estava “abandonado” pela assistência, há meses, numa pequena aldeia do coração da Gardunha, houve cidadãos muito respeitáveis que estremeceram. Permitiu-se porém um pequeno passo, que nestas coisas deveria ser um grande passo. É desagradável dizer, mas por ali, andou-se muita lentamente, com resistências impensáveis, nestes anos. E pelo resto do país?

            Pena é que andemos pois tão devagar e que o correcto tratamento da dor inútil demore deveras a acontecer em todos os lugares e para todos, sem excepção. Dói tal indiferença. Quais são as suas raízes? Será unicamente porque “a dor dos outros é a única que é fácil de suportar”, como o cirurgião francês René Leriche notou, e nos falte, a bem dizer, mesmo que seja uma pequena dose de solidariedade? É por isso que me apetece dizer: fogo sobre a dor inútil e vã. Talvez uma mensagem assim, que seja arrebatada, não deixando de ser certeira, estremeça melhor esta como que impassibilidade e inércia.

            Um cálice de dor. Um cálice que até Cristo não queria suportar, pedindo ao Pai o seu afastamento. E porque não?

            Nesse transe, modos haverá em que talvez se possa ainda sentir o que o poeta Samuel Coleridge descreveu de forma tão bela: “O láudano deu-me paz, não sono; mas tu já sabes, como é divina a paz. Um lugar de encanto, um vergel de fontes, flores e árvores no coração das arenas perdidas”.

 

BIBLIOGRAFIA

 

Troels S. Jensen, Judith A. Turner, and Zsuzsanna Wiesenfeld-Hallin (Eds.), Proceedings of the 8th Worl Congress on Pain. IASP Press (1997).

David Morris, La Cultura Del Dolor. Editorial Andres Bello (1991).

Roselyne Rey, Histoire de la douleur. La Decouverte (1993).

David Borsook, Alyssa A. LeBel, and Bucknam McPeek (Eds), Massachusetts General Hospital tratamiento del Dolor. Marban Libros, S.L.(1999).

 

*Texto lido na jornada de conferências “um cálice de dor” realizada no dia 6 de Maio de 1999, no Instituto Franco Português, Lisboa.