FLIP 2009

Por Rodrigo Novaes de Almeida | 18/07/2009 | Crônicas

Era minha intenção escrever pelo menos uma crônica sobre a Feira Literária Internacional de Paraty deste ano, mas passei os últimos dez dias com um bloqueio insuportável, o que impossibilitou a tarefa. Por sorte, o escritor Josué Francisco Fernandes também esteve na Flip e, hoje, entrou em contato comigo dizendo ter colocado no papel algumas reminiscências da viagem. Supliquei ao irascível Josué que ele e não eu assinasse esta coluna e usasse nela suas anotações, mesmo sem acreditar que ele concordaria, mas a súplica surtiu efeito e o genioso colega respondeu que "desta vez, tomo as rédeas da situação", ao que completou (evidentemente, ele não perderia a chance de me cutucar) com o seguinte comentário: "... embora não acredite que alguém que se preze em trabalhar com a escritura perca as palavras ao ter se deparado com tantos cheiros, sabores, cores e formas, além de figuras fantásticas do universo literário – e não me refiro aos escritores de sangue animado presentes, mas aos personagens materializados com tanto esmero, ou não encontrastes nosso famigerado Dom Quixote e seu bom e velho Sancho Pança ali mesmo na Praça da Matriz, ora bolas?! –; sem contar as festividades por si só folclóricas, ao se reunir numa cidadezinha histórica esplêndida desse nosso imenso maltrapilho país subliterato um monte de gente ávida por leitura...", e continuou, aumentando a minha vergonha e dando maior envergadura à minha súplica. Enfim, com a palavra o danado Josué Francisco Fernandes.

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Para início de conversa, nos dias passados em Paraty fui acometido por uma baita preguiça. Principalmente depois de comer aquela peixada com vinho branco no almoço, lá num restaurante honesto no finalzinho da Rua do Comércio, quase escondido. Sair às ruas de pedra após o prato foi tarefa dificílima. A vontade era mesmo de voltar ao quarto da pousada e tirar uma soneca, mas forcei meus sapatos a me levarem até a Casa da Cultura, onde assistiria ao debate de gente de cinema falando de literatura. Assistiria, porque não chegamos lá – eu, sapatos e peixada com vinho branco no estômago. Quem são estes foi o que perguntei a um pirata que perambulava de um lado a outro, como se procurasse uma nau perdida nos ermos remotos do século XVI. É gente que vem de fora e pensa que pode impedir a gente daqui de trabalhar. Eu quis saber mais. Ele disse que era coisa de organização, que tinha que ficar bonito e que aí os artistas de rua tinham que sair dali do centro da sua própria cidade para ficar bonito, repetiu. Entendi que era problema entre a organização da feira com os artistas de rua da cidade (e, mais tarde, percebi também que prevaleceu o bom senso de deixar o pessoal trabalhar à vontade nas suas ruas: pirata, cartomantes, harpistas, estátuas vivas etc.). Prossegui até uma esquina e parei. Não dava para ir adiante. Um senhor alto usando chapéu e paletó*, ao mesmo tempo elegante e anacrônico, dizia algumas palavras em latim novo anglo-saxônico a uma dúzia de netos tupiniquins alvoroçados. Dizia ele que tem que ir à rua mesmo, ver, escutar, olhar e ouvir também, e tem que ser curioso, sem dúvida curioso. E aí olhou para mim e deu um sorriso meio esfinge que quase me fez espirrar, como se fosse rapé ou início de resfriado. Saí daquela esquina e segui direção errada. Fui descer na Praça da Matriz, do outro lado de onde montavam, num instantâneo de galope, Quixote e Sancho. Decidi encontrá-los, tomando cuidado em me desviar do recife de crianças que ali se formara no início dos tempos da feira. Sancho sorriu para mim, enquanto uma senhora sentava perto dali, no chão, e perguntava a um jovem quanto tempo faltava para o Chico aparecer. Ela não falava de mim, mas daquele outro, Buarque de Holanda, o jovem respondendo que faltava ainda bastante tempo e que ela ia se cansar de tanto ficar sentada. Ela disse nada, nada, que eu não me canso de esperar o Chico, imagina, ora! Eu fui tomar sorvete, que agora mesmo já tinha perdido os debates todos, mas o sorriso gostoso do Sancho havia me dado vontade de sorvete, fazer o quê. Tomei sorvete na praça e, tempo vai, gente foi virando gente à beça e gente à beça virou praça lotada até que anoiteceu e já era uma multidão diante do telão para ver, escutar, olhar e ouvir Chico Buarque de Holanda dizer que escrever é uma chatice. Eu saí de tanta gente e andei até chegar lá do outro lado da cidade, na Rua Santa Rita, numa creperia cuja dona era uma senhora dona também de uma simpatia passível de verbete em manuais de treinamento nas centrais de ligação (recuso-me aqui o uso do latim novo anglo-saxônico em voga no nosso país) que se proliferam endemicamente nos dias de hoje. Pedi uma cerveja e um crepe com queijo e tomate, para ficar leve. Encontrei então Nelson, o de Oliveira, que estava a lançar mais um livro, agora como organizador. Contos. Ficções passadas em diversas guerras reais. Comprei. Pedi autógrafo. Comecei a ler ali mesmo. Pedi outra cerveja e acendi um cigarro. A noite já estava com a bocarra que só chega como anunciação de susto ou surto nas horas que se preparam para o retorno triunfante do nosso sol, o que me faz lembrar sempre o silêncio interestelar que a Clarice uma vez admitiu ser a mais bela música do mundo. Coisa de Clarice. E como gosto de ver, escutar, olhar e ouvir Clarice e silêncio interestelar, exclamação. Como combinam com uma cerveja, um cigarro, uma creperia na Rua Santa Rita em Paraty, um bom livro autografado, aquela rua ali adiante cheia de pedras, e esses cheiros e sabores, essas cores e formas, ah! humanitas, humanitas, e foi então que percebi um senhor à mesa diante de mim que me olhava fixamente. Logo eu disse boa noite para ele, tentando quebrar o que parecia ser encantamento de bruxo, pois o sentimento em mim era forte de que ele sabia só com o olhar aquilo que minha voz dizia em taciturnos devaneios, o que, num átimo ulterior com a imagem de um fantasma, tornou-me à palavra humanitas; humanitas pensada antes das proferidas boa e noite, mas logo me disse o senhor em resposta um cumprimento e isto: não existe profundidade, meu caro, apenas uma seqüência infinita de superfícies*. Dito isto, ele se levantou e foi embora. Eu decidi o mesmo. O dia seguinte de feira ainda me reservaria algumas outras reminiscências? Era uma pergunta, sim, entrementes, desta feita, reservei-me uma não-resposta e olhei e vi o céu escancarado da nossa galáxia lactescente a se derramar sobre mim, e tudo era silêncio interestelar, bonito que só: de ouvir e de escutar.

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Josué Francisco Fernandes é um heterônimo.

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* AS REFERÊNCIAS: marquei apenas duas, para não haver dúvidas; são elas "Um senhor alto usando chapéu e paletó", referência ao Gay Talese, a quem cuja obra devo esta humilde crônica, e "me disse o senhor em resposta um cumprimento e isto: não existe profundidade, meu caro, apenas uma seqüência infinita de superfícies.", frase de António Lobo Antunes. Mais claramente, aparecem Chico Buarque de Holanda e Clarice Lispector. Machado de Assis é mais obscuro, em humanitas, fantasma e bruxo. Há também uma brincadeira com o nome do Nelson (de Oliveira, e não o Rodrigues). Agora, se mais houver, caríssimo leitor, pergunte ao Josué.

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Rodrigo Novaes de Almeida (Rio de Janeiro-RJ, 1976).

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