Fla-Flu, os irmãos Karamazov
Por Laércio Becker | 19/04/2012 | SociedadePor: Laércio Becker, de Curitiba-PR
Nelson Rodrigues comparou Flamengo e Fluminense aos irmãos Karamazov, personagens do famoso romance de Dostoiévski (Claudia Drucker tem um minucioso estudo sobre as relações entre ambos os autores, mas infelizmente não aprecia essa comparação futebolística):
“Eu gostaria de saber que gesto, ou palavra, ou ódio deflagrou a crise. Imagino bate-bocas homicidas. E não sei quantos tricolores saíram para fundar o Flamengo. Há um parentesco óbvio entre o Fluminense e o Flamengo. E como este se gerou no ressentimento, eu diria que os dois são os irmãos Karamazov do futebol brasileiro.”
Só que, ao contrário do que disse o grande dramaturgo tricolor (que dizia que o rubronegro era seu segundo time), a origem desse parentesco não reside somente no ressentimento.
No início do século XX, o Clube de Regatas do Flamengo e o Fluminense Football Club não tinham rivalidade nenhuma. Muito pelo contrário, eram praticamente irmãos – e sem ressentimento. O Flamengo, o irmão mais velho, naturalmente, porque fundado antes, em 15.11.1895.
Como os dois clubes não disputavam as mesmas modalidades esportivas, não só não havia rivalidade como era natural que houvesse sócios de ambos. Mais que isso: em 21.07.1902, sócios do Flamengo ajudaram a fundar o Fluminense, comparecendo à sua primeira reunião e assinando a ata de fundação. A começar pelo próprio presidente do Flamengo de então, Virgílio Leite. Além dele, Manoel Rios, que em 1905 viria a ser presidente do Flamengo. Arthur Gibbons, presidente do Flamengo de 1903 a 1904, foi outro fundador do Fluminense e também benemérito do tricolor.
Para completar, de 1905 a 1906, ambos os clubes dividiram o mesmo presidente, Francis Walter – que acumulou ambas as funções com a de goleiro do Fluminense. Será que passou pela cabeça dele promover uma fusão?
Detalhe: o Fluminense foi fundado na rua Marquês de Abrantes nº 51, bairro... Flamengo! Mas instalou-se no bairro das Laranjeiras.
Já o Flamengo continuou no bairro de mesmo nome. Como já dissemos no nosso artigo “As origens remotas dos nomes de alguns clubes brasileiros”, a palavra “flamengo” significa “holandês”. E é sabido que a família real holandesa tem por cor o laranja (afinal, é a Casa de Orange) – motivo pelo qual é a cor da camisa da seleção. Assim, é possível estabelecer uma cadeia de associações semânticas e semiológicas que liga os dois clubes: Flamengo = holandês = Casa de Orange = cor laranja = Laranjeiras = Fluminense.
Se flamenguistas ajudaram a fundar o Fluminense, jogadores tricolores saíram do clube das Laranjeiras para criar a seção de esportes terrestres do Flamengo, em 1911. Foram capitaneados por Alberto Bogerth, jogador do Fluminense e remador do Flamengo. E apesar da perda dos jogadores, o Fluminense apoiou “com simpatia” (cf. Mazzoni) o ingresso do rubro-negro no campeonato de 1912, como já explicamos em nosso artigo “Cordialidade entre clubes cariocas”. Porque não havia rivalidade. Ainda...
Com o tempo, logicamente, acabou surgindo uma rivalidade em campo, que se cristalizou na mística do Fla-Flu (sobre o assunto, ver o nosso artigo “Influências carnavalescas no futebol carioca”). Uma rivalidade digna de Dostoiévski. E de Nelson Rodrigues também, é claro.
Fontes:
COELHO NETTO, Paulo. História do Fluminense: 1902-2002. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pluri, 2002. p. 7.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamazov. São Paulo: Abril Cultural, 1971.
DRUCKER, Claudia. A palavra nova: o diálogo entre Nelson Rodrigues e Dostoiévski. Brasília: UnB, 2010.
FERNANDEZ, Renato Lanna. Fluminense Foot-ball Club: a construção de uma identidade clubística no futebol carioca. Dissertação (Mestrado em Bens Culturais e Projetos) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Fundação Getúlio Vargas, 2010. p. 56 e ss.
MAZZONI, Tomás. História do futebol no Brasil. São Paulo: Leia, 1950. p. 82.
RODRIGUES, Nelson. Os irmãos Karamazov. In: MARON FILHO, Oscar; FERREIRA, Renato (orgs.). Fla-Flu... e as multidões despertaram! Rio de Janeiro: Europa, 1987. p. 12.