Filosofia Social
Por Thiago Silva Rodrigues | 25/05/2013 | ResumosINTRODUÇÃO
O termo “filosofia social” pode indicar dois tipos de discurso. Em primeiro lugar pode indicar uma reflexão filosófica sobre os problemas “sociais”, quer dizer, sobre os problemas da sociedade (problemas políticos, econômicos, sociais, culturais). Em segundo lugar, pode tratar de uma filosofia das “ciências sociais” e, mais precisamente, sobre a “cientificidade” dos discursos reunidos sob o título “ciências sociais” ou “ciências humanas”.
Este texto se inspirará nos dois tipos de discurso. De um lado trata-se de avaliar a pertinência dos paradigmas científicos no domínio das ciências sociais. E de outro trata-se, também, de levantar certo número de questões filosóficas ligadas à evolução das sociedades.
1. O PONTO DE VISTA EPISTEMOLÓGICO
O tema fundamental a ser debatido, e que será lustrado de diversas maneiras, é a discussão sobre a tese segundo a qual existe uma série de transformações que ocasionaram progressivamente uma mudança na concepção que temos de ciência.
É o que chamo de uma mudança de “paradigma”.
Entretanto “paradigma” no sentido utilizado por Thomas Kuhn na sua obra A estrutura das revoluções científicas.
Um paradigma consiste no “conjunto de crenças, valores reconhecidos e de técnicas comuns aos membros de determinado grupo” (Kuhn, 1972, p. 207) – e principalmente, nos trabalhos de Kuhn, comum à comunidade dos cientistas.
Utilizo, porém, o termo paradigma em um sentido mais abstrato que o sentido que lhe é atribuído quando se fala, por exemplo, de paradigmas da física newtoniana, da física quântica, do evolucionismo darwiniano, da biologia molecular, do estruturalismo lingüístico ou da psicologia cognitiva.
Eu entendo por “paradigma” um conjunto de crenças e valores que foram definidos por aqueles que praticam a atividade científica como tal.
Os paradigmas, neste sentido mais geral, subentendem e simultaneamente resultam dos debates acontecidos entre cientistas que refletem sobre o estatuto de suas disciplinas, sobre suas características ou sua cientificidade, e nos quais participam igualmente filósofos da ciência, pensadores, políticos, sociólogos etc.
Neste sentido poderíamos falar de um “metaparadigma” (como se fala de uma metalinguagem), quer dizer, de uma representação da ciência que se elabora a partir de múltiplos modelos que estão em construção em diversos campos da pesquisa científica, representação que é comum a numerosas disciplinas científicas e que foi explicitada como tal.
Sublinho, entretanto, que eu não procuro definir o que é ciência – uma “essência” da ciência -, mas me interrogo sobre as representações de sua atividade que faz o grupo de homens da ciência, quer dizer, aqueles que se consideram eles mesmos como cientistas, como homens de ciência, e todos aqueles que dialogam com eles para tentar sistematizar os princípios gerais que estão em elaboração nas suas disciplinas.
É provável, aliás, que querer definir – em todo caso definir de certa maneira – a essência da ciência é adotar em relação a certas formas de pensamento e certas práticas uma atitude específica: definir a essência da ciência é um empreendimento que faz parte da concepção que temos não somente da ciência, mas da possibilidade em geral de definir uma disciplina, um objeto.
Isto pressupõe que estimamos possível distinguir “o” discurso científico de todos os outros discursos, pressupõe também que estes discursos podem ser definidos rigorosamente ou ainda que eles sejam considerados como não podendo sê-los.
Neste sentido tentar dar uma definição essencial da ciência faz parte de um ou de vários “paradigmas”, tais como eu os entendo.
A noção de paradigma é uma noção “normativa”. Isto significa que as crenças e os valores que orientam a atividade científica são igualmente regras ou prescrições indicando em que é preciso crer, como é preciso proceder. Toda ação, toda prática científica, é normatizada: obedece a certas regras (mesmo se estas regras não forem explicitadas).
Essas regras são convenções sociais.
Afirmar isso não significa, entretanto, que essas regras sejam puramente arbitrárias: elas são certamente restritivas pelas possibilidades elaboradas a partir das práticas e pela resistência do real.
O que significa que essas regras não são absolutas.
Elas podem mudar, podem revelar-se imperfeitas ou mesmo erradas.
O nível no qual eu me situo para falar de paradigma em um sentido mais geral, ou de metaparadigma, é, pois, um nível de normas que são de uma ordem superior às normas que definem o trabalho neta ou naquela disciplina: trata-se de u nível epstemológico, a epistemologia tentando descrever quais são as normas que regem a aceitação das normas Por exemplo, um sociólogo ou um psicólogo que desenvolvem uma pesquisa sobre conduta ou sobre representações aplicam regras de metodologia científica que lhes foram ensinadas.
Existem normas que dizem respeito às pesquisas e à maneira de manejá-las, no que concerne à interpretação dos resultados, etc.
A evolução – a mudança de paradigma – que eu desejo analisar é a passagem do “paradigma clássico” (a concepção clássica da ciência) para o “novo paradigma” (ou paradigma sistêmico”, segundo uma de suas denominações, mas poderíamos também falar de um paradigma “pós-empirista”, por exemplo).
Na verdade, trata-se de uma dupla revolução.
Em primeiro lugar, a revolução que permitiu passar do paradigma “neopositivista” ao paradigma do “racionalismo crítico” (aquele do qual Karl Popper é o representante mais eminente), quer dizer, é a revolução que permitiu passar de uma representação das ciências que procede de maneira empírica e indutiva para elaborar leis gerais a uma concepção dedutiva, falível e falseável.
E em segundo lugar, a revolução que conduz a um paradigma “pós empírico”, integrando a indeterminação e a complexidade, a história e a irreversibilidade, as multiplicidades e a auto-organização, como componentes indispensáveis de toda pesquisa científica.
Trata-se apenas de uma depuração, isto é, do esboço de uma diferenciação entre diferentes concepções da ciência, apresentadas sob a forma de “tipos-ideais” ou de generalização de certos traços típicos, sem contudo deixar crer que se trata de rupturas súbitas e totais entre um paradigma e outro, nem de novidade absoluta ou radical.
Trata-se, antes de tudo, da questão de diferenças, de acentuação e de ponderação, de tendência e de configurações intelectuais divergentes.
A segunda revolução epistemológica, o questionamento do paradigma racionalista clássico, é um evento que não atinge somente a filosofia das ciências.
É um evento que concerne também à “modernidade” porque é um vento que significa o questionamento e o abandono de um certo número de posições, de crenças, que qualificamos em geral de “modernas”.
Em certo sentido – mas apenas em certo sentido – o “novo paradigma” da ciência pode ser chamado de “pós-moderno”. Ele corresponde, com efeito, a uma crise profunda da racionalidade. Mas, em um outro sentido, os mantenedores da ciência pós-moderna – salvo exceções – não abandonaram a idéia de “racionalidade”.
Um resultado talvez surpreendente em nosso percurso será a constatação de que o próprio conceito de “racionalidade” evoluiu, passamos de uma concepção essencialista da razão (uma crença de que a razão existe) para uma concepção pragmática (uma crença de que a razão é uma maneira de definir certa relação com a realidade, maneira que pode variar em função dos nossos projetos sobre o real e em função de vários outros fatores).
O que é sem dúvida uma das conseqüências mais notáveis da modificação de nossas representações da ciência.
2.O PONTO DE VISTA SOCIAL
A apresentação da idéia de paradigma como concepção geral que fazemos da ciência sublinhou o fato de que os paradigmas são, sob certos aspectos, convenções sociais.
Uma dimensão importante do pensamento filosófico é sua reflexividade, isto é, a exigência de refletir sobre as condições de possibilidades do pensamento em geral e, portanto, também sobre as teorias científicas. A constituição e as mudanças de paradigmas, assim como as transformações internas dos discursos – científicos ou outros -, não podem ser plenamente compreendidas independentemente de seu contexto de produção.
A idéia do contexto é dupla: em primeiro lugar o contexto se refere a práticas sociais que constituem o contexto de produção das teorias; em segundo lugar o contexto reenvia a práticas políticas que constituem o contexto de aplicação das teorias.
A dimensão reflexiva consiste em inscrever nossa reflexão epistemológica neste duplo contexto.
Aqui, sem analisar detalhadamente estes contextos, eu gostaria de analisar duas coisas:
Em primeiro lugar, aqueles que elaboram teorias (ou aqueles que as estudam) no campo das ciências humanas – economia, ciência política, sociologia, psicologia, antropologia – não podem deixar de refletir sobe o contexto institucional (universidade, laboratório, revista, congressos etc.) que torna possível e orienta suas pesquisas e seus saberes.
Este procedimento reflexivo e crítico não é somente uma exigência ética: é também uma condição de criatividade, à medida que ele permite o distanciamento e a descentralização, isto é, o alargamento das perspectivas.
Em segundo, não podemos também ignorar os profundos transtornos que conheceram nossas sociedades contemporâneas: mundialização, globalização, complexificação foram alguns transtornos , mas também o questionamento violento da supremacia não apenas política, como também cultural de um Ocidente que está presente como o portador do progresso e dos valores da humanidade.
PLANO DO TEXTO
1. Na primeira parte exposição sumária sobre o “paradigma clássico” K. Popper.
Análise crítica deste paradigma em dupla direção:
A) através de uma análise interna – refutação das afirmações mais positivas deste paradigma seguindo o desdobramento que vai de Popper até as posições mais relativistas: Lakatos, Kuhn, Feyrabend.
B) Seguido das críticas filosóficas extremas do paradigma clássico, percorrendo o caminho inverso: da desconstrução mais radical à restauração de uma exigência de racionalidade ampliada. Os autores de referência serão: Heidegger, Derrida, Castoriadis, Lefort e Habermas.
2. Num segundo momento, exposição emergencial das características e conseqüências do paradigma sistêmico ou pós empirista.
A exposição será feita seguindo em primeiro lugar Prigogine e Stengers, em seguida diversos pensadores que se movimentam neste paradigma (como Bateson, Atlan, Morin, Varela, Dupuy, Serres ou Deleuze).
OBSERVAÇÕES
As ciências sociais só poderiam pretender a responsabilidade se adotassem o modelo das ciências da natureza.
Certamente já se observou que as ciências humanas comportam um aspecto irredutível devido ao fato de que o homem não pode ser reduzido a um objeto, pois ele é um sujeito autônomo, que se interpreta a si próprio.
Mas esta observação não oferece os instrumentos que permitem constituir uma “ciência do homem”.
Ao contrário, parece que todas as tentativas neste sentido deveriam, de uma maneira ou de outra, “colocar entre parênteses” o homem concreto, real, para reter apenas certos aspectos analisáveis “objetivamente”.
Esta situação bloqueada somente começou a encontrar uma saída, no meu entendimento, a partir do momento em que o paradigma clássico foi colocado em questão a partir do interior, isto é, quando se notou que ele era inadequado mesmo para as ciências da natureza.
Como observou Bohman, quando a distinção rígida entre ciências humanas e ciências naturais começou a se desfazer, “o elã veio em primeiro lugar, de maneira surpreendentemente talvez, do lado das ciência naturais, nos desafios lançados à ‘concepção recebida’ do naturalismo pelos filósofos pós empiristas da ciência como Thomas Kuhn, Mary Hesse e Paul Feyerabend” (Bohman, 1991, 21).
I – O PARADIGMA CLÁSSICO
Os representantes da epistemologia clássica (Rudolf Carnap, Carl Hempel, Popper etc.) em geral sustentam que a ciência é a forma acabada do pensamento racional. Ela permite, diferentemente da metafísica ou da literatura, um saber acumulativo que converge para um conhecimento objetivo do universo.
Como vemos, essa tese epistemológica implica também uma tese muito mais ampla sobre o sentido da história humana: a história da humanidade é a história de um progresso; o progresso se mede pelo desenvolvimento ordenado do saber científico – e de seus desdobramentos técnicos.
Ora, como na história da humanidade o desenvolvimento das ciências apareceu na cultura européia e em seguida no que se convencionou chamar de “mundo ocidental”, pode-se facilmente concluir que o conjunto das aquisições econômicas, sociais, culturais e políticas deste mundo ocidental são igualmente e sem contestação um possível indício do progresso geral da humanidade.
Deixemos provisoriamente de lado estas afirmações para retornar ao ponto de vista epistemológico.
O CÍRCULO DE VIENA
O Círculo de Viena surgiu nas duas primeiras décadas do século XX, sendo responsável pela criação de uma corrente de pensamento intitulada positivismo lógico.
Este movimento surgiu na Áustria, como reação à filosofia idealista e especulativa que prevalecia nas universidades alemãs.
A partir da primeira década do século, um grupo de filósofos austríacos iniciou um movimento de investigação que tentava buscar nas ciências a base de fundamentação de conhecimentos verdadeiros.
Este pensamento, que procura na experiência o valor de verdade último de suas proposições, auxiliado pelas regras da lógica e dos procedimentos matemáticos, denominou-se positivismo lógico, ou empirismo lógico.
As principais influências recebidas pelos filósofos do Círculo de Viena são: o pensamento do positivista Ernst Mach (1838-1916), a lógica de Russell, Whitehead, Peano e Frege, bem como os novos paradigmas da física contemporânea, especialmente as descobertas de Einstein. Determinante foi, ainda, a filosofia de Wittgenstein.
1 - O DISCURSO CIENTÍFICO
1.1 - O CONHECIMENTO
A questão do conhecimento é uma das mais antigas questões da filosofia.
Podemos dizer que a concepção moderna da ciência está marcada por um característico abandono de posições metafísicas, abandono que podemos fazer remontar a Hume e a Kant, dois pensadores do séc. XVIII, mas cuja influência sobre o pensamento permanece marcante.
De David Hume (1711-1776)*, reteremos de início sua crítica da intuição.
Distinção fundamental entre “ser” (IS) e “dever ser” (OUGHT) – fatos e valores.
O domínio da consciência certa é o domínio daquilo que é, domínio dos fatos, da realidade.
Para Hume, este conhecimento é empírico e ele desconfia de toda pretensão de descobrir “leis da natureza”.
Ulteriormente, porém, muitos filósofos, a partir da distinção entre os fatos e os valores, concluíram que o conhecimento dos fatos, só poderia, em última instância, ser científico.
A distinção fato-valor é um conceito usado para distinguir entre argumentos que podem ser reivindicados através razão por si só, e aquelas em que a racionalidade é limitada a descrever uma opinião coletiva.
É a distinção entre o que é (pode ser descoberto pela ciência, filosofia ou razão) e que deveria ser (um julgamento que pode ser acordados por consenso).
O PROBLEMA DA INDUÇÃO
Considera-se em geral que as ciências ditas empíricas são “indutivas”, no sentido de que elas partem da observação e procedem por generalização.
A inferência indutiva consiste em passar de proposições particulares (resultados da observação ou de experiências) a proposições universais teóricas (leis).
Todos nos baseamos enormemente no raciocínio indutivo.
Supomos que em virtude de o Sol ter nascido todos os dias no passado, temos boas razões para supor que nascerá amanhã.
Porém, se o filósofo David Hume tiver razão, o passado não fornece qualquer espécie de pista para o que acontecerá no futuro.
Num argumento indutivo as premissas não fornecem supostamente uma garantia de que a conclusão é verdadeira.
Em vez disso, espera-se que as premissas forneçam apenas indícios de que a conclusão é verdadeira.
Eis um exemplo:
O ganso 1 é branco.
O ganso 2 é branco.
O ganso 3 é branco.
O ganso 1000 é branco.
Portanto, todos os gansos são brancos.
Se observamos mil gansos e se todos eles são brancos, concluímos que todos os gansos são brancos. Supomos que as premissas do nosso argumento tornam razoável aceitar a conclusão.
Porém, é claro que não há contradição lógica em supor que apesar de os primeiros mil gansos observados serem brancos, o próximo possa não sê-lo.
Baseamo-nos a toda a hora em argumentos indutivos.
Quando fazemos uma previsão do que acontecerá no futuro ou acerca do que está para acontecer, ou aconteceu, em zonas do universo que não observamos, baseamo-nos no raciocínio indutivo para justificar as nossas posições.
1 - O DISCURSO CIENTÍFICO
1.1 - O CONHECIMENTO
Sem o critério de “verdade”, qual critério nos permitirá fundamentar nossas afirmações justificando-as?
Será essencialmente um critério consensual: o acordo entre os “cientistas”, “observadores” de boa fé, deve ser suficiente para garantir a objetividade de nossas observações e a validade – provisória – de nossas leis científicas.
Deste ponto de vista, a objetividade da ciência significa que suas proposições devem ser intercomunicáveis de maneira unívoca e intersubjetivamente controláveis.
Jean Ladrière, retomando os principais resultados da epistemologia positivista, mostra que o critério último da objetividade é o que pode ser “intersubjetivamente controlável”.
O saber científico:
“... É um saber que responde a critérios metodológicos muito precisos , que a epistemologia científica tentou traduzir de diferentes maneiras, mas que podemos caracterizar de maneira global e aproximativa como procedendo de uma experiência geral de verificabilidade. O sentido desta exigência é determinado pela natureza dos procedimentos utilizados para provar proposições avançadas pelo discurso científico. A admissibilidade destes procedimentos está ela própria submetida ao que Carnap chamou de ‘o princípio de empiricidade’, que determina que se retenham definitivamente , como garantia última de todas as construções, apenas dados empíricos. O sentido exato daquilo que reconhecemos como ‘dados empíricos’ é fixado por um procedimento de ‘redução’, que isola, no campo fenomenal, as propriedades que são julgadas ‘objetivas’, a ‘objetividade’ sendo entendida no sentido daquilo que é ‘intersubjetivamente controlável’”. (Ladrière, 1994, p. 58).
1 - O DISCURSO CIENTÍFICO
1.2 - O REAL
Quando afirmamos que a ciência nos proporciona um conhecimento rigoroso do real, pressupomos igualmente que existe certa adequação entre o que diz a ciência e o que é o real.
A concepção clássica da ciência é “realista”: a ciência tende a descobrir o que é o mundo real, e isto independentemente das aproximações “subjetivas” diferentes, ainda que estas sejam determinadas psicológica ou sociologicamente.
É claro que o tipo de adequação do que se trata é difícil de determinar, não somente porque, como vimos, não existe conhecimento “ontológico”, último, do real, mas também porque, para dizer o tipo de correlação que existe entre a linguagem e o mundo, nós devemos fazê-lo na linguagem, o que é paradoxal.
Razão pela qual Wittgenistein (1889-1951), por exemplo, afirmou no seu Tractatus que não existe linguagem que permite descrever a relação da linguagem ao mundo, que apenas se mostra nesta relação.
A questão do “realismo” é uma questão complexa.
Somos todos espontaneamente realistas, no sentido em que nos comportamos cotidianamente como se o mundo em nossa volta, seus objetivos e suas pessoas existissem realmente.
Todavia, desde que nos interrogamos explicitamente sobre este “real”, o problema torna-se muito mais simples.
No seio do paradigma clássico, o debate entre realista e anti-realista fez correr muita tinta.
Pode-se, com efeito, crer que a teoria – física, psicanalista, sociológica – corresponde bem a certos aspectos da realidade, mas colocar em dúvida que existe alguma coisa como “elétrons” ou uma “libido” ou uma “consciência coletiva” seria apenas uma postura cômoda incapaz de se dar conta do fenômeno atômico, psicológico ou sociológico, fenômenos empiricamente constatáveis;
Pode-se ao contrário, crer que os termos teóricos reenviam a entidades existentes, mas que as próprias teorias são apenas maneiras cômodas, aplicáveis, operacionais, de manejar estas entidades, sem que elas próprias não correspondam a uma estrutura real do universo.
Assim, podemos pensar que o inconsciente existe realmente, mas que a metafísica freudiana é apenas uma maneira cômoda de apresentar os efeitos do inconveniente na vida real, sem que se deva considerar esta teoria como uma descrição realista do funcionamento do psiquismo.
2. O PROCEDIMENTO CIENTÍFICO
Ao contrário, o pesquisador deverá desconfiar de suas intuições, daquilo que ele acreditar ser “evidente”, das certezas do senso comum, dos equívocos da linguagem ordinária.
O primeiro momento da “entrada na ciência” é a ruptura.
O esforço feito pela ciência para se definir, para definir sua especificidade, traz consigo a necessidade de “delimitar” o domínio de validade dos enunciados ditos “científicos”.
Em outros termos, encontramos em toda literatura clássica que diz respeito à definição de ciência procedimentos de delimitação e de definição: quer se trate de uma “ruptura epistemológica” (Bechelard, 1971), quer de uma “demarcação” (Popper, 1972), a ciência se define por exclusão em oposição à ideologia (Marx, Althusser), à metafísica (os neo positivistas), à opinião, ao senso comum (Bourdieu, 1968) etc.
Esta descrição das condições nas quais se deve desenvolver o processo efetivo da pesquisa científica não é neutra do ponto de vista prático.
Do ponto de vista da ética pessoal, está implicada uma espécie de ascese, de desprendimento do pesquisador ou do cientista em relação aos preconceitos e crenças espontâneas, e do ponto de vista das consequências sociais, este processo está também na fonte de certo elitismo e exclusivismo da corporação dos cientistas, quer dizer, dos verdadeiros detentores das chaves do saber verdadeiro.
3. AS CRÍTICAS AO PARADIGMA CLÁSSICO
As críticas das ciências são extremamente expandidas hoje, ainda que seu valor e sua pertinência possam ser algumas vezes duvidosos.
3. AS CRÍTICAS AO PARADIGMA CLÁSSICO
3.1. AS CRÍTICAS EXTERNAS
Existe inicialmente uma série de críticas que tocam antes de tudo as consequências ou as circunstâncias das pesquisas científicas.
São as críticas sociológicas ou políticas, perfeitamente legítimas, mas que correm o risco de permanecer extrínsecas.
Por exemplo, critica-se o uso militar das descobertas da física nuclear, ou a utilização capitalista das invenções técnicas.
Ou, ainda, denuncia-se a organização institucional da pesquisa científica, as hierarquias, os controles do saber etc.
O que se pressupõe, apesar de tudo, é que a ciência em si – e mais exatamente a representação dominante da ciência – é neutra, assim como a técnica: são apenas as “consequências” que implicam um mau uso da ciência.
Trata-se desta vez de críticas que se interrogam sobre o tipo de racionalidade interna à ciência, suas relações intrínsecas com a técnica, o poder etc.
Podemos distinguir as críticas:
1. Irracionalistas.
2. Tipológicas.
3. Epistemológicas.
IRRACIONALISTAS
Consideram que as afirmações científicas são desprovidas de fundamentos e que não podem pretender nenhuma verdade.
- Ceticismo.
Desvalorizam a ciência em proveito de uma verdade mais fundamental, mais profunda, escondida, que, por sua vez, foi ocultada, reprimida ou destruída pela ciência e pekla racionalidade em geral.
TIPOLÓGICAS
Esforçam-se em delimitar o tipo específico de racionalidade e de saber implicado na estrutura do discurso científico a fim de explorar as formas de racionalidade que poderiam se manifestar em outros campos do saber;
Trata-se, portanto, de elaborar, ao menos em um primeiro momento, uma “tipologia” dos diversos tipos de conhecimento ou de saber e de analisar seus fundamentos e suas características.
EPISTEMOLÓGICAS
Trata-se das críticas que mostram que o modelo de racionalidade apresentado pela ciência clássica é um modelo estreito e inadequado do ponto de vista do próprio progresso do saber científico.
Estas críticas são tanto locais e gerais como teóricas e práticas.
II. O PARADIGMA CLÁSSICO
E AS CRÍTICAS EPISTEMOLÓGICAS
Os autores que iremos apresentar agora se interessam principalmente, na sua defesa ou sua crítica à ciência da natureza e, principalmente, pela física.
Este fato não deve ser considerado como indiferente.
Ao contrário, ele é significativo do paradigma dominante e portanto, também do modelo de racionalidade dominante.
É preciso observar que Popper, de um lado, se interessa muito diretamente pelas “ciências sociais”, mas em geral para criticar seus métodos e suas pretensões e, de outro lado, dá a conhecer posições “antitotalitárias” e liberais em várias obras.
1. KARL POPPER: UM RACIONALISMO CRÍTICO
Popper e o progresso da ciência
Na ciência nós buscamos a verdade.
A verdade não é dada pelos fatos, mas pelas teorias.
Uma teoria é verdadeira quando corresponde aos fatos.
Entretanto, essa é uma definição de verdade, já que, ainda que achemos uma teoria verdadeira, jamais podemos sabê-lo, pois as consequências de uma teoria são infinitas e nós não podemos verificar a todas.
Sendo assim, a verdade é um ideal regulador.
E nós, eliminando os erros das teorias anteriores e substituindo-as por teorias mais verossímeis, nos aproximamos da verdade.
É nisso que consiste o progresso da ciência.
Com isso, porém, não devemos pensar que exista uma lei de progresso na ciência, pois a ciência também pode estagnar.
O progresso da ciência conheceu obstáculos (epistemológicos, ideológicos, econômicos) e talvez ainda venha a conhecê-los.
Não existe lei de progresso da ciência.
No entanto, diz Popper, temos um critério de progresso: uma teoria pode se aproximar mais da verdade do que outra.
A idéia de melhor aproximação à verdade é chamada de graus de verossimilhança. Popper apresenta uma relação sistemática dos seis tipos de casos em que estamos dispostos a dizer que uma teoria¹ foi suplantada pela teoria², no sentido de que, pelo que sabemos, t² parece corresponder melhor aos fatos do que t¹, em um ou em outro sentido.
Considera-se em geral que as ciências ditas empíricas são “indutivas”, no sentido de que elas partem da observação e procedem por generalização.
A inferência indutiva consiste em passar de proposições particulares (resultado de observação ou de experiências) a proposições mais universais teóricas (leis).
1.1 O PROBLEMA DA INDUÇÃO
Considera-se em geral que as ciências ditas empíricas são “indutivas”, no sentido de que elas partem da observação e procedem por generalização.
A inferência indutiva consiste em passar de proposições particulares (resultado de observação ou de experiências) a proposições mais universais teóricas (leis).
David Hume mostrou definitivamente que esta passagem não poderia ser uma ingerência lógica, mas tinha somente um valor pscológico.
O fato de que tal evento se produza uma vez, duas vezes ou dez mil vezes não nos permite deduzir logicamente que ele se produzirá ainda e sempre.
Esperamos que o sol se eleve todas as manhãs, mas não se trata de uma conclusão lógica: trata-se de uma espera psicológica.
A indução (a passagem do particular para o geral) corresponde a uma disposição psicológica, necessária sem dúvida alguma, mas que não autoriza conclusões irrefutáveis.
Hume tirava uma conclusão cética sobre as pretensões da ciência em produzir leis gerais.
Esperamos que o sol se eleve todas as manhãs, mas não se trata de uma conclusão lógica: trata-se de uma espera psicológica.
A indução (a passagem do particular para o geral) corresponde a uma disposição psicológica, necessária sem dúvida alguma, mas que não autoriza conclusões irrefutáveis.
Hume tirava uma conclusão cética sobre as pretensões da ciência em produzir leis gerais.
Os positivistas (os filósofos do Círculo de Viena) admitem como “científico” somente conceitos “derivados da experiência” ou “logicamente redutíveis à experiência”; ou proposições redutíveis a proposições elementares (“atômicas”) da experiência, como, por exemplo, utilizamos conceitos que não são absolutamente observáveis, mesmo indiretamente (como partículas elementares físicas, ou inconscientemente em psicanálise).
Além do mais, crer que existe uma diferença de natureza (fundada sobre a natureza das coisas) entre as proposições empíricas e as proposições não empíricas (metafísica) choca com muita dificuldade: o que suporia que se pode estar seguro do que observamos e de distingui-lo estritamente daquilo que é inobservável.