Ficha Limpa

Por David Martins Nunes | 16/12/2010 | Direito

Resumo

Esse artigo aborda o tema da ficha limpa à luz da filosofia, empregando como suporte teórico filósofos da envergadura de Platão, Aristóteles, Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. Através destes ilustres filósofos, sustento a não aplicação da lei da ficha limpa nessas eleições, posto que no conteúdo desta lei há visíveis casos de inconstitucionalidade.

Palavras-chaves: Lei. Princípios. Constituição. Corrupção. Estado. Povo.

Introdução

O presente trabalho tem por escopo mostrar que a Lei Complementar nº. 135/10, popularmente conhecida como a lei da ficha limpa é inútil ao nosso Estado Democrático de Direito, pois apesar das boas intenções, a sua aplicação nestas eleições fere princípios constitucionais garantidores do ordem jurídica vigente. Pois, deve-se levar em consideração que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º., caput, XXXVI), que não há crime sem lei anterior que o defina, nem sanção sem prévia cominação legal (art. 5º., caput, XXXIX); que a lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (art. 5º., caput, XL); que a lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência (art. 16, caput). Esses princípios são o da Irretroatividade da Lei, o da Reserva Legal e o da Anterioridade da lei, insculpidos na Constituição Federal de 88, nos artigos retromencionados.

A Lei da Ficha Limpa na visão de Platão, Aristóteles, Thomas Hobbes, John Locke, Rousseau e Kant.

No Estado platônico, não são necessárias leis, pois a vontade do filósofo é a vontade do governante. Essa lei da ficha limpa é desnecessária, já que o governante tem por obrigação servir ao bem comum, de acordo com os ditames éticos e morais estabelecidos na sociedade. A lei serve somente como um paliativo, como um guia ao homem de bem. Se há desvios de conduta, a justiça será aplicada, mas segundo a doutrina da paga, pois a justiça deve partir não somente dos homens, mas de uma Justiça Universal, pois "o que parece ser justo, em verdade, não o é; o que parece ser injusto, em verdade, não o é." (BITTAR, 2002. p. 87)
O Estado Ideal deve ser liderado não por muitos(democracia), uma vez que a multidão não sabe governar. A lei de nº 135/10 partiu de um clamor público, se originou pela iniciativa popular, ora, ao povo não cabe a tarefa de legislar, isso somente se deve ao governante. O que necessitamos é de uma educação cívica de qualidade em que os indivíduos escolham devidamente os seus governantes e a tarefa de educação das almas, para Platão, deve ser levada a cabo pelo Estado, que monopoliza a vida do cidadão.
Segundo Aristóteles, o termo justiça denota, ao mesmo tempo, legalidade e igualdade. Assim, justo é tanto aquele que cumpre a lei(justiça em sentido estrito) quanto àquele que realiza a igualdade (justiça em sentido universal). Portanto, todos os ministros do STF buscam a justiça, tanto utilizando princípios reguladores da norma, como utilizando dispositivos positivados em nossa Carta Magna. A função dos Ministros do STF é proteger a nossa Constituição contra medidas arbitrárias de certos grupos políticos, que querem a qualquer custo retirar alguns princípios constitucionais a fim de prejudicar esse ou aquele candidato.
Não há porque ser votada uma lei que trata essencialmente da ética na política, quando já se tem leis que regulamentam esses tipos de condutas reprováveis, como a lei da improbidade administrativa. Além do mais, ocorreu um excesso de justiça quando se antecipou a vigência da LC 135/10 para essas eleições, pois de acordo com artigo 16 da Constituição de 1988 essa lei, que modifica o processo eleitoral, deveria ser aplicada à eleição que ocorra até um ano depois data de sua publicação, caracterizando daí uma injustiça: Summum jus, summa injuria.
A Justiça total, segundo Aristóteles, consiste na virtude de observância da lei, no respeito aquilo que é legítimo e que vige para o bem da comunidade. O fim das leis deve necessariamente ser o Bem Comum. Aquele que contraria as leis contraria a todos que são por ela protegidos e beneficiados. Ora, a Constituição Federal existe para garantir os direitos fundamentais do nosso Estado Democrático de Direito, então não deve ser modificada para atender a clamores populares, que se movem pela emoção ou pela paixão momentânea.
A liberdade é para o governo democrático o ponto fundamental de organização de poder, todos podem subir ao poder e aos cargos públicos, indistintamente.
Hobbes diz que a ditadura de um é preferível à ditadura de todos, e, instaurado o estado de guerra em condições naturais de convívio, é do estado violento que hobbes procura se afastar, defendendo um modelo segundo o qual o jusnaturalismo corresponde a obedecer às leis civis emanadas do soberano, e a ele se submeter de modo irrestrito, alienando-lhe todos os direitos e liberdades.
A concepção de Hobbes do Estado toma como ponto de partida uma concepção individualista, realista e pessimista do homem que recusa previamente qualquer juízo de valor moral. A sua concepção de Estado, numa visão materialista, implica a exclusão de forças subjetivas na constituição e manutenção do Estado, tais como interesses econômicos individuais, políticos individuais ou de grupos. Assim, quando se propôs a lei da ficha limpa por iniciativa popular, estava a se impor ao Estado uma opinião de grupos que têm interesse em mudar as leis em benefício de uma parcela da população, interferindo na vontade do Estado que tem que excluir essas forças exteriores para que não interfiram nas decisões.
Como o homem é um animal social por natureza que, enquanto indivíduo dotado de emoções e desejos, só é capaz de viver em sociedade se abdicar de sua liberdade e parcela de poder em favor do titular da soberania, não há como um projeto de iniciativa popular modificar as regras de jogo político logo no ano eleitoral só porque determinados grupos acham conveniente se livrarem de alguns candidatos que tenham uma vida pregressa desabonada, em detrimento dos princípios constitucionais adquiridos depois de anos de incessante luta pelos direitos fundamentais dos cidadãos.
O Estado hobbeseriano deixa pouco espaço para a existência e atuação de grupos e associações sociais e políticos, como seria o caso dessa lei da ficha limpa que foi encetada por esses tipos de grupos e associações. Hobbes vê tais grupos não como um fator estabilizador da ordem política vigente, e muito menos da justiça, mas como elementos geradores de dissensões ou de conflitos não só entre os próprios indivíduos como também, e principalmente, entre os cidadãos e o Estado, e por via de consequência, esses grupos não devem ter autonomia legal( no sentido de serem titulares de direitos de qualquer espécie) frente o Estado.
John Locke acreditava que todos os homens nascem livres e que os poderes emanados pelo Estado são limitados e o Estado existe por causa do consentimento dos cidadãos que o compõe. O que limita o poder do Estado é a própria Constituição desse Estado, que foi criada justamente para frear as arbitrariedades deste e de grupos isolados que visam usar o poder para os seus interesses particulares e não o interesse de todos. O Estado quando surge para sujeitar os homens ao seu império, e os homens perdem o direito de agir como únicos defensores de suas causas.
Locke reconhece que o ente político criado pela Sociedade - o Estado - é uma invenção humana, mas uma vez criado, adquire um poder enorme que possui natureza própria, o qual, se não for adequadamente controlado(pela Constituição que é o símbolo da soberania popular), sobretudo em termos jurídicos e políticos, conduz, via de regra, à opressão dos cidadãos. Por via de consequência, Locke vê que o poder soberano do Estado pode e deve ser revogável em qualquer momento, caso venha a se revelar opressor ou contrário aos interesses do povo.
O Soberano (no nosso caso, o presidente) é o mero um agente e executor da Soberania Popular, na medida em que o povo é a única fonte legítima do poder legislativo e executivo dos governantes. Se o povo elege como representante um candidato que possui uma vida política manchada por um ato que este cometeu no passado, não cabe ao legislador impedir que este candidato represente o povo que o colocou no poder, porque somente ao povo cabe decidir quem irá representá-lo. E os legisladores possuem uma responsabilidade exclusiva perante a comunidade como um todo em zelar pelo bem comum, se o legislador não corresponde a vontade popular este deve ser retirado do poder, mas não dessa forma como essa lei da ficha limpa está sendo aplicada, ferindo os princípio da Irretroatividade da lei, buscando fatos do passado em que não havia uma lei que proibia certos desvios de conduta, e o da anterioridade da lei, que versa sobre a aplicação imediata dessa lei como acima foi citado.
Para Locke, somente mediante o consentimento explícito da maioria dos cidadãos, através dos seus mecanismos legítimos de escolha, ou seja o sufrágio universal, é que os governantes podem permanecer a frente do Estado, reconhecendo que cabe ao povo o direito natural de resistência perante o governante politicamente injusto e/ou corrupto, não ferindo as normas superiores constitucionais.
Rousseau, diz que o Estado quando se forma em função do todo, age exclusivamente em função dos seus integrantes. Sendo assim, distinguiu a vontade geral da vontade de todos, pois o primeiro tem como objetivo o bem comum em sua totalidade, e o segundo visa somente os interesses particulares de cada um. Fazendo uma analogia com a Constituição e a lei da ficha limpa, veremos que aquela tem como finalidade a preservação dos direitos de todos os indivíduos sem tomá-los à parte, e a esta se move por interesses de grupos políticos e de pessoas que não tem sequer noção do que seja essa lei, o cidadão comum, que não teve o privilégio de uma educação cívica de qualidade, desconhece o teor dessa Lei da Ficha Limpa, e esses grupos políticos pró-ficha limpa escondem seus interesses particulares atrás dessa lei.
Fábio Comparato, considerando a postura de Rousseau, preleciona que : "a corrupção moral, em suma, sempre pareceu a ele (Rousseau) a principal causa da ruína da civilização moderna. Para vencê-la seria preciso encontrar um critério absoluto de moralidade, sobre o qual fundar a regeneração social. A ligação visceral entre educação e Política é, portanto, uma das ideias mestras do seu pensamento." E continua : "A pátria não pode subsistir sem liberdade, nem a liberdade sem a virtude nem a virtude sem os cidadãos; tudo será conseguido se os cidadãos forem formados; sem isto, só haverá maus escravos, a começar pelos chefes de Estado". Então, não é uma questão de moralidade é uma questão de educação. Se o povo tivesse uma educação de qualidade com certeza não precisaríamos de uma lei que restringe as opções do eleitor(o legislador, com essa lei, diz quem pode ou não ser candidato nas eleições). Ora, formar cidadãos não é questão que se resolva em um dia(ou alguns meses de discussão como ocorreu) e para termos adultos formados é preciso começar a instruí-los desde a infância. A corrupção é um antivalor social revelado e entranhado no povo brasileiro ao longo do processo de colonização, perdurando até hoje. É devido a falta de uma educação que conscientize os cidadãos que compõem a pátria.
Kant, como moralista que era não admitia a corrupção em hipótese alguma. Se lei da ficha limpa fosse esse ideário que todos imaginam, para esse filósofo seria indispensável a sua aplicação. Mas, como o filósofo afirma que todo objeto é contaminado pela razão humana e que "a razão humana é insuficiente para alcançar o modelo ideal de realização da felicidade humana", pois tudo está contaminado pelo sujeito que analisa o objeto, e continua " o criticismo detecta na razão um instrumento incapaz de fornecer todas as explicações e de produzir todas as deduções necessárias para explicar as razões últimas do existir, do querer, do escolher eticamente", então esse projeto de lei advindo da iniciativa popular é incapaz de solucionar o problema da corrupção, já que o ser humano age mais por interesse do que por uma inclinação natural para se fazer o bem.

Considerações Finais

Nesse breve artigo, conclui-se que a lei de nº. 135/10 revela-se inútil ao nosso Estado Democrático de Direito, pois atropela princípios básicos constitucionais como o princípio da Irretroatividade da Lei, o da Reserva Legal e o da Anterioridade da Lei. Os teóricos da filosofia serviram como apoio à ideia de supremacia de nossa Constituição em face à leis infraconstitucionais, posto que uma lei qualquer motivada por interesses outros que não os da coletividade, não tem o condão de diminuir ou acabar com a corrupção, já que esta está entranhada na nossa sociedade desde o início da colonização. Esses teóricos também deram suporte aos meus argumentos sobre o direito de escolha dos cidadãos, que somente a eles cabe decidir quem irá governá-los, e que esse leque de opções não pode em nenhuma hipótese ser diminuído por estratégia política de alguns grupos isolados que não correspondem a vontade do todo e que não visam ao bem comum.


Resumen

En este artículo se aborda el tema de la hoja limpia a la luz de la filosofía, que emplea con el apoyo teórico de los filósofos, desde Platón, Aristóteles, Hobbes, Locke, Rousseau y Kant. A través de estos filósofos distinguidos, mantenga el incumplimiento del borrón y cuenta nueva en estas elecciones, ya que el contenido de esta ley no es visible casos de inconstitucionalidad.

Palabras clave: Principios de Derecho. Constitución. Corrupción. Del Estado. Personas.


Referências Bibliográficas:

BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2002.
ALVES, Ricardo Luiz. A Concepção de Estado de Thomas Hobbes e de John Locke. Disponível em <http>//jus.uol.com.br/revista/texto/6181/a-concepção-de-estado-de-thomas-hobbes-e-de-john-locke/2. Acesso em: 16/11/10.
RONZANI, Dwight Cerqueira. Um Desafio à Sociedade Brasileira. Revista Jurídica Consulex, Brasília-DF. Ano XIV-nº 321, p. 26-28, Jun.2010.
Constituição federal