Faltou luz

Por Romano Dazzi | 06/06/2009 | Crônicas

FALTOU LUZ

de Romano Dazzi

 

Faltou luz, mais uma vez.   A gráfica inteira ficou na escuridão.

As duas impressoras bicolor, (as únicas  que estavam trabalhando) deram ainda um ou dois soluços, engasgando com o papel mal puxado e pararam definitivamente.

A lâmina da guilhotina, que descia implacável  para decapitar 400 folhas de papel  parou na metade do pacote, estragando a outra metade e ficando encalhada.  Se fossem pessoas, em vez de papéis, teriam morrido todas de enfarte.

Os dois velhos ventiladores de pás empoeiradas e barulhentas, ficaram quietos de repente.  Funcionavam o tempo todo, reduzindo o desconforto do calor no salão,  e ninguém se lembrava deles.

Mas bastou que ficassem desligados cinco minutos para que o ar quente e abafado, acumulado sob a antiga cobertura de telhas paulistas, descesse pesadamente,  ocupando todos os cantinhos e deixando as  pessoas sufocadas.

Na velha máquina de revelação, que fixa as imagens nas chapas de metal com ácido e luz ultravioleta, as lâmpadas apagaram; mas o processo químico continuou, corroendo as chapas que, fechadas a vácuo,  não podiam ser retiradas.

 

Somando tudo, cinco minutos de falta de energia  já tinham  transformado em prejuízo pelo menos uma semana de trabalho.

 

No escritório então, formou-se uma confusão 

Nas salinhas da frente, pelas mirradas  janelinhas abertas sobre um jardinzinho malcuidado, entrava ainda um pouco de luz natural; mas ela não duraria mais que uma meia hora, visto que  já chegava o fim de tarde

Na salinha da direita, o gerente, que  havia deixado para fazer à última hora os pagamentos via internet, não tinha agora nem luz, nem micro, nem informação alguma . Estava na escuridão mais completa.  

Maldito blackout e maldito quem o deixou acontecer, fosse ele quem fosse....

 

Na outra salinha, no mesmo instante em que a luz faltou, o encarregado da arte final soltou uma série de palavrões, coloridos e fantasiosos, completamente adequados ao momento.

 

Acabava de perder duas horas de trabalho, uma diagramação complicada e que tinha exigido o máximo da atenção. Tratava-se de um serviço urgente, que alguém, lá em cima, havia prometido ao cliente para a mesma tarde. 

 

Mais um pouco de trabalho, e estaria pronto.; mas o diagramador havia esquecido a regra de ouro., a regra numero um: o    “control B” .

 

Única maneira de guardar em segurança os dados, logo depois de digitados, o control B é a salvação, o remédio seguro, barato e sempre pronto; mas,  como todas as coisas fáceis de fazer, é difícil de lembrar. Duas horas de trabalho jogadas fora.

 

Tudo porque, devido à falta absoluta de dinheiro, nenhum dos micros contava com um modesto , um miserável no-break, que permitiria salvar tudo e ainda trabalhar por uma ou duas horas durante o blackout.

 

Na sala maior,  um antigo depósito sem janelas escuro e abafado, transformado em sala de orçamentos, a situação era igual. 

 

Lá eram calculados os custos e preparadas as ofertas, 

 

Os computadores apagaram e entraram em coma profundo no mesmo instante.

Tudo ficou em silêncio. Todos os cálculos perdidos; todos sumidos...

 

Até aquela central antiga que controlava os telefones, ficou calada,   completando a sensação de isolamento do resto do mundo.

Único elo possível, ficara o celular.

 

Um momento de rara beleza – pensou a telefonista.  

Um momento de silêncio ensurdecedor - pensou o encarregado.

Hora boa para ir  à esquina tomar um café, pensaram todos os outros....

 

 

Mas,  depois de um “Ohhhh!!! “ inicial, e simultâneo,  de surpresa e de desapontamento, e o desabafo  do diagramador, ninguém falou mais nada.

 

Todos ficaram esperando que alguma coisa acontecesse.

 

Era assim; uma vez por mês, pelo menos, de repente, faltava a energia.

Ou porque um caminhão derrubara um poste; ou porque um vento forte tinha arrancado uns fios; ou enfim,  mais freqüentemente, porque a conta ficara atrasada por mais de dois meses  Nunca por esquecimento, não . Por falta de dinheiro, mesmo.

O caminhão de serviço aparecia, mas quase sempre dava-se um jeito de evitar o corte. Da última vez, a turma era nova e não quis conversa: cortaram mesmo e só voltaram para religar o relógio   três dias depois, quando a conta já havia sido paga, com multa e juros,  com o  dinheirinho de algum pequeno  milagre.  

Mas desta vez   não havia  razão alguma . Simplesmente, a energia sumiu. E a gráfica parou de vez.

Sentadas em volta da grande mesa do “acabamento”, cinco pessoas – cinco bons colegas de trabalho  - aguardavam pacientemente.

Estavam acostumados a trabalhar juntos: como pequenos robôs; cada um cumpria uma operação e  ia passando o serviço  para a etapa seguinte.    

Na gráfica, apesar de se dividir as funções na mesa de trabalho,  dificilmente alguém põe nela  as suas preocupações, os problemas de sua vida diária.

Uma espécie de reserva, um sentido de privacidade, de segredo, impede-lhes uma comunicação livre e aberta.

De resto, o trabalho deve ser feito atentamente e depressa.

Não há tempo para bordados.

Não há ombros disponíveis.

Agora, cada um com  uma obrigação a cumprir, um serviço a acabar, todos se sentiam de  mãos amarradas. 

 Mas esta era uma ocasião propícia.

Na semi escuridão, numa involuntária  intimidade que todos sentiam, na proximidade que os reunia, no silêncio inusitado, tão diferente dos sons ritmados das impressoras, do bufar do compressor, dos baques surdos da guilhotina, tornava-se mais fácil confessarem um ao outro, e em conjunto, o que lhes andava na alma.

Começou José, um moreno de estatura média, cabelinho curto, quase rapado, como mandava a moda; de olhar vivo e perspicaz, estava sempre atento a tudo e a todos.

Começou vagamente, como se estivesse colocando na mesa um pacote de impressos para o acabamento: separar, dobrar, colar, etiquetar, envelopar, selar, juntar pelo CEP; o trabalho de sempre, de todos eles.

Mas desta vez eram apenas seus sentimentos. 

Lentamente, foi desfiando sua vida, seus problemas, falava e comentava diretamente com  a Maria Rosa, que estava ao lado dele; mas olhava de esguelha para os outros, que tinham parado de tagarelar e o acompanhavam atentamente :

José continuava a abrir o pacote, espalhando sobre a mesa os seus pensamentos.

Andava cansado da  esposa, não se dava mais, não queria mais cumprir aquela rotina diária que viera respeitando por mais de ano.

Pior:  já lhe tinha acontecido de ficar cansado da primeira esposa, da qual estava separado; e estava andando agora de braços dados com uma terceira namorada, esta, sim, a sua mulher ideal, esta sim, a verdadeira paixão, o amor de sua vida; apesar de ser  um pouco mais nova que a sua filha mais velha.

José pedia um conselho, mas procuravam na verdade,  uma absolvição.

A que eu faço ? O que me aconselha ?

Rose, esparramada à sua direita, acalorada a suada,, abanava-se  com um cardápio de pizzaria, que estava  contando e empacotando ao faltar a luz. A pergunta do José, apesar de dirigida à Rose, passou a ser ao assunto geral . 

 

A Angélica, a faxineira , logo deu um chega pra lá no José reclamando da metade do gênero humano:  “os  homens são todos iguais, uns porqueiras, nenhum deles vale um caracol!! -  

- Mas Angélica – chegou a objetar timidamente o José – não é Você que esteve casada por três vezes ? - 

(Ninguém lá era casado; todos estavam , estiveram, ou estariam casados;   sempre prontos para pular fora, para apagar o passado, para recomeçar; conformados que todos podem cometer um erro, ou dois, ou três; que nada existe de definitivo na vida; principalmente a própria vida...).

Sim, - respondia Angélica. – e é por isso que sei o que digo. O meu primeiro marido casou a força, diante do delegado, comigo grávida de seis meses.  Logo que a criança nasceu ele foi preso, por uma briga  no bar; foi condenado, fugiu  e nunca mais apareceu. 

- Aí, você casou com outro?

- Sim, mas de mentirinha, porque se o primeiro marido aparecesse, eu devia dar-lhe   um lugar na cama....

- Mas eu não ia ficar esperando  sei lá por quanto tempo. A  vida passa depressa,  gente  - e temos mais é que aproveitar.

- E o que aconteceu, então?

- Esse segundo marido não era flor que se cheire. Sumiu uns três meses depois, me deixou grávida de novo e  pior,  levou minha televisão, que nem tinha acabado de pagar.

- Assim, você ficou sem marido e com dois filhos...

- Que nada, já tinha três; um engano meu, de quando era mais mocinha, não sabia nada da vida....

- E agora? Você já está com outro ?

- Outro marido, você quer dizer. Porque filhos, nunca mais. Fechou a fábrica!

- Marido, tenho que ter. Ninguém pode ficar sozinho. Precisa de alguém para esquentar os pés no inverno e abanar a gente no verão. Quando não tenho um homem por perto, fico nervosa, tenho vontade de subir pelas paredes. Mas que eles são uns inúteis , uns cafajestes, uns sem vergonha, lá isso são. Mas o que é que se vai fazer? Ruim com eles, pior sem eles....

 

Assim que Angélica esgotou sua declaração, todos ficaram pensativos... Cada um comparando  dentro de si, o quanto havia de semelhante e de diferente em sua própria vida.

José, desarmado pelo rumo da conversa, tinha perdido a vontade de pedir conselhos e parecia ter-se encolhido no seu canto. Mas a Rosa veio socorre-lo.

- Eu sei que a Angélica tem razão, mas as mulheres também não são fáceis, não.  Eu andei paquerando um bocado, antes de ficar com alguém. Namorava no portão com um,  ia ao cinema com outro, acontecia de tudo com um terceiro;  A gente tem o direito de escolher, e tem a obrigação de saber qual é o bofe que vai  levar pra casa. .Não pode ir no escuro....

Eu tinha bastante tempo, antes de casar; e o Toninho faltava ao trabalho de vez em quando, para namorar comigo – e algumas coisinhas mais...Tempinho bom, aquele! O melhor tempo de minha vida....

Finalmente casei,e foi uma ducha fria. Ele perdeu o emprego – porque  faltava muito, ficávamos namorando o tempo todo  – e aí eu precisei começar a trabalhar firme. Resultado: ele ficava em casa pensando besteiras , e quando eu chegava, tão cansada que não via a hora de cair na cama, ele vinha todo quentinho, dengoso, pedindo carinho...

O casamento não durou seis meses. Tive que pô-lo na rua. E me arrependo até hoje.  Talvez eu tenha um pouco esta sina de ser usada...Mas digo novamente: é mais culpa das mulheres que dos homens...

Depois da separação, chegamos na frente do juiz, porque queríamos fazer as coisas direito, como se deve; mas não havia muito para distribuir: não é como com gente rica – o carro fica comigo, o apartamento com você, mas o som não deixo, e você paga o condomínio; os quadros são meus e você fica com a TV a  plasma e o piano de cauda - ao contrário. Eu fui traída e tudo fica comigo; senão, eu toco fogo. Até o juiz concordou. Mandou me dar uma pensão de 150 reais, mas só enquanto eu não tiver ninguém por perto. Se aparecer alguém, a festa  acaba.  Oh, vida dura !   

 

José ficou mais preocupado ainda; mas pensando melhor, de um lado, ele se achou  justificado em sua vontade de virar a mesa... para chegar ao terceiro ato.

 

Josenildo, que tinha ficado em silêncio durante todo esse tempo, falou lentamente: - eu estou casado há cinco anos – vou completar seis em setembro - e nunca tive nenhuma dessas encrencas que vocês contaram.  Eu gosto da Amélia e ela gosta de mim. E não precisamos de mais ninguém. Trabalhamos os dois, a gente se vê rapidinho de manhã, cada um toma seu ônibus e voltamos a ver-nos só a noite. Um pouco de novela, e cama, porque o serviço é pesado, para os dois, de segunda a sábado. Só de domingo papeamos um pouco, depois  a gente vai visitar os parentes, filar um almoço, passear no parque.  

Um silencio pesado caiu sobre o grupo.

- E quando tiverem filhos ? Como vai ser a rotina ?  perguntou o José.

- Ela vai ficar em casa e eu vou “camelar” um bocado a mais. Não queremos deixar a ninguém a tarefa de criar nossos filhos. Nem avó, nem vizinhas, nem escolinhas antes dos cinco anos. Vamos apertar o cinto, mas prometemos agüentar firme. 

- Que Deus ajude  – atalhou o José – vocês vão precisar muito...

Se precisarem de ajuda..., arriscou Maria Rosa. ...

 

Era realmente a primeira vez  que se  permitiam abrir-se um com o outro, e na frente de todos, revelando-se como seres humanos, fracos, simples, vulneráveis    ao mesmo tempo resistentes e resignados. Cúmplices o silêncio, a escuridão, a Eletropaulo,  a mesa de acabamento. Nunca mais seriam cinco criaturas isoladas; daquele momento em diante, querendo ou não, participariam das vidas uma da outra, e talvez – apenas uma suposição  - se ajudariam a carregar seus fardos.

De repente, assim como sumira, a luz voltou. 

Deslumbrados pelo fulgor súbito, não puderam se olhar nos olhos; o zumbido dos motores recomeçou, encobrindo as vozes; as impressoras reiniciaram o seu monótono vai-e-vem; tudo voltou a ser como antes; ou não; certamente, nada seria como antes.  

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