Falando Sobre a Morte

Por Antonio de Jesus Trovão | 19/11/2008 | Saúde

“Nós temos que nos tornar na mudança que queremos ver”. Mahatma Gandhi.

“Somente eu posso mudar minha vida. Ninguém pode fazer isso por mim”. Carol Burnett.

Muito embora tenhamos absoluta certeza de que a morte não é uma entidade, mas sim uma fatalidade e, deste modo, não possui imagem muito menos rosto, na maioria das vezes pensamos nela como uma entidade com imagem, forma e rosto, tentando caracterizar aquilo que inevitavelmente não pode receber qualquer designação corpórea por tratar-se do destino de todos, a qualquer tempo e sob qualquer circunstância.

Muitas vezes deparo-me com a idéia da morte parecer-se com uma mulher. Não uma mulher fatal, insinuante, vestida de vermelho cor de sangue, sorriso maledicente nos lábios, olhar penetrante e corpo escultural pronta para nos abraçar com o frio afago do último suspiro que possamos ser capazes de dar em vida. E neste abraço reside o fim de nossos dias, fim de nossas esperanças, amarguras, convicções e, principalmente as possibilidades que poderiam descortinar-se à nossa frente. Este, talvez, seja o estereotipo mais comum que perscruta os corações e mentes de seres humanos viventes que ou esperam pela sua chegada ou que sabem que, qualquer dia, qualquer hora, ela virá lhes visitar com a finalidade única e exclusiva de dar-lhe o abraço final.

Todavia, acredito sim que a morte se assemelhe a uma mulher, porém não uma mulher fatal e insinuante. É uma mulher dócil, de olhar gentil e afável, que sorri com aquele mesmo ar enigmático da Mona Lisa, que está sim de braços abertos à nossa espera não para uma abraço frio e repleto de dor e ansiedade. É uma abraço fraterno de quem ansiosamente nos esperava e nos tinha na conta de que nosso fim seria apenas um começo e que sua chegada deveria representar ato de resignação e comiseração por nossos atos, pensamentos, palavras e omissões.

Esta mulher é um ser etéreo que possui no olhar não o brilho da vida, mas também não traz a escuridão da morte. Seu olhar é doce e singelo, até mesmo porque ela sabe que nosso medo e nossa ansiedade por sua chegada não deve significar mais sofrimento ou mais dor, apenas deve evidenciar um fato impossível de ser evitado, mas que deve ser recebido sem qualquer expectativa, já que esta expectativa existia até aquele momento.

Ela nos mostra que qualquer expectativa ali se encerrou, findou-se uma existência que deve ser comemorada, celebrada e refletida naquele momento tal qual um filme de grande produção artística. Ela sabe que não é momento de dor absoluta, de ausência completa de sentimentos, pois apenas estes nos restarão a partir do momento final. Sim, acredito que é uma mulher de fibra que nos espera sem irresignação pela sua tarefa, uma atividade necessária não apenas de forma geral, mas em especial no que se refere à necessidade de cumprimento dos ditames biológicos e existenciais da raça humana.

Sem dúvida é uma mulher, feminina e sensível, que nos espera com complacência e com dignidade, almejando também que tenhamos dignidade, pois apenas os idiotas acreditam que não há dignidade na morte. Ora, se a vida foi assim vivida porque na morte nos tornamos indignos? Existe a minúscula possibilidade de que após termos vivido uma existência repleta de experiências, de aprendizado, de convivência não apenas com aqueles que nos são caros, mas com a mais diversa gama de pessoas e deles extraído sempre aquilo que de melhor podiam elas no dar; de ter usufruído de imagens, sons, gestos, mensagens e experiências únicas, mesmo assim acabaríamos por encerrar esta trajetória fantástica cercados de indignidade, mesquinhez , dor e sofrimento.

Apenas idiotas, descrentes e aqueles que não souberam aproveitar suas vidas na mais absoluta integralidade do espetáculo particular que esta representa para cada um de nós, pode supor que a morte seja algo indigno, deprimente ou mesmo insignificante. Esta mulher nos mostra que, na realidade, acrescentamos experiências para aqueles com quem partilhamos nossa existência, bem como somos chamados a partilhar a existência de outros com o intuito de nos aprimorarmos tal qual um aprendizado, do qual a morte também faz parte, integra nossas existência não apenas para sobre ela descerrar o pano do fim de cena. Serve também para exigir de nós uma necessária reflexão sobre o que fomos, o que fizemos e o que pensamos e agimos ao longo de nosso périplo neste pequeno planeta azul.

Sem qualquer dúvida é uma mulher de meia idade com a qual o tempo não foi ingrato, até mesmo porque ela sabe muito bem esperar a hora, o momento certo, aquele momento em que se apresentará, com um sorriso fraterno nos lábios, braços abertos e um olhar cálido e suave que sabe muito bem sobre nossos temores e inseguranças neste momento que representa de forma emblemática o gran finale da ópera magistral que foi nossa existência e o modo com que este espetáculo modificou a razão de ser de cada um daqueles seres com os quais compartilhamos a mais ínfima das oportunidades e, reciprocamente, como estes doces momentos foram cruciais para que aprimorássemos nossa capacidade de compreender o mundo que nos cerca, nossa própria existência e , principalmente, a razão de ser de tudo que foi criado.

Analisando este aspecto sobre a morte, impõe-se a nós um questionamento extremamente significativo para todos nós: como é possível alguém ser capaz de pensar na possibilidade de tirar sua própria vida? Como cabe imaginar-se que um ser vivente pode supor a possibilidade de dispor de algo que lhe foi dado com enorme carga de amor, carinho e dedicação? Vamos nos deter nesta consideração por um pequeno instante e sobre ela meditar.

Sob o ponto de vista meramente biológico, estudos recentes comprovam a tese inicial que a vida deu-se por conta de um acidente bioquímico na aurora dos tempos. Uma oportunidade única que a mãe natureza aprimorou em suas qualidades a fim de produzir algo singular e especial: a vida, a concepção do fruto pensante sobre a terra também recém-nascida. Ora, quem é capaz de negar que, sob este único aspecto, a vida foi uma dádiva que se repete eternamente, multiplicando oportunidades e possibilidades de futuro e de otimismo? Não, lamentavelmente, ninguém, acredito, seria capaz de construir qualquer argumentação capaz de sufocar esta idéia.

Assim, como podemos imaginar dispor de alguma coisa tão superior a nossa própria capacidade de compreensão, valendo-nos de torpe ato de encerrar, sem mais nem menos, aquilo que se iniciou com um milagre acidental e que nos propiciou toda esta maravilhosa universalidade que nos rodeia, nos invade e nos torna mais próximos de algo superior a nós mesmos?

Passando para um outro aspecto, se considerarmos que a existência humana sobre a terra pode ser única – ou seja, nós somos uma concepção única e esplendorosamente singular – que, com certeza não podem ser reproduzidas em qualquer outra dos milhões de estrelas existentes no cosmo infinito. E mais uma vez nos defrontamos com a ambigüidade contida na capacidade de um indivíduo em retirar a sua própria vida.

Desta forma, temos uma assertiva cujo conteúdo não pode ser refutado sobre qualquer aspecto que se analise evidenciando que renunciar sobre a própria vida, além de incompreensível, não ontem qualquer razoabilidade em ser objeto da ação de alguém que deseja por fim à sua existência, seja qual a justificativa por ele adotada.

Aliás, nada mais torpe é imaginar-se alguém buscar a autodestruição através do consumo de drogas e psicotrópicos, consumindo a si mesmo e a todos que o amam de forma lenta, gradual e desprezível, assemelhando-se a um consumismo tolo e sem qualquer objetivo que não seja a fuga da realidade. Fugir de si mesmo parece-nos um comportamento recorrente do ser humano, que cria expectativas cuja grandeza acaba – se frustrada – gerando uma enorme decepção e, via de conseqüência, deságua em uma enorme sensação de insegurança, medo e, finalmente o desespero, desespero este que torna o indivíduo frágil até mesmo em face de seus próprios pensamentos, criando motivo e oportunidade para que qualquer “muleta” psicológica sirva-se desta fraqueza de espírito obliterando as perspectivas do ser humano e tolhendo suas habilidades naturais de sobrepor-se aos obstáculos que diariamente se lhe apresentam, enfraquecendo não apenas sua mente e sua alma, mas também o seu coração tolhido por medos, fraquezas inconfessáveis e uma enorme escuridão, que atirará este ente num torvelinho de dependências cujas conseqüências ele não será hábil em evitar.

Sabemos, portanto, que a morte deve ser realmente uma mulher, até porque irrefutável é o fato de que a mulher foi dotada de capacidades de amar, ser amada, de compreender e de aceitar, que seu parceiro nem de longe imagina que ela possua. Apenas uma mulher possui a necessária sensibilidade para compreender as perdas que as crises nos oferecem e sobre elas ponderar encontrando, sempre, o melhor caminho em meio às brumas que permeiam a nossa existência.

Realmente, não podemos negar que se a morte possuísse uma entronização humana, esta seria a figura doce e carinhosa de uma mulher que sempre nos espera e sempre nos compreende – até mesmo porque, não podemos negar que apenas uma mulher é capaz de compreender outra mulher – e, desta forma considerada, sabemos que a morte, embora esteja muito distante de ser algo dócil, deve ser encarado como uma parcela resolutiva de uma existência digna e, somente assim, poderemos respeitar a morte como um evento digno sem o qual qualquer existência – seja a de um herói, seja a de um criminoso – não teria o menor sentido, a menor razão de ser: existir é uma experiência maravilhosa que, como uma história bem contada, possui começo, meio e fim.

"Não há cura para o nascimento e a morte, a não ser usufruir o intervalo". George Santayana.

Abraços Fraternais a todos que leiam esta pequena digressão.