Existir

Por Bernard Gontier | 05/04/2011 | Sociedade


Sou um índio quíucha. Moro numa casa de adobe quíucha, resistente o bastante para nos abrigar do frio, numa encosta desolada, cercada de relva escassa.

Não sei o que é Nike, Microsoft, best seller,caneta esferográfica, caderno espiral, forno micro-ondas.

Sou um índio quíucha, habitamos os altiplanos peruanos por causa do invasor. Aconteceu há muito tempo. Em virtude do ar rarefeito, nossos corpos se moldaram assim: pulmões amplos, corações 20 por cento maiores que a média, troncos corpulentos, braços e pernas curtos, tudo para facilitar o sistema circulatório. Mas não tenho consciência disso. Sei que preciso sobreviver aqui em cima. Disso tenho consciência.

Sou um índio quíucha. Não sei o que é NASA, Hollywood, happy-hour, carboidratos, Porshe, Ferrari, creme dental, Ilhas Virgens, monitor de plasma, eletro encefalograma, propaganda oficial.

Minha casa de adobe emana fragrâncias de corpos sem banho, mais o esterco de lhama e ovelha que servem para fomentar o calor da pequena lareira. Os cômodos são escuros pois não há janelas, assim a fumaça é eterna e os odores idem. Talvez isso interfira na respiração e nos olhos. Não sei. A mulheres idosas tecem mantas embora mulher alguma, jovem ou idosa, fale espanhol. Alguns homens falam um pouco. Foi apenas através do dialeto quíucha que não ouvi nem meus pais, nem meus avós e bisavós, se queixarem da escassa ventilação da casa. Sei apenas que devo cuidar das lhamas.

Sou um índio quíucha. Nunca ouvi falar do Iraque, da Otan, dos Beatles, Vinicius e Jobim, não sei o que é liga de tungstênio, pen drive, DVD, HD, Sony, e reajuste salarial.

Nossa família toma dois banhos por ano, em Cailoma. Ali a água quente é disponível. Masco folhas de coca misturadas com pequenos fragmentos de carvão. Isso ajuda, durante o trabalho e nas longas viagens à pé. Meus dentes enegrecidos e meu olhar opaco são derivados desse hábito. Não me dou conta disso. Sinto fome boa parte do tempo. Disso, contudo, me dou conta.

Certa vez me ocorreu que a vegetação por aqui seria mais rica, não fossem as lhamas. Mas não reclamo. Graças a esses bichos temos lã, couro, gordura e até suas pelotas fecais tem serventia, pois, como já disse, são usadas nas lareiras. São também boas bestas de carga, se o peso não for superior a 50 quilos. Na verdade nunca pesei. Sei que se recusam. Por isso já passei.

Sou um índio quíucha. Jamais ouvi falar de turbinas, geradores, raios laser, verbas governamentais, satélites, mísseis teleguiados, vídeo conferência ou banco eletrônico. Sei que alguns forasteiros, quando me vêem descalço conduzindo as bestas, perguntam se não sinto frio nos pés, numa temperatura abaixo de zero. Talvez eu tivesse lhes respondido, se entendesse a língua, ou se tivesse consciência de que é tão frio assim, como dizem.

A vida talvez seja e triste e sombria nessas paragens, os avós de meus avós contam que um dia prenderam o Inca, mas que talvez um dia ele volte. Por hora devo cuidar das bestas, e ocasionalmente, atravessar as pontes sobre o Apurimac, feitas de capim entrelaçado. Ouvi dizer que às vezes elas cedem face ao desgaste do tempo.

Sou um índio quíucha, de fato, não sei de muitas coisas do mundo.
Sei, no entanto, que eu existo, e que pelo fato de existir, nada devo temer.