Execução por quantia certa contra pessoa jurídica dissolvida de forma irregular

Por Thyciana Maria Brito Barroso de Carvalho | 15/06/2017 | Direito

 

Thyciana Maria Brito Barroso de Carvalho 

1 CASO 

No mês de fevereiro do ano de 2015, Zaqueu Togarmaa acionou em juízo a pessoa jurídica Naftali Investimentos Ltda. Tratou-se de uma ação de execução de título extrajudicial objetivando o recebimento do importe de R$ 500.00,00 (quinhentos mil reais), representado por um título de crédito (cheque), emitido pela devedora.

Procedendo o andamento normal do processo, expedido o mandado de citação, o oficial de justiça certificou nos autos a não localização da executada Naftali Investimentos Ltda. no endereço sito na inicial (o mesmo que consta, inclusive, nos atos constitutivos da pessoa jurídica arquivada na JUCEMA).

Sobre o ocorrido, o Exequente alegou que caracterizaria a dissolução irregular da sociedade, motivo pelo qual, com fulcro no artigo 50 do Código Civil, pleiteou a desconsideração da personalidade jurídica e a inclusão de todos os sócios atuais no polo passivo da demanda, assim como de todos aqueles que figuravam como sócios da sociedade devedora à época da emissão do cheque.

Tal intento restou deferido pelo juiz, que determinou, de imediato, a penhora de todos os ativos financeiros dos sócios e ex-sócios da Executada, via sistema BANCEN-JUD. O magistrado impôs que não apenas o atuais sócios como também todos os outros que participavam do capital social antes que a empresa fechasse suas portas deveriam responder pela obrigação imposta no título.

O comando de penhora logrou êxito apenas em relação a Levi Matusael, que teve R$ 30.000,00 (trinta mil reais) penhorados de uma conta-poupança, R$ 20.000,00 (vinte mil reais) penhorados de um investimento em plano de previdência privada (modalidade VGBL) e R$ 2.000,00 (dois mil reais) de uma conta-corrente.

Algumas questões foram alegadas por Levi Matusael, que serão organizadas em tópicos a seguir.

 ANÁLISE DO CASO

É preceito constitucional, disposto no artigo 5º, inciso LIV da Carta Magna do Brasil, o respeito ao devido processo legal de qualquer embate resolvido diante do crivo do Poder Judiciário do país.

O processo de execução é amparado pelos mesmos princípios que dispõem sobre o processo de conhecimento, sendo característico apenas em algumas especificidades. Ademais, é imperioso o reconhecimento do devido processo legal para a validade dos atos praticados em favor das partes que envolvem tal demanda, quais sejam: o Exequente e o Executado.

Sobre referido assunto, preleciona Adriana Tolfo de Oliveira: 

No processo de execução, o exercício da atividade jurisdicional fica subordinado aos mesmos requisitos que se impõem ao processo de conhecimento, conforme dispõe o art. 598 do Código de Processo Civil, mais os pressupostos específicos da execução forçada, isto é, o inadimplemento do devedor (art. 580 do CPC). Assim, cabe análise, no juízo executório, dos pressupostos processuais e das condições da ação e do respeito aos princípios constitucionais e processuais. (2007) 

No processo em tela, o devido processo legal foi levado a efeito, mesmo que tenha sido frustrada a citação da devedora, pois esta decorreu de falha, ou fraude, dela mesma. No que diz respeito à penhora do patrimônio de Levi Matusael, deve-se consignar que, por ser presumida a existência da dívida no processo de execução, o contraditório e a ampla defesa são restritos, deixando margem para o mesmo impugnar tal decisão do juiz através dos embargos. (OLIVEIRA, 2007)

No entanto, vale ressaltar que existe doutrina divergente no que diz respeito ao contraditório no caso de alcance da dívida ao patrimônio dos sócios, pois “a garantia do contraditório é um direito fundamental e, nessa condição, qualquer questão que envolva a possibilidade de sua mitigação ou eliminação deve ser vista com muita reserva”. Entende-se, desta feita, que, para essa parcela da doutrina, o devido processo legal foi mitigado. (DIDIER JR, 2014, p. 284)

 

O magistrado acertou no que diz respeito à desconsideração da personalidade jurídica, pois o caso hora em análise encaixa-se perfeitamente no que indica o artigo 50 do Código Civil brasileiro - técnica bastante discutida na doutrina que busca o impedimento da utilização fraudulenta da pessoa jurídica. Vale dizer que tal desconsideração não tem por finalidade extinguir a pessoa jurídica – trata-se, na verdade, de uma técnica de suspensão episódica da eficácia do ato constitutivo da pessoa jurídica, de modo a buscar, no patrimônio dos sócios, bens que respondam pela dívida contraída. (DIDIER JR, 2014, p. 283)

 

O cheque, por força de lei, é considerado um título executivo extrajudicial, o que é auferido pelo artigo 585, inciso VIII do Código de Processo Civil. É bem verdade que tal permissividade não é totalmente ampla, tendo, tais títulos, que preencherem determinados requisitos dispostos no artigo 586 da mesma lei, quais sejam: certeza, liquidez e exigibilidade. (CÂMARA, 2009, p. 189).

Pois bem, necessário, portanto, buscar preencher tais requisitos. Em um primeiro momento, observa-se que sobre a certeza, é inegável que exista, pois o cheque em questão possui todos os elementos característicos do título. No que diz respeito à liquidez, inegável também a sua existência, pois está expresso no título o quantum debeaturda devedora em face do credor, qual seja: R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). Já no que corresponde à exigibilidade, vale dizer que não existe nenhuma condição ou termo que impeça a sua cobrança, devendo, portanto, ser considerada exigível. (CÂMARA, 2009, p. 193)

No entanto, desenvolvendo uma análise do caso, é possível identificar que a dívida é proveniente de agiotagem, tipificada como crime no artigo 4º da Lei n. 1.521/51, o que torna todos esses requisitos prejudicados. A jurisprudência é vasta nesse sentido, senão vejamos um exemplo: 

EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. EMBARGOS DO DEVEDOR. DÍVIDA DECORRENTE DE AGIOTAGEM. NULIDADE DA EXECUÇÃO. Evidenciando a prova que o título objeto da execução deriva de prática de atividade reservada às instituições financeiras, constituindo ilícito civil e penal, impõe-se o reconhecimento de sua nulidade, bem assim da execução com base nele aforada. Sentença de primeiro grau mantida por seus próprios fundamentos. Recurso improvido. (Recurso Cível Nº 71000597039, Terceira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Clovis Moacyr Mattana Ramos, Julgado em 30/11/2004)

Verificada a nulidade do título executivo, inegável que inexiste certeza, liquidez e exigibilidade do mesmo. 

Antes de mais nada, deve-se levar a efeito o que fora alegado no tópico 1, onde se expôs os motivos do devido processo legal do caso em tela. É inegável que a parcela da doutrina que defende o contraditório e a ampla defesa no processo de execução repugna o que o magistrado fez, ou seja, o ato de penhorar parte do patrimônio de Levi Metusael sem que antes este fosse ouvido, ou citado (por edital, artigo 231, CPC) pelo menos, foi flagrantemente usurpador do seu direito de ser ouvido antes que qualquer ato judicial que lhe prejudique.

Noutro viés, vale argumentar que o título executivo extrajudicial trazido a juízo em fevereiro de 2015 já estava prescrito desde agosto do ano de 2014, como dispõe a regra prescricional indicada pela Lei Federal n. 7.357/85 em seu artigo 59. Desta feita, por já ter passado o prazo, não se permite mais a execução, mas será possível a ação monitória (Súmula 299 do STJ). Portanto, deve ser desconsiderada tal demanda no processo de execução e outra ação, agora no campo do conhecimento, deve ser ajuizada e julgada para que então seja gerado um novo título. (DIDIER JR, 2014, p. 179)

Por fim, pode-se alegar ainda que o título executivo extrajudicial cobrado em juízo é proveniente de crime, qual seja: agiotagem, o que o torna nulo, incapaz de gerar certeza, liquidez e exigibilidade, segundo vasta jurisprudência pátria. 

3 REFERÊNCIAS 

BRASIL. Código Civil e Constituição Federal e legislação complementar. – 18 ed. – São Paulo: Saraiva, 2012. – (Legislação Brasileira). 

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 17ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. 

DIDIER JR. Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual Civil. 6ª Ed. V.5. Salvador: Juspodivm, 2014 

OLIVEIRA, Adriana Tolfo de. O princípio do contraditório, ampla defesa e processo legal diante do novo processo de execução de título extrajudicial. Justiça do Direito. v. 21, n. 1, 2007, p. 9-21.