Evolução histórica das excludentes de ilicitude

Por Paulo Rangel de Carvalho Junior | 19/07/2009 | Direito

As sociedades, cansadas de viverem num regime jurídico que não lhes proporcionavam segurança, entregam ao Estado uma parcela de sua liberdade, colimando viver o restante com mais tranqüilidade. O Estado então passou a manipular exclusivamente o ius puniendi, punindo o agente que atentasse contra os bens jurídicos de seu interesse, que podem ser públicos ou particulares. Todavia, é impossível que o Estado possa estar presente em todos os momentos de conflito para salvaguardar a todos os seus tutelados. Por isso, legalmente permite ação ao particular como se o próprio Estado fosse para defender seus interesses jurídicos legítimos ou de terceiros, desde que preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos da justificante. Os requisitos objetivos são os limites traçados pela lei material, onde é permitido ao agente reagir. Por seu turno, o requisito subjetivo é a consciência da ilicitude ou da antijuridicidade, usadas no Direito pátrio como expressões sinônimas. O Direito é estático em relação aos acontecimentos sociais que estão em constante movimento e mutação. Em razão disso, não pode prevê todas as hipóteses que legitimam as atitudes do autor do fato, reconhecendo como justificantes causas supralegais, não disciplinadas pelo legislador pátrio, mas que também têm o condão de elidirem a ilicitude. A ilicitude é uma ação típica que não está justificada. Consiste na falta de autorização dos atos do agente por parte do Estado. Matar outrem é considerado uma ação típica porque infringe a norma que diz não deves matar; esta ação será ilícita se não for praticada sob o amparo de uma causa de justificação. As causas legais de exclusão da antijuridicidade têm morada tanto na parte geral do Código Repressivo (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular do direito) como na parte especial (coação para impedir suicídio, ofensa irrogada em juízo na discussão da causa, aborto terapêutico etc). O exercício das excludentes, quando realmente necessárias, é fundamental para toda a célula social, uma vez que irá ao socorro de interesses jurídicos de suma importância para a própria subsistência do Estado.

O Direito Penal existe desde os primórdios da existência humana. Ele surge com o homem e o segue através dos tempos, pois o crime, sua sombra sinistra, nunca dele se afastou. Não estamos falando do Direito Penal como sistema orgânico de princípios, que adveio com a civilização, e sim, daquele que nasce das necessidades essenciais das sociedades humanas, onde são disciplinadas por ele como condição vital a sua própria sobrevivência.

Nessa época remota, os grupos sociais viviam em ambiente mágico e religioso, onde a seca, as pestes e demais fenômenos naturais maléficos eram considerados resultantes de forças divinas, "Totem", em detrimento de fatos praticados que mereciam reparação. Criaram-se, então, inúmeras proibições com o afã de aplacar a ira dos Deuses, chegando-se até ao sacrifício da vida do transgressor.

Mesmo em pleno século XXI, com todo o aparato tecnológico que o homem dispõe, ainda é um mistério a origem do Universo. Várias são as teorias que tentam explica-la. Todavia, somente duas delas são constantemente ventiladas no meio científico: a teoria da criação, pregada pelo cristianismo e pelo judaísmo; a teoria do evolucionismo, elaborada a partir de princípios e estudos científicos, tendo seu principal expoente o naturalista britânico Charles Robert Darwin.

Para a primeira teria, Deus teria feito o mundo em sete dias e agraciado o homem com a sua imagem e semelhança. Por seu turno, a segunda teoria sustenta que gazes existentes no Universo se aglutinaram e desencadearam uma incomensurável explosão, lançando pedaços de matéria por todo o cosmo. Parte desses fragmentos deu origem ao nosso sistema solar.

Após bilhões de anos de profundas transformações, surgiu à primeira forma de vida terrestre, uma bactéria marítima. Novas formas de vida então foram surgindo e passaram a integrar o reino vegetal e animal.

O cristianismo, o judaísmo e o próprio islamismo acreditam que a pena foi criada pro Deus para punir Eva, que proibida por ele, cedeu à tentação imposta pela serpente, resolvendo saborear o fruto proibido, a maça, sempre ladeada por Adão. Foram apenados com a pena de degredo, deixando para trás o paraíso.

Os adeptos da teoria evolucionista acreditam que a pena surgiu quando os primatas desceram das árvores, devido a escassez de alimentos, fixando-se no solo, surgindo como primeira punição a retribuição ao ataque iniciado pelo grupo rival, uma vingança.

Tudo não passa de suposição, porém, certo é que nenhum dos povos dispensou a pena como forma de arma para o controle social e manutenção de seus interesses.

Com a evolução humana, passamos à fase da vingança privada, onde o castigo era proporcional ao delito, tendo como seu precursor Talião. Antes de Talião, a punição ficava a cargo do ofendido que poderia matar, escravizar ou banir o delinqüente. A pena ultrapassava de longe a pessoa do seu infrator para recair sobres seus familiares ou inteiramente sobre sua tribo.

Não podemos negar que a pena de Talião representou um enorme avanço. A partir dele, a pena passou a ser individualizada, infringido somente o infrator, ficando sua aplicação restrita ao mal praticado, sendo que antes ficava ao talante do agredido a punição do renegado, que poderia ser executada com requintes de crueldade, sem qualquer critério de justiça.

Posteriormente, encontramos o sistema da composição, no qual o ofensor se livrava da punição pela compra de sua liberdade, pagando com moeda, mantimentos, gado, armas etc. essa doutrina foi adotada pelo Código de Hamurabi (Babilônia), pelo Pentateuco (Israel) e pelo Código de Manu (Índia), sendo largamente difundida pelo Direito germânico, vindo a ser considerada a origem remota das contemporâneas indenizações do Direito Civil e da multa do Direito Penal.

Os livros de história nos contam da parceria entre a Igreja e o Estado, que uniram forças com o intuito de manipular o povo. Fazendo-o acreditar que todos os males que o afligiam era a vontade de Deus e fruto de pecados cometidos em "outras vidas". Dessa união aparece a fase da vingança divina. O Direito Penal, nessa época, tinha sentido místico, reprimindo o crime para a satisfação dos Deuses. A incumbência divina era delegada aos sacerdotes que aplicavam penas severas e desumanas, visando intimidar novas práticas, o que não aconteceu.
Encontramos referências históricas na Babilônia, Egito (cinco livros), na China (livro das cinco penas), na Pérsia (Avesta) e Pentateuco.

O Direito repressivo não se mostrou estático, e com maior organização social, chegou-se a fase da vingança pública, que protegia o príncipe, aplicando penas bastante severas. Mais adiante, retirou-se da pena o seu caráter religioso, transportando a responsabilidade para o grupo social.

A fase medieval do Direito Penal teve grande influência do Direito Romano, Canônico e Bárbaro. Cominava pena de morte tais como fogueira, afogamento, soterramento, enforcamento etc. acém do mais, a punição dependia da condição social e financeira do individuo, vez que era comum o confisco de bens como pena ao invés dos castigos aplicados aos menos favorecidos, resplandecendo a total desigualdade da época.

Desse sentimento de repúdio a desigualdade surge o iluminismo,movimento mundial iniciado na França após sua revolução, surgindo o Período Humanitário do Direito Penal que apregoa a humanização das leis e da administração da justiça penal, tendo sido esse pensamento brilhantemente advogado por César Bonessana (marquês de Beccaria) em seu clássico intitulado "Dei deliti e delle peni, inspirado na obra de Montesquieu, Rousseau, D'alembert, Didirot e Buffon.

Nota-se que o homem, cansado de uma liberdade a qual não podia manter, sacrificou uma parcela desta para usufruir o restante com maior segurança, instituindo o Pacto Social, idealizado por Russeau em sua obra prima O contrato social, que delega poderes à sociedade para criar normas de condutas que devem ser observada por todos.

O fato social que se mostra contrária à norma de Direito, configura o ilícito jurídico, cuja forma mais extrema é o ilícito penal que atenta contra os bens mais relevantes para a vida social. Todo valor reconhecido pelo direito torna-se um bem jurídico.

Para tentar salvaguardar esses direitos o Estado prescreve sanções e demais medidas visando prevenir e reprimir o desencadeamento de fatos atentatórios aos bens jurídicos dos cidadãos. A arma que se vale o Direito Penal como meio de ação é a pena, que imprime ao autor da conduta repudiada pela norma jurídica um mal que corresponda em gravidade ao dano por ele causado.

Todavia, existem momentos em que os bens igualmente tutelados pelo Estado apresentam-se em conflito, não podendo a ordem jurídica coloca-los a salvo sem que haja o sacrifício de pelo menos um deles, pois o Estado não pode estar presente em todas as situações, ficando a defesa desses bens ao talante do ofendido.

Todos os bens da mesma espécie têm valor igual para o Direito. O direito À vida de um homem tem a mesma importância que a de outro. Entretanto, ao nosso sentir, quando um deles age de maneira ofensiva em relação ao outro, deve o Estado entender que naquele momento, em que o direito do ofensor é inferior ao direito do agredido, está o ofendido legitimado para proteger seu direito, mesmo em razão da destruição de outro bem, que naquele instante se apresenta inferior, configurando a teoria da colisão dos bens juridicamente tutelados.

Eis que surgem as Excludentes da ilicitude, que são a legítima defesa, o estado de necessidade, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular do direito, causas que legitimam a prática de um fato típico, não atribuindo-lhe ilicitude, fator essencial para a caracterização do ilícito penal, desde que seja o único meio plausível de ação e capaz de afastar o perigo que circunda o agredido.

Por isso, a importância do elemento subjetivo que nos revela a verdadeira intenção do agente que sendo exclusiva para a repulsa de um mal injusto, torna-se legítima, devendo ter o agente a consciência de estar agindo protegido pelo manto do Direito.

As excludentes da ilicitude constituem um valioso instrumento de defesa para a Sociedade. Sua importância é enorme vez que a sua prática justificada não acarreta ilícito, desde que dentro dos limites impostos pela lei.

O Estado não pode tutelar todos os conflitos de interesses que por ventura possam surgir, e por isso, dá oportunidade ao particular de se proteger dos injustos dirigidos a sua pessoa, não podendo exigir o Estado o sacrifício do Direito do agredido, que nesse momento, age como se Estado fosse, sendo considerado justo seu impulso de defesa. Para que não haja punição para essa conduta, é necessário que ela seja moderada, sem exageros, no limite da fronteira imposta pela lei, devendo cada caso ser analisado separadamente.