Eutanásia: uma discussão sobre o paternalismo estatal e o direito da disposição sobre a própria vida

Por Igor Carvalhal Frazão Corrêa | 23/07/2014 | Direito

SUMÁRIO: Introdução; 1 a questão da eutanásia, 1.1 Conceito, 1.2 A eutanásia no Código Penal brasileiro; 2 A discussão sobre a descriminalização da eutanásia, 2.1 A autodeterminação de uma pessoa portadora de uma doença degenerativa em estado avançado ou de uma patologia em condição terminal, 2.2 A possibilidade de descriminalização da conduta, 2.3 Critérios para a abordagem prática diante de um caso de eutanásia; Conclusão; Referências

 

RESUMO

A Eutanásia é uma forma de provocar a morte sem sofrimento em um paciente em estado terminal, considerado como incurável pelos médicos. No Brasil, assim como em vários países, a conduta é considerada crime. Há, no entanto, uma discussão acerca da possibilidade de descriminalização da conduta, tendo em vista a autodeterminação do indivíduo em oposição ao paternalismo estatal, que estipula como cada pessoa deve dispor de seu corpo e mesmo de sua vida. Por meio de uma revisão bibliográfica acerca da temática Eutanásia no Brasil, o presente trabalho conceitua brevemente a conduta praticada, de modo a enquadrá-la no Código Penal brasileiro, visto a não tipicidade expressa da conduta. Este trabalho visa tratar teoricamente a possibilidade e descriminalização diante de uma caso de eutanásia, isto é, deixando prevalecer o Princípio da Autonomia.

 

Palavras-chaves: Eutanásia; descriminalização; princípio da autonomia;

 

 

INTRODUÇÃO

 

 

Segundo Freud: “a morte é a indelével certeza da condição humana, embora quase sempre recalcada, constituindo intrínseca peculiaridade do Homo sapiens sapiens, o único vivente que tem a consciência da sua própria finitude” (SIQUEIRA-BATISTA; SCHRAMM, 2004, p.32). Sobre o que diz Freud, extrai-se o potencial autônomo dos seres humanos, nos quais, em virtude de somente estes saberem verdadeiramente as reais circunstâncias de sua vivência, a possibilidade de, conscientemente, decidir acerca do binômio vida/morte quando um quadro clínico torna-se irreversível – daí o termo eutanásia. Etimologicamente, o vocábulo eutanásia tem origem grega e diz respeito à boa morte.

Sem controvérsias, a morte está longe de ser um tema tratado de forma pacífica, porém, sob os seus diversos significados, atribui-se ao vocábulo a idéia do “acaso”. Ocorre que, em paciente em estado terminal, a prática da eutanásia aconteceria tal como uma antecipação dos efeitos do acaso, dando fim à vida por total autonomia do paciente segundo a tecnicidade médica. Ou seja, nos casos tecnicamente atestados pela medicina como terminais e irreversíveis, o paciente teria a possibilidade de escolher entre findar o caso ou permanecer neste. Apesar da vida se tratar de um direito indisponível, as discussões acerca do tema giram em torno do Princípio da Autonomia, titularizado pelo paciente em estado terminal, e a sacralização da vida, que não deveria sequer possuir um titular.

Baseados nessas premissas, o presente trabalho busca trazer as discussões acerca da autodeterminação do paciente e o quadro de criminalização da prática como homicídio no Brasil. Além disso, apresentar-se-á um projeto de lei (nº. 125/96) que estabelece critérios para a legalização da eutanásia, bem como um anteprojeto que altera os dispositivos do Código Penal objetivando a descriminalização da conduta.

1 A QUESTÃO DA EUTANÁSIA

 

 

1.1  Conceito

Eutanásia significa provocar a morte sem sofrimento em um paciente em estado terminal, considerado como incurável pelos médicos. O efetivo fim a vida só pode, teoricamente, ser provocado pelo médico segundo a decisão voluntária do paciente, além de que é preciso não haver qualquer outra solução razoável e aceitável pelo paciente. A prática é proibida em diversos países, inclusive no Brasil. Entretanto, os debates sobre a possibilidade de sua legalização visando à autonomia do paciente, já ultrapassam muitos anos.

Os posicionamentos sobre o tema são os mais diversos possíveis, acarretando a idéia de misericórdia e compaixão nos casos em que não há esperanças em relação à cura do paciente em estado terminal. O Princípio da Autonomia é constantemente citado, tendo em vista pressupor “que cada indivíduo tem o direito de dispor de sua vida da maneira que melhor lhe aprouver, optando pela morte no exaurir de suas forças, ou seja, quando sua própria existência se tornar subjetivamente insuportável” (SIQUEIRA-BATISTA; SCHRAMM, 2005, p.116).

Por outro lado, o Judaísmo e o Cristianismo contribuíram para o crescimento do pensamento consistente na idéia de que tirar a vida por conclusões advindas de um profissional da saúde é, em verdade, “usurpar o direito de Deus” de deliberar sobre a vida humana (SIQUEIRA-BATISTA; SCHRAMM, 2004, p.37). Este seria o chamado Princípio da Sacralização da Vida que considera a vida como um bem concedido da divindade e, portanto, digno de ser vivido, independente das condições em que se apresente (SIQUEIRA-BATISTA; SCHRAMM, 2005, p.115).

Prioritariamente, é necessário estabelecer definições acerca do tema, considerando a possibilidade de conceituar “em relação ao ato” (SIQUEIRA-BATISTA; SCHRAMM, 2004, p.34) e “em relação ao consentimento do paciente” (SIQUEIRA-BATISTA; SCHRAMM, 2004, p.34-35).  No que se refere à eutanásia em relação ao ato, há de se considerar a modalidade ativa, na qual a ação de provocar a morte no paciente se dá qualquer sofrimento; a modalidade passiva ocorre por omissão em se iniciar conduta médica imprescindível para a sobrevida do paciente naquele momento, na qual equivale à ortotanásia; e a modalidade duplo efeito caracterizada pela aceleração da morte em virtude de ações médicas que não visam efetivamente a morte, mas sim o alívio do sofrimento do paciente.

No que se refere à distinção em relação ao consentimento do paciente, é possível classificá-la de forma voluntária, involuntária e não voluntária. A primeira modalidade é caracterizada por se tratar de vontade expressa do paciente e, portanto, equivalente ao suicídio assistido. Rodrigo Siqueira-Batista e Fermin Roland Schramm (2004, p.34) consideram que “o suicídio assistido ocorre quando uma pessoa solicita o auxílio de outra para morrer, caso não seja capaz de tornar fato sua disposição”, ou seja, sendo manifestada sua vontade pela morte. É preciso considerar que nos casos de suicídio assistido, equivalente à eutanásia voluntária, o paciente possui total consciência, enquanto em outras modalidades o paciente não necessariamente encontra-se cônscio. A segunda forma de eutanásia em relação ao consentimento do paciente – involuntária – a forma é ocasionada contra a vontade do enfermo, equivalendo-se a homicídio.  A eutanásia não voluntária ocorre quando a vontade do paciente não é conhecida por outras pessoas, ou seja, ocasiona-se a morte, sem que se tome ciência da vontade do enfermo.

1.2  A eutanásia no Código Penal brasileiro

Baseado nos fatos da temática Eutanásia não ser expressamente abordada pelo Código Penal brasileiro de 1940, considera-se a possibilidade de enquadramento nos crimes de homicídio privilegiado e auxílio ao suicídio. A conduta, então, a ser criminalizada no Brasil, considerando a sua prática ilegal, diz respeito à Eutanásia ativa, na qual existe ato comissivo.

O § 1º do artigo 121 Código Penal trata do homicídio privilegiado, o qual ocorre quando o agente é levado, por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, a provocar morte em outrem. Nos casos em que o magistrado entender a prática da morte do paciente por ocasião de algum destes motivos, este poderá reduzir a pena de um sexto a um terço, tendo em vista as circunstâncias fáticas do delito, considerando a relevância dos motivos diante da sociedade.

Considera-se ainda a possibilidade de enquadramento da prática de eutanásia no crime de auxílio ao suicídio disposto no art. 122 CP - “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça”. Ocorre que sendo a vida definida pelo ordenamento jurídico em vigor como um bem intransferível, indisponível e inalienável, o consentimento do paciente considerado em estado terminal, não possui relevância, isto é, nos casos em que outra pessoa é solicitada para provocar a morte, ainda que com o consentimento, o fato não é descriminalizado, tendo em vista a preponderância do Direito à Vida em relação ao Princípio da Autonomia.

2 A DISCUSSÃO SOBRE A DESCRIMINALIZAÇÃO DA EUTANÁSIA

 

2.1 A autodeterminação de uma pessoa portadora de uma doença degenerativa em estado avançado ou de uma patologia em condição terminal

            Uma das questões mais importantes a se refletir relacionadas à discussão da eutanásia é a questão da autodeterminação que uma pessoa tem sobre dispor sobre o seu próprio corpo em situações extremas e mesmo de incompatibilidade com a vida em caso de doenças degenerativas em estado avançado ou de patologia em condição terminal. Ganharam notoriedade internacional os casos do médico norte-americano Jack Kevorkian, conhecido como “Dr. Morte”, que assistiu na morte de mais de 130 pacientes que se encontravam em condição incurável, o médico afirmava realizar um ato de misericórdia e contava com anuência de seus pacientes (BHANOO, 2011) e do espanhol Ramón Sampedro que ficou tetraplégico aos 26 anos e entrou com um pedido junto à Justiça espanhola solicitando o direito de morrer, após 5 anos de disputa judicial, a eutanásia ativa assistida lhe foi negada, Ramón – então – planejou, com o auxilio de amigos, a sua morte, que ocorreu no inicio de 1998, por ingestão de cianureto. Ramón filmou seus últimos momentos de vida que provava que ele foi responsável pela ingestão do veneno, no entanto, seus amigos lhe auxiliaram colocando o canudo, usado para ingerir o cianureto, em sua boca; a policia incriminou uma amiga do espanhol como responsável por homicídio, o que desencadeou um movimento de pessoas de todo o mundo se incriminando como responsáveis pela morte, a Justiça arquivou o processo sob a alegação de não poder levantar todas as evidências (GOLDIM, 2007).  Estes 2 casos reacenderam a polêmica acerca da eutanásia.

            Michel Foucalt já tratava em sua obra sobre a imposição social sobre o corpo, sendo que em sua obra “Vigiar e Punir” (2009, p. 132) ele afirma:

Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam. O grande livro do Homem-máquina foi escrito simultaneamente em dois registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas haviam sido escritas por descartes e que os médicos, os filósofos continuaram; o outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo.    

            Esta prescrição foulcatiana pode ser estendida além do corpo para a alma, fruto uma conjuntura histórica marcada pela influência da Igreja, pela crença de que o suicídio ou, no caso, a eutanásia se constituiria pecado gravoso, como afirmam Silveira e Furlán (2003, p.175):

Corpo e alma, portanto, são interpenetrados de história e articulados através de diferentes contextos discursivos, os elementos co-construtores de múltiplos focos de subjetivação, de forma que se torna imprescindível associá-los ao processo de edificação da própria identidade histórica do indivíduo.

            Com isso, tem-se que a capacidade da pessoa dispor de sua própria vida fica restringida pela atuação de um Estado paternalista que ainda está arraigado a uma sociedade de valores predominantemente cristãos. É sabido que a vida é um bem indisponível, porém diante deste contexto específico de doenças incuráveis e em estado avançado, não ser facultado ao convalescente consciente e em sofrimento a oportunidade de dispor legalmente sobre a sua própria condição denota os tabus existentes na sociedade e a capacidade do Estado interferir na esfera íntima de cada pessoa.   

2.2 A possibilidade de descriminalização da conduta

            Há alguns anos, o debate acerca da possibilidade de descriminalização da eutanásia tem se aquecido e se fundamenta, principalmente, no direito da pessoa de dispor sobre o próprio corpo e sobre a sua vida. Os grupos que lutam pelo direito da eutanásia afirmam que o Estado não possui competência para interferir em algo tão íntimo como a vida de uma pessoa que sofre as agruras de uma doença terminal. Em países como a Holanda, Bélgica e Suiça, a eutanásia já é legalizado. Na Áustria e Alemanha, a eutanásia passiva (atos como desligar o aparelho) não é ilegal, contanto que haja o consentimento do paciente. O Uruguai é pioneiro na América Latina, o seu Código Penal – que data dos anos 1930 – já afirmava que o “homicídio piedoso”, desde que o autor possua “antecedentes honráveis” e pratique o ato mediante “reiteradas súplicas” da vítima não seria ilegal. No Brasil já existem grupo que defendem a eutanásia, inclusive um próprio grupo oriundo da Igreja Católica, denominado  “Católicas pelo direito de decidir”, no entanto, no plano legislativo pouco se tem avançado no país, sendo que os poucos projetos que versavam sobre o tema foram arquivados (VEJA, 2009).

2.3 Critérios para a abordagem prática diante de um caso de eutanásia

CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS

 

 

BHANOO, Shindia. Jack Kervokian helped others die. The Seattle Time. Disponível em: <http://seattletimes.nwsource.com/html/health/2015228735_kevorkianobit04.html.>. Acesso em: 02 nov 2011.

FOUCALT, Michel. Vigiar e Punir. 37 ed. Vozes: Petrópolis, 2009.

GOLDIM, José. Caso Ramón Sampedro:suicídio assistido, 2007. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/sampedro.htm>. Acesso em 02 nov 2011.

SILVEIRA, Fernando; FÚRLAN, Reinaldo. Corpo e alma em Foucalt: postulados para uma metodologia da psicologia. Psicologia, São Paulo, v.14, p. 171-194, 2003. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/pusp/v14n3/a12v14n3.pdf>.  Acesso em: 02 nov 2011.

SIQUEIRA-BATISTA, Rodrigo; SCHRAMM, Fermin. Eutanásia: pelas veredas da morte e da autonomia. Ciência e Saúde Coletiva, v. 9, p.31-41, 2004.  Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232004000100004>. Acesso em: 10 out 2011.

SIQUEIRA-BATISTA, Rodrigo; SCHRAMM, Fermin. Conversações sobre a “boa morte”: o debate bioético sobre a eutanásia. Caderno de saúde pública, Rio de Janeiro, v. 21, p;111-119, jan-fev, 2005.

VEJA. Eutanásia, fev 2009. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/perguntas_respostas/eutanasia/morte-pacientes-etica-religiao-ortotanasia.shtml#8>. Acesso em: 03 nov 2011.

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