Eu

Por valdemir campos rocha | 01/06/2012 | Crônicas

EU

 

De minha casa até a escola  distava uns três quilômetros. As ruas eram tão esburacadas que nem sempre  reunia coragem para ir lá.Meus alunos constantemente ficavam no prejuízo.Sempre dei prioridade ao meu conforto e tranquilidade. Entre escolher resolver e amenizar os problemas dos outros e os meus, evidentemente os meus sempre saíram ganhando. Neste trajeto cansativo, quantas vezes me  deliciei com a idéia de que o melhor prefeito para nossa cidade seria eu.Eu era bonito,charmoso e muito inteligente. Minha convivência com os demais professores nem sempre transcorria em clima pacífico, pois  era eu quem deveria ser o Diretor daquela instituição. Certamente nunca vi páreo entre os outros professores para concorrerem comigo. Porém, por motivos politiqueiros me deixaram de fora na escolha do novo diretor. Fiquei revoltado, como uma pessoa como eu  poderia ser substituído por um João ninguém como aquele?  Injustiça pura meus  amigos. Na posse do abençoado, todos foram  convidados para um coquetel no salão nobre da escola, lá compareceram várias autoridades, inclusive o Delegado de polícia e o presidente da câmara. Logo  de inicio, pude observar que não tinham a devida capacitação para exercerem um cargo daqueles. Eu sim, estava o tempo todo preparado para  tal.Como delegado obviamente acabaria com os  bandidos  da cidade, construiria os melhores e maiores presídios e pagaria os mais altos salários aos policiais.Pois além de professor também havia me formado em direito,e já era o melhor advogado da região.A fala de apresentação do novo diretor coube ao padre da cidade,um homem  baixinho,gordo e babão,que não sabia nem se expressar corretamente,se eu fosse o padre daquela cidade, podem ter certeza,seria o melhor.O mais carismático,o mais culto,o mais respeitado.Como este assunto de religião é sempre controverso,com toda minha experiência  e sabedoria preferi ser apenas um admirador dos estudiosos da fé. Porém, sempre reafirmando que se tivesse me dedicado, hoje teria galgado a mais alta posição,  o papado. Ou mesmo um líder evangélico  reconhecido internacionalmente. A festa, regada a refrigerantes e uísque de  segunda ,transcorreu até lá pelas duas da madrugada.Festinha muito pobre; caso fosse eu o anfitrião todos voltariam muito felizes e bem alimentados para suas casas. Comigo não há pobreza, salgados, tortas e guloseimas das mais refinadas seriam servidas abundantemente, entretanto, como eu era apenas mais um dos convidados todos tiveram que se conformar com aquelas coisinhas sem graça. Quando a maioria  esperava que o encontro já  estava  chegando ao fim, nos surge todo cheio de pompa o governador do estado.Vinha acompanhado de uma equipe de assessores e outros “puxas” mais...O homem era desengonsado, se vestia mal, tinha um tique nervoso,que o levava constantemente a coçar o nariz, coisa esquisita.De longe fiquei avaliando a situação e os comportamentos. Ninguém se igualava a mim em postura, desenvoltura e e bom gosto no vestir. Certamente eu deveria ser o melhor governador que aquele estado já tivera, pena que não aceitei concorrer quando fui convidado. E além de tudo minha viagem a Moscou não poderia ser transferida naquela ocasião. As horas passaram lentamente, quando cheguei em casa já passavam das três horas da madrugada.Me deitei em meu colchão importado e dormiem  seguida...                                                         Nooutro dia, após o desjejum lembrei-me de um sonho estranho  mas profundamente transformador que tive naquela noite.Sonhei que subia uma montanha íngreme através de uma estradinha sinuosa,cheia de obstáculos, onde o precipício era amendrontador, via as pessoas caindo, escorregando montanha abaixo e pedindo socorro.Eu porém, altivo e confiante seguia minha viagem.Não ajudava a ninguém e nem prestava atenção em nada . Ao chegar ao cume do monte deparei-me com uma cena estarrecedora e inesquecível. Quatro homens crucificados gemiam de dor enquanto inúmeras pessoas, umas bem vestidas,outras maltrapilhas os enxovalhavam, zombavam e o humilhavam.  Na primeira cruz havia uma plaqueta de identificação: Bondade, no segundo outra plaqueta, Humildade, no terceiro a identificação era Justiça e no quarto, na placa já desbotada pela ação do tempo estava escrito  Perseverança. Vi com clareza, e disto não me esquecerei jamais a maneira como cada qual dos prisioneiros crucificados me olharam. O da  primeira cruz me olhou de maneira tão bondosa  que senti um calafrio e me pus a chorar com tantos sentimentos de ternura que invadiram a minha alma.Na segunda cruz,o homem com a plaqueta da humildade me lançou um olhar tão calmo e sereno que me senti o ultimo dos homens na terra,era como se todas as minhas lembranças viessem a tona,fato este que me fez repensar nas ações de arrogância que tantas vezes cometi em minha vida.Ainda nas elocubrações desta ultima visão  virei-me e vi o rosto do terceiro homem, cujo nome era Justiça. Inenarrável foi esta visão. Naquele olhar, doce olhar tão penetrante que vasculhou todo meu interior. Era como se ele me convidasse a reflexão, ao arrependimento, a sua dependência, e a uma mudança de vida. Tudo nele era paz e segurança. Quando vi  já estava prostrado a seus pés diante daquela cruz  manchada de barro e de sangue, chorando  copiosamente,e clamando por perdão.Quando passou aquele momento de intima comunhão voltei-me para o quarto homem,cujo nome era Perseverança, já me sentindo mais forte e reconfortado pude ler em seus olhos uma mensagem de animo. Era como se ele me dissesse, siga em frente, não pare, não  desanime.Você vai vencer.Ao acordar senti-me outro homem,as  pessoas me pareciam mais importantes,meus conceitos pessoais eram de respeito e consideração pelos meus semelhantes,a vida tinha recebido um novo e espetacular significado. Uma reviravolta operou-se no meu coração. Aprendi a sentir prazer em estender a mãos aos necessitados, alegria em ser útil a  comunidade. A ter tolerância para com os fracassos dos outros, ser paciente  nas tribulações e renunciar aos clamores da fortuna.Simplesmente assumi minha devida posição nesta vida. Desci, me humilhei  e vivi. Pude ver meu “eu” sendo sepultado lá no cume naquele monte e uma nova criatura ressurgindo entre  as cinzas  do orgulho,da vaidade e do desamor.

 

Pr.valdemir campos rocha

Maio/2012