Eu não confio em ninguém

Por Thiago Velde Farias | 22/10/2010 | Crônicas

Eu não confio em ninguém

- Eu não confio em ninguém. Ouve-se isso a toda hora. Parece mesmo cada vez mais difícil acreditar em alguém, ao menos é o que se pensa. Não são raros os momentos em que se nota constantemente a convicção da ausência de atribuir ao outro qualquer tipo de crédito. É mais fácil conseguir o crédito con$ignado do que o crédito interpessoal. É... O mundo parece cruel e não caberá a qualquer vivente que se preze a ideia tola de exercitar a confiança. Todos são muito sagazes, meticulosos, estratégicos. Se alguém se aproxima de você, é porque tem algum interesse, se você, em contrapartida, adota tal comportamento é você o interesseiro. E haja soslaios, e conchavos e conjecturas. Dê às costas já sabendo que o outro vai imaginar: - Pode pensar que você me engana! Oxe, quando você vinha com o milho, eu já ia com o fubá. É muita rapidez, gente! A operação milho-fubá é demorada, mas há quem o faça em centésimos de segundo. Não dá mais para estar atrás de ninguém. É preciso saber mais, entender mais. Todos se tornaram especialistas em comportamento humano: leem corpo, mãos, pés, gestos, voz, discurso e constatam sempre o mesmo produto: - Vou ficar na minha que esse cara quer me tombar. Vai me passar a rasteira. Haja gente esperta! Será que não restará mais ninguém que realmente deposite confiança no outro? Você está confiando no que lê? Já ouviram falar de mim? Será que eu não estou pretendendo algo espinhoso contra você? Fique atento, não vacile! Mas função fática à parte, creio mesmo é que a vida se tornaria insuportável sem a confiança. Quero levantar aqui a bandeira da confiança. Um brinde! E repito: não haveria vida sem ela. Que texto canalha! Acabei de dizer que ninguém mais crê em ninguém e agora me ponho a assegurar a insuportabilidade da vida sem a confiança? Alguém viu minha coerência textual? Socorro Koch! Calma que eu explico: outro dia fui ao cabeleireiro. Custo a cortar meu cabelo, mas sempre que vou é um desafio. O cara que corta meu cabelo é fascinado pelo topo material. Sempre que vou lá, ouço perguntas do tipo: - Onde está morando? Não fez ainda um concurso público federal? Continua na educação? Você não vai sair dessa furada? Além disso, os famosos imperativos: - Vá ganhar dinheiro, rapaz! Saia dessa vida!
Já viram que é um dilema minha ida ao salão; só volto lá porque ele é bom no que faz. É satisfação garantida! Sim, mas voltando à confiança, foi justamente esse cabeleireiro que me fez chegar a este texto. Enquanto estava embaixo de suas tesouras afiadas, imaginei uma cena em que ele perdia o controle da situação, via que eu não iria mudar de profissão e me tascava a tesoura no pescoço. Pensei ainda de ele estar revoltado naquele dia por qualquer motivo e resolvia entesourar o primeiro que lhe aparecesse. Refleti tanto e comecei a me situar em outros planos sociais. Pensei no motorista do ônibus que pode jogá-lo rabanceira abaixo. Pensei no piloto de avião que num arroubo de loucura pode acabar com centenas de vidas. Vi dentistas com motores mais profundos. Vi cozinheiros com temperos mais sombrios e uns médicos com certos remedinhos. Vi muito mais, era um vidente naquele dia. Daí conclui não existir vida sem confiança. A verdade é que todos dependemos dela para viver. Alardeamos a sua inexistência, mas seria impossível estar em casa e sair dela sem acreditar nas pessoas; quer seja na esfera do dizível, quer seja na esfera do imaginário ? uma micro-física da confiança, diria. Você já imaginou não acreditar no eletricista? No pedreiro? No padeiro? Na sua secretaria? Na sua empregada? Já pensou em não acreditar na internet naquele dia em que você saiu de casa só com o cartão de crédito? Quem estaria por trás da internet? Aí só o visionário Raul no dia em que a Terra parou. Caia na real! Caiamos na real! Somos tão espertos, virtuosíssimos detetives, mas não aguentaríamos um minuto sem a crença. E olhe que não entrarei aqui na teologia do ser, seria muito pano para manga e acabaria questionando o pano e a manga. Claro que com isso seria chamado de lunático, panático, mangático, mas ainda assim questionaria. Quero deixar aqui a minha exortação: humanos, confiai! Esquivemo-nos. do desagradável conteúdo da total autonomia hermética e nos lembremos da simplista sistemática do ser. Você jura que acredita em mim?

Thiago Velde Farias.