Etnocídio e Etnocentrismo nas Redes Sociais: Um Prelúdio ao Genocídio?

Por Deusdedit Paiva Vieira | 21/05/2021 | Sociedade


Resumo

O texto pretende refletir a respeito de como as comunidades virtuais, características de alguns grupos nas redes sociais, pode ser um fenômeno derivado do etnocentrismo humano amplificado pela velocidade de disseminação de ideologias na rede. Assim a tendência natural ao etnocentrismo acaba resultando em rápido desejo de etnocídio virtual dos grupos opostos entre si. Pretende-se também analisar em que medida isto poderia resultar em atitudes violentas e até genocídio dos grupos menos privilegiados. Finalmente recomenda o relativismo cultural como forma de incentivar e viver a tolerância ao outro.

 

Introdução

            O etnocentrismo nada mais é do que a hiper valorização de si e de seu grupo; é se achar culturalmente acima dos outros que adotam costumes e crenças diferentes (ROCHA,1985). Parte do apreço natural que temos por aquilo que nos cerca, advém do próprio auto amor característico do desenvolvimento do narcisismo primário na sociedade ocidental, herdeiro da educação e apreciação narcísica da criança, é desse processo que aflora o ego (FREUD, 1974). Assim é comum aos seres humanos a autopreservação de si e por extensão do seu meio cultural, no qual se reconhece como produto. Se o etnocentrismo é característico de todos os grupos humanos, não se pode dizer o mesmo do etnocídio, e muito menos do genocídio. O etnocídio é a tentativa de incorporação do outro, ao qual se supõe inferior à cultura e crenças daqueles que se supõe superior. É sempre uma forma de assimilação, como se não restasse ao dito inferior nada que não fosse se reconhecer assim. Já o genocídio é mais terrivelmente radical, pois diante de uma não adesão, propõe como solução do estranhamento a própria supressão física do outro (CLASTRES, 2004).

            Se o etnocentrismo coloca a própria cultura em um patamar mais elevado do que a herança cultural alheia, acaba resultando em uma ação de superação cultural do outro, visto ser este inferior somente porque é diferente. Assim em sua forma mais otimista; o etnocídio supõe que o outro ainda poderá ser “salvo” de sua condição original. Sendo convencido, pela obviedade de sua inferioridade, a abandonar suas crenças e adotar a cultura dita “superior”. Já no caso do genocídio temos a solução final, a qual supondo ser impossível o convencimento desse outro inferior, propõe-se o extermínio. Não há por que não entender que ambos derivam da ideia etnocêntrica. Guardando a devida proporção ambos são potenciais precursores de uma situação trágica (CLASTRES, 2004). 

 

Desenvolvimento

            Originalmente proposto e evidenciado no fenômeno da colonização ou no encontro, por vezes dramático, de dois povos diferentes e distantes culturalmente; não parece errado evidenciar que o etnocentrismo também ocorre no seio de um mesmo estado ou país. Parece claro que fenômenos de exclusão ou preconceito podem se expressar também pela dificuldade em aceitar a legitimidade das expressões de um outro com crença diferente da originalmente adotada.

 

Nossas próprias atitudes frente a outros grupos sociais com os quais convivemos nas grandes cidades são, muitas vezes, repletas de resquícios de atitudes etnocêntricas. Rotulamos e aplicamos estereótipos através dos quais nos guiamos para o confronto cotidiano com a diferença. As idéias etnocêntricas que temos sobre as “mulheres”, os “negros”, os “empregados”, os “paraíbas de obra”, os “colunáveis”, os “doidões”, os “surfistas”, as “dondocas”, os “velhos”, os “caretas”, os “vagabundos”, os gays e todos os demais “outros” com os quais temos familiaridade, são uma espécie de “conhecimento” um “saber”, baseado em formulações ideológicas, que no fundo transforma a diferença pura e simples num juízo de valor perigosamente etnocêntrico. (ROCHA, 1985, p.9)

 

            Nas redes sociais o fenômeno de formar ilhas de comportamento e crenças parece estar cada vez mais sedimentado. Essa propensão das pessoas em se associar mais firmemente àqueles de mesmo costume e padrões acaba por favorecer a uma formação binária do pensamento. Não há dúvida que o maniqueísmo exagerado de nossa era é parte de um todo que tem em sua base a compreensão da superioridade da opinião de cada um e seu grupo. Dessa forma vão se constituindo ilhas de pensamento cada vez menos tolerantes e compreensivas com uma outra postura. O estranhamento não é mais de povos distantes e eventualmente em contato, o estranhamento pode ocorrer entre vizinhos, colegas de trabalho, e não raro até dentro da mesma família (MACHADO, 2019).

 

Ainda que não se possa atribuir responsabilidade exclusiva às redes sociais – ou ao Facebook em particular –, sua forma de funcionamento catalisa e aprofunda conflitos já existentes. Seguindo a linha sociológica da moldagem social da tecnologia, atribuir às TICs a criação dos conflitos e oposições constituiria determinismo tecnológico só sendo possível reconhecer que – segundo os dados empíricos – elas apenas os visibilizam, amplificam e radicalizam − entre outras razões, porque as redes sociais propiciaram a revelação da diferença, de ideologias, de opiniões e pensamentos antes não expressos publicamente e que, agora reconhecidos, geram substratos para conflitos. MACHADO, 2019. p. 959

 

Assim separados em ideologias aparentemente opostas, e alimentados pelo etnocentrismo de cada grupo, os diferentes passam a nutrir desprezo e desejo de exclusão aos outros. Essa já é objetivamente possível na rede social, e as vezes é até incentivada pela mídia comum, em programas de “reality” onde a convivência é sempre um jogo de eliminação. As pessoas se acostumam a se eliminar virtualmente, onde somente o “melhor” permanece presente. Essa eliminação pode estar esperando apenas uma oportunidade de se expressar na realidade, onde o abstrato pode facilmente passar ao cotidiano.

Já vemos isto na prática quando é combatida a cultura herdada da África suprimindo as religiões de suas matrizes, eliminando jovens negros da periferia das grandes cidades sob a falsa alegação de contenção da criminalidade. As terras indígenas, a serem demarcadas como prega à constituição, são invadidas sem nenhuma contenção pelo aparato repressivo do estado. Aos índios é oferecida a opção de se adequar a sociedade capitalista através da catequese evangélica. Quando a opção é do genocídio deixam avançar em suas terras o perigo do vírus e o extermínio pelos grilheiros. O etnocídio e o genocídio já fazem parte de nossa sociedade.

Um exemplo está na criação de grupos de direita cada vez mais alheios da legitimidade do outro, fortemente alicerçados na ideologia etnocentrista do século XIX:

 

Ao argumentar que os seres humanos enxergam o mundo através da sua própria cultura, tendo, portanto, a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto, adequado e natural, Laraia (2002) reconhece que o etnocentrismo em seus casos mais extremos seria um dos principais elementos responsáveis por numerosos conflitos sociais, na medida em que, ao considerar a sua cosmologia como a mais adequada, pode vir a fomentar não apenas o ódio contra aqueles grupos que possuem práticas, comportamentos e condutas diferentes dos seus julgadores, como também pode fomentar o extermínio destes através daquilo que Foucault (2010) chamou de racismo de Estado. ROSA, 2019. p.193

 

            A eminência dessas personalidades; ideólogos, bispos, apresentadores de auditório, youtubers etc.; evidenciam o desprezo pelo outro e incentivam o desenvolvimento de teorias conspiratórias, revelando a ascensão do sentimento de estranhamento na possível incorporação de uma minoria oprimida. Para esses, a diferença não é a expressão de um modo de ser alternativo, e sim uma forma de supressão da maioria originalmente constituída. Como se o oprimido, através de sua luta pela valorização da verdade, escondesse um plano misterioso de superação e destruição daquele que o oprime. O etnocentrismo se manifesta em ressentimento e ódio, os quais podem vir a justificar práticas etnocidas ou mesmo genocidas (ROSA,2019).  

 

Conclusão

            O etnocídio passa a ser vendido como a única possibilidade pacífica de convivência, e mesmo assim fica limitado na medida que as pessoas se excluem nas redes sociais mutuamente, e dessa forma têm menos acesso um ao outro. Potencializado pelo isolamento físico, necessário ao combate da pandemia, as preocupações com o médio prazo se incrementam e podem indicar uma possível solução genocida. Lembrando que por várias vezes esta foi mencionada por líderes mais radicais.

Mas, se o Ocidente é etnocida assim como o céu é luminoso, então esse fatalismo torna inútil e mesmo absurda a denúncia dos crimes e o apelo à proteção das vítimas. Não seria, ao contrário, porque a civilização ocidental é etnocida em primeiro lugar no interior dela mesma que ela pode sê-lo a seguir no exterior, isto é, contra as outras formações culturais? CLASTRES, 2004, p.59

 

            A alternativa para a desgraça do etnocídio, ou a aterrorizante ameaça genocida, é fomentar, através das redes sociais ou qualquer outra forma de contato, o relativismo cultural, o qual com sua tendência à empatia, seria o único antídoto possível à intolerância.

 

Bibliografia

CLASTRES, P. Arqueologia da violência pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify. 2004. 325pp.

FREUD, S. [1914]. Sobre o narcisismo: uma introdução. In:____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. 1. ed. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIV, p. 85-119. 

 ROCHA, E. P. G. O que é etnocentrismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985

ROSA, P. O.; REZENDE, R. A.; MARTINS, V. M. V. As consequências do etnocentrismo de Olavo de Carvalho na produção discursiva das novíssimas direitas conservadoras brasileiras. Revista NEP, Núcleo de Estudos Paranaenses, Curitiba, v.4, n.2, dez. 2018. p.164-203.

FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2010.

LARAIA, R. B. Cultura: Um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

MACHADO, J; MISKOLCI, R. Das Jornadas de Junho à Cruzada Moral: O Papel das Redes Sociais na Polarização Política Brasileira. Sociol. Antropol., Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 945-970,  Dec. 2019 .  

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