Estudos Sobre Os Sistemas Processuais Penais

Por Agnaldo Simões Moreira Filho | 09/11/2007 | Direito

Agnaldo Simões MOREIRA FILHO. [1]

O presente artigo visa dar uma noção ao leitor sobre os sistemas processuais penais e sua problemática frente às discussões entre os doutrinadores.

O tema é relevante pois serve de base ao estudo crítico do processo penal, haja vista que à época em que o Código de Processo Penal brasileiro foi editado vigorava ordem diversa da vigente à época da promulgação da Constituição Federal, razão que aumenta a importância do entendimento dos sistemas processuais penais.

1. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS:

O homem é um ser incompleto, por isso buscou o convívio com seus pares, a fim de suprir suas necessidades, para se proteger, caçar melhor, reproduzir-se, ampliar sua produção etc.

Dessa coexistência advêm conflitos de interesse entre os membros da comunidade, razão pela qual tiveram que ser criados mecanismos de resolução desses conflitos.

Nas sociedades mais rudimentareso mecanismo vigente era a autotutela. Nesse modelo, o indivíduo que se sentisse ofendido buscava, por conta própria a satisfação de seu direito e a punição do ofensor.

Essa forma de resolução das contendas não se mostrava eficaz, porque com freqüência o ofendido não tinha condições de impor seu direito perante o ofensor por ser menos poderoso que esse, ou retribuía-lhe de forma desproporcional, por ser mais poderoso que o ofensor.

Assim, a partir de um determinado grau de organização e complexidade nas relações humanas, foi-se verificando que já não poderia vigorar o primitivo modelo da autotutela.

Surgia, assim, a necessidade da criação de um poder central que chamasse para si a atribuição para resolver os conflitos de interesses entre os indivíduos.

Surge assim, a Jurisdição que nada mais é que o poder-dever que tem o Estado de aplicar a lei aos conflitos surgidos entre os súditos, aplicando-se punições aos transgressores.

Na seara penal, esse poder se revela pelo jus puniendi que nada mais é que o poder-dever do Estado de punir o infrator da lei penal.

Mas para que se exerça o jus puniendi, é necessário um instrumento de aplicação da lei penal ao caso concreto. Esse instrumento é o processo penal. Só por meio do devido processo é que o Estado poderá propor sanção ao indivíduo.A essa do processo penal de ser o instrumento hábil à aplicação da lei penal, chama-se de instrumentalidade do processo penal.

Acerca da instrumentalidade do processo penal, Lopes JR. diz que:

Desde logo, não devem existir pudores em afirmar que o processo é um instrumento e que essa é a razão básica de sua existência. Ademais, o direito penal careceria por completo de eficácia sem a pena, e a pena sem processo é inconcebível, um verdadeiro retrocesso. [2]

Ocorre que existem diferentes maneiras de aplicação desse instrumento no direito. Essas características variam conforme o momento político e interesse do Estado.

Assim, surgem as classificações dos sistemas processuais penais que sofrem variações diretamente proporcionais ao grau de liberdade que o Estado promove aos indivíduos. Vale dizer, num Estado totalitário há maior grau de repressão e supressão de garantias individuais, e num estado democrático há menor grau de supressão de direitos e, via de conseqüência, maior guarda das garantias individuais.

Pra que se possa entender o assunto a ser exposto nesse trabalho, se faz mister que o estudo passe antes pelos sistemas processuais penais e o contexto em que se inserem.

Para Rangel, sistema processual penal é o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas para a aplicação do direito penal a cada caso concreto. [3]

Em princípio, são conhecidas três espécies de sistemas processuais penais: Os inquisitórios, os garantistas, e aqueles que mesclam características desses dois sistemas, que são chamados de sistemas mistos ou acusatórios formais.

1.1 - SISTEMA INQUISITÓRIO:

Os sistemas inquisitórios têm seu surgimento em Roma e na Europa medieval tiveram seu apogeu, foram adotados pelos regimes monárquicos e encontraram guarida no direito canônico. Tais modelos foram adotados por quase todas as nações européias durante os séculos XVI, XVII, XVIII.

Esses sistemas encontram apoio em Estados Totalitários, onde ocorrem supressões da liberdade e garantias individuais dos cidadãos.

Verifica-se também, demasiada violência Estatal em face dos indivíduos, sendo essa a grande característica que se pode apontar na aplicação do direito penal, além de uma evidente inclinação do modelo em buscar, preferencialmente, a condenação como fim satisfatório do processo criminal.

Dentre as características desses modelos, pode-se dizer que a principal é o acúmulo, pelo mesmo órgão, das funções de acusar, defender e julgar.

Outra característica, na verdade uma conseqüência da primeira, é que a colheita de provas é feita pelo próprio juiz.

Verifica-se ainda que o réu, aqui, é tratado como objeto das investigações e não como sujeito de direitos. Sua culpa é presumida e, no mais das vezes, responde ao processo recluso.

O processo é sigiloso, sendo que em algumas oportunidades, são negadas as informações até mesmo ao acusado.

Como o próprio órgão julgador é o responsável também pelas funções de acusação e defesa, compromete-se a imparcialidade que se espera de todo julgamento. Entende-se que ao realizar a acusação, o julgador já está, de certa forma, apresentando um juízo de valor quanto à questão.

Rangel enumera as principais características dos sistemas inquisitórios:

a)as três funções (acusar, defender e julgar) concentram-se nas mãos de umas só pessoa, iniciando o juiz, ex officio, a acusação, quebrando, assim, sua imparcialidade;

b)o processo é regido pelo sigilo, de forma secreta, longe dos olhos do povo;

c)não há contraditório nem ampla defesa, pois o acusado é mero objeto do processo e não sujeito de direitos, não se lhe conferindo nenhuma garantia;

d)o sistema de provas é o da prova tarifada ou prova legal e, consequentemente, a confissão é a rainha das provas.[4]

Pode-se perceber, pelas suas características, que esses sistemas estão em desacordo com os princípios constitucionais de um Estado Democrático de Direito, que primam pela proteção aos direitos e garantias individuais, resguardando a liberdade do cidadão como um dos bens jurídicos de maior valor e merecedor de especial proteção.

1.2 - SISTEMA ACUSATÓRIO:

Os sistemas acusatórios surgem na Europa, a partir do século XVIII, com os ideais de liberdade do iluminismo.

São esses sistemas, uma característica do modelo garantista, em que o Estado põe-se na função de garantidor dos direitos fundamentais individuais e da coletividade. No caso do processo penal, o Estado deve atuar como garantidor dos direitos e garantias individuais do acusado.

Devem se fazer presentes a defesa dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, base do Estado Democrático de Direito.

São inúmeras as características elencadas, pelos catedráticos ao sistema acusatório, garantista dos direitos fundamentais individuais, do ser humano. Mas não há dúvida que a principal dessas características, e que nunca é esquecida pelos autores, é a da separação entre as funções de acusar, defender e julgar, buscando-se a, ainda que utópica, total isenção do julgador tanto do interesse de condenar, quanto de absolver.

A separação de juiz e acusação é a mais importante de todos os elementos constitutivos do modelo teórico acusatório, como pressuposto estrutural e lógico de todos os demais. (...) A garantia da separação, assim entendida, representa por uma parte, uma condição essencial da imparcialidade do juiz em respeito as partes da causa.[5]

Ainda, seguindo a lição de Rangel (2005, p. 53) as principais características desse sistema são as seguintes:

a)há a separação entre as funções de acusar, julgar e defender, com três personagens distintos:autor, juiz e réu;

b)o processo é regido pelo princípio da publicidade dos atos processuais, admitindo-se, como exceção, o sigilo na prática de determinados atos

c)os princípios do contraditório e da ampla defesa informam todo o processo.O réu é sujeito de direitos, gozando de todas as garantias constitucionais que lhe são outorgadas;

d)o sistema de provas adotado é o do livre convencimento, ou seja, a sentença deve ser motivada com base nas provas carreadas para os autos.O juiz está livre na sua apreciação, porém não pode se afastar do que consta no processo;

e)imparcialidade do órgão julgador, pois o juiz está distante do conflito de interesses instaurado entre as partes, mantendo seu equilíbrio, porém dirigindo o processo adotando as providencias necessárias à instrução do feito, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias. [6]

Na verdade, o que se observa nesse sistema é a limitação do poder estatal de intervenção na vida do indivíduo, que no caso do direito penal se revela pela forma de intervenção do estado mais gravosa, retirando-lhe a liberdade.

1.3 – O MODELO BRASILEIRO:

A Constituição brasileira de 1988,claramente fez opção pelo sistema garantista de processo penal, prestigiando a presunção de inocência, devido processo legal, publicidade dos atos processuais, ampla defesa, contraditório e diversos outros institutos que remetem a tal sistema.

Ocorre que alcançar um sistema acusatório em sua plenitude é tarefa árdua para não dizer impossível, pois os princípios garantistas são reflexos de uma sociedade com alto grau de liberdade e respeito à dignidade da pessoa humana, valores que coadunam com o Estado Democrático de Direito.

Sobre essa problemática, discorre Ferrajoli:

Ainda quando sua perfeita realização corresponda a uma utopia liberal, o modelo aqui delineado, uma vez traçados com precisão seus limites e requisitos, pode ser acolhido como parâmetro e como fundamento de racionalidade de qualquer sistema penal garantista. [7]

Nesse sentido, vale dizer que, ainda que se tenha avançado muito norteando-se pela democratização do processo penal, não se pode falar, ainda, que o Brasil adota o sistema acusatório em sua plenitude, até mesmo porque, o modelo garantista é um referencial, mas que dificilmente chegará a ser alcançado sem resquícios autoritários.

Os resquícios autoritários encontrados no modelo brasileiro podem ser explicados pelos valores predominantes à época da edição do Código de Processo Penal, marcado pelo autoritarismo do Estado Novo, inspirado pelo código da Itália fascista de Mussolini.

Sem embargo de a Constituição Federal ter feito opção pelo sistema acusatório, continuam a ser observados dispositivos do CPP que remontam ao modelo inquisitório.Dessa forma, não se pode falar que aqui é utilizado um modelo de processo penal acusatório puro.

Acerca desse tema discorre o professor Geraldo Prado:

Se aceitarmos que a norma constitucional que assegura ao Ministério Público a privatividade do exercício da ação penal pública, na forma da lei, a que garante a todos os acusados o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, além de lhes deferir, até o trânsito em julgado da sentença codenatória, a presunção de inocência, e a que, aderindo a tudo, assegura o julgamento por juiz competente e imparcial, pois que se excluem as jurisdições de exceção, com a plenitude do que isso significa, são elementares do princípio do acusatório, chegaremos à conclusão de que, embora não o diga expressamente, a Constituição da República adotou-o.Verificando que a Carta Constitucional prevê, também, a oralidade do processo, pelo menos como regra para as infrações de menor potencial ofensivo, e a publicidade, concluiremos que filiou-se, sem dizer, ao sistema acusatório.Porém, se notarmos o concreto estatuto jurídico dos sujeitos processuais e a dinâmica que, pelas relações jurídicas ordenadas e sucessivas, entrelaçam a todos, de acordo com as posições predominantes nos tribunais (principalmente, mas não exclusivamente no Supremo Tribunal Federal), não nos restará alternativa salvo admitir, lamentavelmente, que prevalece, o Brasil, a teoria da aparência acusatória, porque muitos dos princípios opostos ao acusatório são implementados todo dia. Tem razão o mestre Frederico Marques ao assinalar que a Constituição preconiza a adoção e efetivação do sistema acusatório. Também tem razão Hélio Tornaghi, ao acentuar que há formas inquisitórias vivendo de contrabando no processo penal brasileiro, o que melhor implica em considerá-lo, na prática, misto. O princípio e o sistema acusatório são, por isso, pelo menos por enquanto, meras promessas, que um novo Código de Processo Penal e um novo fundo cultural, consentâneo com os princípios democráticos, devem tornar realidade. [8]

Tese mais radical defende o professor Jacinto Nelson Miranda Coutinho que diz que:

o sistema, assim, é tomado como acusatório somente enquanto discurso porque não há, por definição, um sistema com tal natureza, de modo que o dizer misto, aqui, é o reconhecer como um sistema inquisitório que foi recheado com elementos da estrutura do sistema acusatório(por ex: exigência de processo devido, de contraditório, de parte, etc.), o que lhe não retira o cariz inquisitório. [9]

Sobre a dissonância de institutos do CPC com preceitos Constitucionais, o mesmo autor diz que:

A inquisitoriedade do sistema processual penal é incompatível com a estrutura da constitucional. O Código de Processo Penal, como parece óbvio, não foi recepcionado, em grande parte, pela Constituição da República e os juízes (no controle difuso) e, por todos, o STF, já deviam ter dado um passo adiante na questão. [10]

Em verdade as teses de que é adotado sistema misto, no Brasil, são mais autorizadas, porém é de suma importância o conhecimento das posições extremas (que demonstram a inconformidade dos juristas) como a trazida acima, para demonstrar que não é aceita a tese de que o processo penal brasileiro e regido pelo sistema acusatório puro.

Entendemos ser mais razoável a primeira corrente, porém, está demonstrada a corrente divergente para que o leitor entenda a discussão e se filie ao lado que mais lhe parecer razoável.

[1] Graduando em direito pelas Faculdades Jorge Amado, Salvador-Bahia.

[2] LOPES Jr, Auri. Sistemas de investigação preliminar. p.11.

[3] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Ed.Lumen Júris, Rio de janeiro, 2006. p. 49.

[4] RANGEL,Paulo. Direito Processual Penal. 10ª Edição, Rio de janeiro, Lumen Júris, 2005. p. 50.

[5]FERRAJOLLI, Luigi. Derecho y Razón, 3 edição, Madrid, Trotta, 1998, p. 567 ,apud RANGEL, Paulo. Garantismo Penal e o Aditameno a Denúncia, disponóvel em http://www.juspodivm.com.br/i/a/{385993ED-8FEA-4256-9EA3-25B1B5F394C3}_039.pdf

[6]RANGEL,Paulo. Direito Processual Penal. 10ª Edição, Rio de janeiro, Lumen Júris, 2005. p. 53.

[7] FERRAJOLLI, Luigi. Direito e Razão:Teoria do Garantismo Penal. 2ª edição. Revista dos tribunais. São Paulo. 2002. p. 35;

[8] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003;

[9] COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda. Fundamentos à Inconstitucionalidade da Delação Premiada. boletim ibccrim ano 13 nº 159 fev/2006. p. 02;

[10] COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda. Fundamentos à Inconstitucionalidade da Delação Premiada. boletim ibccrim ano 13 nº 159 fev/2006. p. 02;