Estatuetas funerárias: a vida após a morte marcada por prazeres osíricos (c.1560 a 1070 a.C)

Por Guilherme Roberto Domingues | 06/04/2016 | História

Estatuetas funerárias: a vida após a morte marcada por prazeres osíricos

(c.1560 a 1070 a.C)

Guilherme Roberto Domingues[1]

Encontradas do Império Médio até o Período Ptolomaico, as estatuetas funerárias egípcias chamadas pelos seus proprietários originais de shabtis, chauabtis ou, a partir da XXI dinastia, uchebtis, podem ser consideradas como um dos artefatos mais comuns dentre os deixados pelos egípcios antigos, sobretudo no contexto funerário. No entanto, este artigo tem por objetivo em fazer um recorte historiográfico da evolução progressiva que essas miniaturas sofreram no Império Novo (c.1560 a 1070 a.C), assim como já foi remetido no título: a crença a vida após a morte, as características padrão das estatuetas desse período, e as representações de ferramentas agrícolas.

Palavras-chave: Estatuetas funerárias. Egípcios. Crença. Império Novo. 

Abstract:

Found the Middle Kingdom until the Ptolemaic period, Egyptian funerary statuettes called by their original owners shabtis, chauabtis or from the XXI dynasty, uchebtis, can be considered as one of the most common artifacts from the left by the ancient Egyptians, especially in funerary context. However, this article aims to make a historiographical cut the progressive evolution that these thumbnails suffered in the New Kingdom (1070 BC to c.1560), as has already been submitted in the title: the belief in the afterlife, features standard figurines that period, and the representations of agricultural tools.

Key – words: Statuettes funeral. Egyptians. Belief. New Kingdom.

Inicialmente mumiformes, com inscrições de “Fórmulas de Oferendas”, as estatuetas funerárias egípcias tinha como fator principal em sua produção desde o Império Médio, a atribuição de funções operárias para a vida após a morte dos grandes faraós, além de representarem em sua confecção, meio de informações sobre a prosopografia, iconografia funerária, assim como as condições sociais e conceitos da pós-vida deste povo.

Tendo como início em suas características estruturais (c. de 2040 a 1780 a.C) a utilização da pedra como matéria prima, as miniaturas fúnebres, dentro do contexto religioso da cultura egípcia, era incumbidas de tarefas agrícolas pelos seus proprietários, essencialmente relacionadas com os trabalhos necessários para a sua alimentação e a corvéia devida aos deuses, conservando magicamente a integridade corporal do morto. Com a cabeça e, às vezes, as mãos aparentes, portando ou não insígnias, estas estatuetas encontram-se em pouca quantidade, sendo normalmente uma estatueta por morto, o que mudará a partir do Novo Império (c. de 1560 a 1780).

Em meados da XVIII dinastia as características de estilo e forma definem-se, padronizam-se e impõem-se. Há um nítido florescimento da produção de estatuetas funerárias nesse período, acompanhando afinal o generalizado clima propício para a fecunda execução de obras-primas. Uma das características desse contexto histórico é a diversidade dos materiais utilizados: pedra, madeira, bronze, argila e principalmente a faiança.

Os principais centros de produção das estatuetas funerárias estavam ligados aos grandes templos ou ao palácio real, mas não foram comprovadas a existência de oficinas privadas para suas confecções.

A faiança, geralmente de cor azul, provocou e provoca confusões referentes à sua nomenclatura desde a sua descoberta. O nome faiança provém do esmalte fino de estanho da louça produzida na cidade de Faenza no Norte da Itália, a partir da Baixa Idade Média. Este nome era usado para indicar tudo o que fosse louça com brilho gerado por um cozimento em baixa temperatura. Assim, foi à cor brilhante da cerâmica italiana que veio à mente dos descobridores no momento em que viram a faiança egípcia.[2]

Estatueta de Haremakhbit, Faiança, Egito Antigo, XXI Dinastia; 12,5 cm (Museu Nacional.

A mais antiga estatueta funerária de faiança azul até hoje conhecida foi encontrada em 1897, em Bercha, a necrópole da antiga Khmunu (Hermapólis). A descoberta coube a Georges Daressy, quando escavava um túmulo familiar preparado por um Kai, uma personagem obscura da XII dinastia, cujo nome não consta na figura que é anepígrafa. Outra das mais antigas estatuetas foi feita para o escriba Sihap, achada em Licht e hoje se encontra no Metropolitano Museu de Arte de Nova Iorque. (ARAÚJO, 2003, p.208).

Ainda no período da XVIII dinastia, durante o reinado de Thutmés IV e Amenhotep III, as estatuetas começam a aparecer portando instrumentos agrícolas. Modelos de instrumentos em faiança foram encontrados pela primeira vez na tumba de Thutmés IV sendo que, com exceção do molde para tijolos e da tina, que são ferramentas de construção, todos os outros são invariavelmente instrumentos agrícolas, correspondendo assim ao trabalho a ser executado pela estatueta no lugar de seu mestre.

As ferramentas mais frequentemente representadas são a picareta e a enxada, a primeira servindo para abrir a terra e a segunda para revirar a camada superficial de húmus do solo. Estes dois instrumentos eram indispensáveis no Egito Antigo para amolecer e perfurar o solo endurecido pelo ar seco e pelo calor do Sol.

A picareta usada para perfurar a terra também era utilizada para a confecção de tijolos[3]; o que mostra uma relação entre este instrumento e o molde, pois em cenas funerárias observar-se o uso de ambos os instrumentos conjuntamente.

As representações das imagens tornaram-se agora, claramente, os servidores do morto, destinados a trabalhar nos férteis campos do Além depois de o seu proprietário ter passado exitosamente pelo decisivo julgamento no tribunal osírico-maético. Na época inicial do Império Novo cada defunto possuía, em geral, apenas uma estatueta mumiforme, por vezes duas, mas elas vão gradualmente aumentando de número para cada proprietário. O exemplo, de resto, vinha de cima: no inviolado túmulo de Tutankamon foram encontradas mais de quatrocentas estatuetas funerárias. Diferentes tipos de chauabtis foram produzidos para o jovem faraó, uma seleção de sete diferentes modalidades distinguíveis pela cobertura de cabeça: o toucado listado nemsit, a coroa branca do Alto Egito (e da realeza em geral) e a peruca dos vivos, de acordo com a corte estilístico da época.[4] Portanto, é neste período da história egípcia que a “fórmula de oferendas” dá lugar definitivamente ao Capítulo 6 do Livro dos Mortos, relacionando de forma mais específica as estatuetas ao trabalho.

O Livro dos Mortos ou Livro para Sair à Luz do Dia[5] era constituído por um rolo de papiro (podendo em certos casos ser de couro) que, a partir do Império Novo, passou a ser deixado nos túmulos junto do defunto, quer em caixas próprias contendo uma imagem de Osíris, quer mesmo dentro do sarcófago. No Livro há textos divididos em rubricas em que os redatores tentaram organizar as idéias funerárias utilizadas nos livros funerários anteriores. Um dos conceitos que aparece com mais ênfase neste conjunto de textos é o direito do morto de ir e vir livremente, circular sem entraves, entrar e sair da sua tumba, sendo que, após ter êxito na pesagem do coração diante do tribunal e ter declarado sua inocência na “confissão negativa”, o morto pode viver no Ocidente junto a Osíris, o soberano do Além, sendo inclusive especificado, no Capítulo 6, que a vida nos campos seria como a vida terrena, onde se pode comer, beber e fazer uso das capacidades sexuais.

É a fórmula do Capítulo 6 do Livro dos Mortos, “para fazer um shabti trabalhar no Além”, que será inscrita nas estatuetas, contudo, ainda existindo os textos simples ou preliminares apenas com nome e título do morto e em alguns casos a filiação. Assim, a partir do final da XVIII dinastia e durante todo o período Ramessida, da mesma maneira que há uma maior variedade das formas e materiais dos shabtis, como já foi dito anteriormente, há uma diversidade de textos dos shabtis, os quais apresentam diversas versões do Capítulo 6, havendo a introdução do termo “como um homem em sua tarefa”.

Fica nítido que o objetivo na confecção dessas estatuetas funerárias, se dava como sinônimo de prestígio, para que na vida após a morte não faltasse nada dos prazeres osíricos. Mas o que levava os egípcios acreditarem na vida após a morte? O número de estatuetas em cada túmulo tinha relação com a vida que o defunto desfrutara em terra? Qual a influência da religiosidade egípcia nesse contexto histórico?

Essas questões instigam outras, mas especificamente sobre o viés religioso, Manuel Araújo, em sua obra historiográfica intitulada “Estatuetas Funerárias Egípcias da XXI Dinastia”, diz que esses egípcios que se beneficiavam de um túmulo bem construído, poderiam desfrutar de comidas fartas e sexo (ARAÚJO, 2003, p. 279). No entanto, pelo fato da restrição a historicização religiosa digna de passagem apenas no Capítulo 6 do Livro dos Mortos, a contextualização religiosa funerária egípcia deixou de ser abordada de uma forma ampla para entender as crenças da vida após a morte.

Fazendo uma analise crítica a iconografia das estatuetas e das suas inscrições mostra, então, que três noções básicas se encontram envolvidas na interpretação dos significados e funções destas estatuetas:

1- Necessidade de alimento no Além por parte do proprietário dos chauabtis, implicando num trabalho para o morto.

2- A imposição para que a comida seja produzida pelo próprio morto, isto é, a necessidade de um trabalho executado pelo defunto gerando a escolha de um substituto que trabalhará em seu lugar.

3- A fuga do trabalho por meio de um substituto, que incorpora ao mesmo tempo o proprietário e um servo, agindo como consumidor e produtor.

A representação da cultura material:

Todo artefato em sua produção é representado dento de um contexto cultural, dessa forma, não se torna diferente na confecção das miniaturas fúnebres como suporte material, pois é preciso analisar seus aspectos como produto e vetor das relações sociais. Mas afinal, o que é cultura material? O Professor Emérito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Ulpiano Bezerra de Meneses, diz que:

            Por cultura material poderíamos entender aquele segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem. Por apropriação social convém pressupor que o homem intervém, modela, dá forma a elementos do meio físico, segundo propósitos e normas culturais. Essa ação, portanto, não é aleatória, casual, individual, mas se alinha conforme padrões, entre os quais se incluem os objetivos e projetos. [6]

Vale ressaltar, que as estatuetas egípcias foram produzidas na esfera cultural da História Antiga em que o mito era sinônimo de verdade, aonde a desigualdade de classes já vinha sendo predominada, até mesmo na relação de senhor e servo. A variação dos números de miniaturas encontradas nos sarcófagos pelos escavadores é um dos principais meios para analisar essa soberania de um senhor em vida que tinha como intenção em transpor seus prestígios após a morte.

Dessa forma, podemos observar que as estatuetas funerárias estão fortemente ligadas com a religiosidade do Egito Antigo. Toda a confecção/representação é feita a partir da crença cultural que repercutia na antiguidade. Cada traço, escrita, e porte de instrumentalização agrícola na evolução desse artefato, se encontram toda a simbologia de plenitude que o deus egípcio pretendia usufruir na passagem da vida terrena.



Referências bibliográficas:

ARAÚJO, Luís Manuel de .Estatuetas Funerárias Egípcias da XXI Dinastia, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2003.

BRANCAGLION Jr., Antonio. O banquete funerário no Egito Antigo – Tebas e Saqqara: tumbas privadas do Novo Império (1570-1293 a.C.). Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.

CARDOSO, Ciro F. S.; OLIVEIRA, Haydée (orgs.). Tempo e espaço no Antigo Egito. Niterói, RJ: PPGH História, 2011.

CERAM, C. W. Deuses, Túmulos e Sábios. Tr. João Távora, 5.ed, São Paulo, 1956.

DAVID, Rosalie. Religião e magia no Antigo Egito. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

GADALLA, Moustafa - Cosmologia Egípcia: O Universo Animado. São Paulo: Editora Madras. 2003.

GAMA, Cintia. Os servidores funerários da coleção egípcia do Museu Nacional: catálogo e interpretação. Dissertação (Mestrado em Arqueologia) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

GRIMAL, P. História do Egito Antigo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Trad. Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

MENESES, U. T. B. A cultura material no estudo das sociedades antigas. Revista de História, n. 115, pp.103-117, 1983.



[1] Discente do curso de História da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID).

* e-mail: guilherme96@gmail.com

[2] Para informações sobre a faiança, o principal material utilizado na confecção das estatuetas funerárias do Império Novo, ver também - “Os servidores funerários da coleção egípcia do Museu Nacional: catálogo e interpretação”, GAMA (2008, p. 85-87).

[3]SPEELERS, 1923, p.38.

[4]Idem.

[5] O títuloLivro dos Mortos foi dado por Lepsius, em 1842, com a publicação do papiro de Turim, mesmo momento em que este egiptólogo cria a numeração dos capítulos desta obra. No entanto, o nome egípcio deste conjunto de textos é Livro para Sair à Luz do Dia.

[6] Para mais informações sobre a discussão de cultural material ler o artigo “A cultura material no estudo das sociedades antigas” (MENESES, U.T.B. Revista de História, pp. 103-117, 1983). No qual o texto nos fornece diversos exemplos, não com a finalidade de expor o tema em questão pela sua totalidade, mas indica o potencial da cultura material e sua capacidade de delinear o contexto histórico a qual pertenceu, indo além dos domínios da cronologia e catalogação de dados.

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