Estado de Sítio - capítulo 1

Por Carlos Lopes da Silva Antonio | 13/07/2016 | Política

Pessoas são basicamente iguais. Amam – ou acham que -, odeiam e na maior parte do tempo mentem para si e para os outros. Apesar da necessidade de estarem juntas, até mesmo para procriar, sentem um profundo desprezo pelo outro. Tanto desprezam quem lhes parece ser mais capaz, como renegam quem não lhes obedece. Tanto te amo, como te odeio e nem sei dizer o por quê.

Esses são tempos duros, ainda sem espaço para a religião e a política, artes divinatórias a serem criadas para aplacar a ira destrutiva da humanidade.

O palco do excesso, o monumento ao superficial, ainda não foi erigido. Um dia crer-se-ão fundamentais, como se houvessem existido desde a aurora. Mas enquanto esse dia não chega, a regra é clara: tenho fome, como; tenho sede, bebo. Nada mais é importante. Alimentar-se, abrigar-se e fornicar. Suprir os instintos básicos. Os detalhes ficam para depois, para bem depois, quando houver ócio e tempo livre. Quando os quase seres humanos estiverem prontos para pensar e transformar o mundo em um inferno legitimado, amparado por leis e filosofias, a mentira será legitimada como palavra santa. Para o momento atual, em que apenas o forte sobrevive, não há espaço para reflexões. Estar constantemente em alerta te mantém vivo. E movimento é vida. Não olhar pra trás é vida. Pela sobrevivência, cruza-se Estreitos de Bering. E não há como vacilar. Em um segundo você está vivo, no seguinte devorado. Os fracos choramingam até que o lamuriar cesse por falta de energia e as feras os alcancem. Lutar pela vida não é privilégio, é necessidade. O mais forte caminha. Ficar imóvel é contar os minutos para o fim. É como confiar que a porta de madeira impedirá as bestas de invadirem a caverna. A porta tem sua utilidade, os muros também, mas a arma permanece às vistas, ao lado da cama. Assim nascerão as religiões: na suposição de que o invisível afaste as feras, mantenha a porta intacta e que não nos faça perder o sono. Essa é a semente de tudo o que virá. 

A humanidade fundará civilizações que destruirão umas às outras, desfraldarão bandeiras e comporão hinos que serão esquecidos. E nesse futuro idealizado acreditarão em qualquer coisa que lhes dê a garantia de que o amanhã possa ser diferente. Parece melhor do que vaguear com um tacape à procura de alimento e de abrigo. Mas seres com tacapes sobreviverão além da evolução das espécies e permanecerão próximos ao poder, garantindo o trono dos reis, os mantendo sob vigilância e talvez até deflagrando a guerra das guerras. Tudo isso porque temem libertar-se dos tacapes. Mas para este ser, que ainda não nasceu para dar fim à tola história civilizatória, só existe a empedernida luta pela sobrevivência. Não há tempo para o piscar de olhos. O sol já se esconde atrás do horizonte. Os olhos não enxergam. O coração palpita receoso. Uma fortaleza de angústia, ainda inexplicada. É preciso correr antes que as sombras cheguem.

...

O clamor da multidão não cessa mesmo após as seguidas rajadas das metralhadoras. Os populares parecem tomados por algum gênio ruim, que os faz perder a razão. Por que ainda se insurgem? Ora, foram eles mesmos que pediram o fechamento do Congresso! A vontade do povo foi realizada através do Estado de Exceção aprovado em um plebiscito promovido pela maior rede de televisão. Tudo às claras. Tudo muito bem explicadinho em letras minúsculas.

Para profunda irritação do líder sem liderança e sem seguidores, o ruído das sirenes, o odor putrefacto e o lamuriento balbuciar cadaverino atravessam a barreira acústica e a proteção contra odores.

- Oswaldo!

- Sim, senhor...

- Que horas chega o “recall” desta proteção contra odores? Esta empresa americana deveria funcionar à perfeição!  - gesticula olhando-se no espelho, ajeitando a gravata que não se ajeita, com os dedos tortos entre ossos saltitantes.

- Desculpe-me lembrar Vossa Excelência que os funcionários ainda são patrícios... – responde o ministro.

- Mas não fizemos um acordo de repatriação de cubanos evangelizados para os serviços de manutenção?

- Ainda não tomaram posse. Foram desvangelizados durante a travessia...

- Ora, vejam só! Chame-me a Primeira Dama!

- Sim, senhor... – o ministro curva-se em sinal de respeito sem dar as costas ao mandatário.

O país passa há tempos por dificuldades, mas não costurar as cuecas e meias do líder no prazo devido é um escárnio ao Estado de Exceção! E que deve ser punido com rigor mortis.

Não é novidade, e todos no mundo o sabem, que o maior país do cone sul optou em assumir-se como a maior colônia do maior país do cone norte, muito inspirado pelo menor país do cone sul que alardeia há anos as maravilhas do servilismo e do falso orgulho nacional.

Os tratados de livre comércio foram revistos e as empresas nacionais entregues pelo enxugamento da máquina pública. Por isso não se compreende a atual resistência do povo... Nunca o governo prometeu repartir as riquezas, mesmo as repatriadas. O assunto sequer foi debatido... A verba arrecadada com as privatizações financia a estrutura governamental. Nada mais. Não há mais o que vender. Não queriam um Estado enxuto? 90% do país já foi vendido, e os índios e negros re-escravizados pelo bem do país. O que não é possível é permitir que os excelsos governantes abram mão de suas prerrogativas! Como poderiam trabalhar pelo país sem as melhores condições? Como renderiam adequadamente em prol da nação, atualmente o maior exportador mundial de bananas e café in natura? “Commodities”, como gostam de frisar...

O ruído metálico de uma bala perdida espouca na proteção externa de aço que amplifica suas dimensões.

- Mas será o benedito? – reclama o vaidoso mandatário.

Xerxes, o chefe da nação, teme expor-se aos estilhaços vindo dos projeteis descarregados diariamente na população. Assim como teme os perdigotos dos aduladores e dos críticos, esses últimos mantidos à segura distância, o líder sem liderança teme, como dizem os americanos, ser “dead on arrival”.

Contra qualquer efeito colateral, uma bala perdida com ou sem endereço certo, foi construída uma fortificação em torno do palácio. Completa o quadro nefasto um poço infestado de piranhas, trazidas diretamente dos rios amazônicos. Fora a segurança reforçada para manter o lar em ordem, limpo, de banho tomado e com talco passado. “Avante!” canta Xerxes ao erguer os dedos deformados pela artrite que não se alinham nem à tapa, enquanto ensaia o gesto de Getúlio Vargas saudando a multidão.

A Primeira Dama esfrega o dedo pelo corrimão dourado, ainda sem ter sido avisada que o marido exige a sua presença no escritório. Ela ergue a madeixa loura, imprensada entre laços vermelhos, com a mão esquerda, apruma a vista e vê as funduras do indicador bem marcadas na balaustrada. Os gritos são ouvidos à distância. Os empregados têm medo dela, falam mal da patroa pelos cantos mas temem, bem mais, o pelourinho.

- Exijo dedicação integral dos empregados para que este palácio brilhe como o rei sol na escuridão. Mesmo que a luz solar não atravesse as janelas, isso não quer dizer que eu não esteja atenta!

A iluminação natural não é permitida na residência draculina. Jamais.

O cafetão olha seu reflexo retorcido pelo tempo. O botocado não gosta do que vê. Lembra que a plástica feita em clínica especializada não o havia agradado, apesar de ser um serviço privado e indicado por “celebrities”. Mesmo tendo seguido a cartilha à risca, tem nojo de si. O retrato do mal encarnado na terra. Cônscio está que melhorar a aparência não dará conta dos ossos crepitantes, assoalho vencido. Fora o botox e os implantes capilares, gagueja e manqueja.

Um mordomo abre a porta para Patrícia que arremessa o chicote ainda quente de ter dado no lombo das criadas. Ciente que o maridão não aprova-lhe o suor azedo, cheira o sovaco antes de dar um passo adiante. Não parece vencido... A recatada esposa ajeita a gravata do cafetão que se pavoneia perante o espelho como se não percebesse os tufos implantados de cabelo caindo aos borbotões.

- Estou bem, Patrícia?

- Está lindo como sempre!

- Que bom ouvir isso! Me dá um beijo, meu amor?

O beijo se perde no ar antes de encostar nos lábios ressecados, tingidos com batom de cacau.

- E como está Rafaelzinho, o nosso mui amado filho?

- Mais uma vez acordou reclamando de dores... Os médicos não conseguem conter o crescimento das protuberâncias na testa. E andam bem avermelhadas. Antes era tão menos pior quando eram azuladas...

- Tenha fé, minha querida. Deus está conosco...

- ... Satã está no meio de nós.

- Rafael é o nosso principezinho, o Príncipe da Nação!

- É o fruto do nosso amor – a mulher engasga com a própria mentira. Pega um copo de água para disfarçar que já não consegue mentir.

- Como te amo... – o vaidoso encanta-se com a mulher, criada a pão de ló e banhada em champagne Moët & Chandon.

- Está na hora de descermos. As visitas já estão chegando – alerta a recatada dama do lar.

- Como receber nossos convidados com o cheiro pútrido e gemidos agonizantes que nos chegam?

- E por acaso, o meu nobre marido acha que eles não sentem essa mesma podridão, mesmo “lá” do alto?

- Mas é claro...! Havia esquecido que não usamos mais carros. Somente helicópteros. Até mesmo para escaparmos dos odores.

- Esse meu marido esquecido... – faz que brinca, mas realmente anda preocupada com as varizes que saltam como sapos.

A noite é de gala. E promete... Holofotes de Batman abrem o caminho entre as nuvens carregadas. O casal convidado aterrissa. O tapete vermelho estendido. Em seguida, outros helicópteros pousam no teto do palácio. Gente de menor expressão como políticos, juristas, desembargadores, juízes do Supremo, militares e jornalistas. Poucos artistas há entre eles. Na verdade, somente um e bem conhecido... Mephisto.

- Olá, querida! Como você está translumbrante! – Patrícia faz que beija a convidada para seguir o cerimonial, mesmo que não se encostem e nem se gostem. Os sorrisos plásticos estampam-lhes as faces pétreas, rosáceas de tanta química, como molduras nauseabundas. Mesmo assim, entre tantas estrelas golpistas, a convidada é o principal foco das atenções, não por causa de seus olhos esbugalhados, que saltam-lhes das órbitas e muito menos pela corcova que pipoca de seu corpo macilento e esquálido. Ela exala poder e Guerlain. Enquanto a Primeira Dama parece apenas uma menina rica do interior, educada para ser a sinhazinha, a convidada sabe quem manda no pedaço. Ela conhece os podres de todo mundo ali e, sempre que pode, os alerta para que andem na linha. Que nada tentem contra ela. Numa nice, numa boa...

O marido da convidada quase tropeça ao saltar do helicóptero. Todos correm em seu auxílio como ratos amorais, mesmo sabendo que ele é sinônimo de ratoeira. Insensível como todo psicopata, nem se dá ao trabalho de agradecer. Sabe que eles ou o bajulam ou morrem. O corpo disforme mal se equilibra e o terno chique, comprado ontem, mal lhe cabe. Nem cobre as pelancas cabeludas. A barriga protuberante, os braços estendidos para trás como asas machucadas, o nariz adunco, peludo, envolto em seborreia, os cabelos ralos em uma testa suada e coberta de escaras. Claudicante como um pinguim enfermo e sem despertar a simpatia que poderíamos sentir pelo retinto animal.

- Como vai, Xerxes? – o pinguim aleijadiço aperta os braços do Presidente, para manter uma distância segura.     - E as galinhas do “sítio”?

- Estou bem... E você? – sorri incomodado. As pregas rangem.

- Cuidando bem da minha cadeira? – esclarece pontos obscuros.

- Você está brincando, não é? – assusta-se.

- Nunca brinco em serviço... – sussurra ao pé da orelha pontiaguda da velha raposa. – Querida Valquíria! – acena para a corcova feminina. – Vamos “cobrar a conta”?

- Mas é claro, meu bem – a demônia soa mais sincera do que Patrícia que morde a língua de raiva até sentir o gosto de sangue.

Xerxes, inseguro, não esboça uma reação. Somente urina nas calças. Pelo menos usa fraldas bem sequinhas. Os convidados seguem o casal invasor sem dar a minima para os ditos “líderes”, sem nem tocar-lhes as sombras. Descem todos ao salão presidencial onde a orquestra toca sucessos de Ray Conniff. Deixados a sós na cobertura, o Presidente nunca eleito estende a mão a Patrícia que o repele.

- Não vai fazer nada? Vai ficar parado aí como um velho maldito?

- Mas, meu amor...

- “Meu amor” é a PQTP! Faça algo ou eu te interno, seu desgraçado!

Com o batimento acelerado, Xerxes nem se preocupa mais em trocar a fralda e corre atrás do pinguim a tempo de vê-lo sentado na cadeira presidencial. Valquíria está em cima do tampo da mesa com um olhar malignamente vitorioso. Antes, ela havia feito questão de derrubar o retrato da família presidencial. O vidro que protegia a fotografia, rachado.

- Sente-se, meu caro Xerxes. Sinta-se em casa. Ouça com atenção as mudanças que serão implementadas ainda esta semana. A você, como sempre, cabe assinar.

 

(continua)