ESTADO DE NECESSIDADE x ESTADO DE POBREZA

Por Marcelo Ranção | 10/08/2010 | Direito


ESTADO DE NECESSIDADE X ESTADO DE POBREZA


Marcelo Filipe Castellano Ranção
Victor Luz Silveira Santagada
Mário Monteiro de Castro
Bruno Stigert do Valle


RESUMO
Este artigo retrata o entrave que se estabelece na dualidade estado de necessidade X estado de penúria na questão do transporte de drogas, utilizando a concepção de Escamilla (2006). Aborda situações em que a condição do indivíduo é mote de uma possível exclusão da ilicitude pela excludente estado de necessidade. Seria o caso do individuo que transporta droga, chamado por Escamila de "correos de la cocaína", motivado pela sobrevivência, em face da condição de infortúnio, de modo que esta condição poderia atenuar ou mesmo excluir a ilicitude do delito.
Palavras-chave: "estado de necessidade"; "correos de la cocaína"


ABSTRACT
This article depicts the barrier that is established in the state of necessity duality X state of penury on the issue of drug delivery, using the concept of Escamilla (2006.) Addresses situations in which the condition of the individual is a motto of the possible exclusion of unlawful exclusionary rule of necessity. This would apply to persons transporting drugs, called by Escamila of "correos de la cocaine motivated by survival, given the condition of misfortune, so that this condition could weaken or even exclude the wrongfulness of the crime.
Keywords: "state of necessity", "correos de la cocaine"




O social é o "punctum saliens" do ordenamento jurídico, já que o direito é concebido como uma ciência social aplicada que se estabelece na circunscrição dos ensejos sociais e de um imperativo humanístico (isso, principalmente, no pós Declaração Universal dos Direitos Humanos). Há de se falar também em um direito equalizado, isto é, harmônico, mesmo em sistemas onde a desigualdade é a máxima, o direito busca torná-lo igual por meio de justiça social e equitativa.
Se analisarmos sociologicamente o modo como o direito opera, podemos afirmar, dentro de uma concepção Durkheimiana, que ele age como mecanismo de coibição de práticas extremistas e de coesão social. Enquanto para Marx, a idéia, ainda que reste uma linha dessa interpretação, é permeada pela luta de classes, de modo que o direito, notoriamente, é um instrumento de dominação das classes mais baixas pelas mais abastardas, refletindo e, mais do que isso, engendrando esta proposição.
O texto "Los ?Correos? De La Cocaína" Y El Tribunal Supremo: Pobreza, Estado De Necesidad Y Prevención General", aborda a questão da alegação do estado de miséria, pobreza e penúria econômica por indivíduos detidos por tráfico de drogas: os "correos de la cocaína", com a intenção de que a condição de infortúnio, a condição de miséria, possa atenuar a pena pelo crime contra a saúde pública e de tráfico de drogas, ou seja, que a situação sócio-econômica é fator determinante para a prática do delito: "...la circunstancia psicosocial de La pobreza o penuria económica, como elemento determinante de La actividad delictiva, el objeto de este artículo...".
Escamilla (2006) traz a resposta do Tribunal Supremo sobre essa questão: a alegação de que a situação econômica é fator determinante na prática do crime, como regra geral, as decisões do Tribunal Supremo não aceitam a respectiva alegação, sob dois principais argumentos: há uma desproporção entre os males - efeitos do tráfico e situação econômica, "el mal causado es mayor que el que se trataba de evitar", segundo Escamilla, a diferença entre a situação de miséria econômica e os efeitos do tráfico seria extremamente grande, constatando um desequilíbrio axiológico, não existindo então, um conflito que permita alegar estado de necessidade; a prerrogativa de alegação de estado de necessidade não poderia de forma alguma compensar ou funcionar como remédio para minimizar os efeitos da situação de penúria econômica.
Escamilla destaca que, embora não se aceite, na maioria dos casos a alegação de estado de necessidade, a justiça não pode desconsiderar os efeitos da pobreza, ou, no termo mais utilizado pela justiça espanhola, penuria económica. Segundo a professora de direito penal da Universidad Complutense de Madrid, não se pode deixar de levar em conta a amplitude e a intensidade da pobreza dos países de que vêm os "correos de la cocaína", no qual não se verifica um sistema de saúde que atende todas as pessoas, em que há falta de acesso a um sistema de seguro social, onde o assistencialismo é precário.
A autora também aborda o fato de que o Tribunal Supremo não discute os efeitos criminológicos, sociais, físicos e psicológicos da pobreza; Escamilla destaca que, essa discussão é extremamente necessária para ponderar acerca dos males penúria econômica e tráfico de drogas: "pues difícilmente se puede motivar uma ponderación si no se pone em uno de los lados de La balanza", o silêncio demonstra o distanciamento dos estudiosos, doutrinadores e operadores do direito em ralação aos efeitos da pobreza e da marginalização Na mesma linha de pensamento, Escamilla destaca é facilidade para valorar os males causados pelos "correos de la cocaína" e, em contra partida, a falta de uma discussão, verdadeiramente, social.
Por fim, o artigo contextualiza a pobreza no atual panorama mundial, levantando um questionamento: como o direito penal deve agir perante o atual problema da pobreza e da exclusão social? Segundo Margarita Martínez Escamilla, a nossa sociedade o consumo é, além de pilar da economia, norte dos valores que nos guia, á fácil perceber como o pobre é considerado um fracassado. Adverte Escamilla que os bens considerados básicos devem estar ao alcance de todos; a educação e saúde como prioridades, para que indivíduos não tenham que "saltar el muro... de la exclusión social". Conclui dizendo que, não se pode falar em pena justa, pena útil, ou justiça, quando o sistema social é extremamente injusto.
Segundo Tavares, o princípio da ponderação de bens e deveres tem incidência apenas no estado de necessidade justificante, posto não conseguir fundamentar a impunidade do fato necessário quando esses bens e deveres sejam de igual valor (vida contra vida, no exemplo da tábua de salvação) ou quando o bem sacrificado seja maior do que o protegido. De sorte que nestas últimas situações, que traduzem comportamento ilícitos, incidem a excludente de culpabilidade ? estado de necessidade exculpante. Daí a necessidade do tratamento bifronte dado ao estado de necessidade pela teoria diferenciadora.
Foi nessa época que a jurisprudência alemã passou a admitir, mesmo sem amparo legal, a exclusão da antijuridicidade em determinadas situações de estado de necessidade, consagrando a denominada "teoria diferenciadora", acolhendo duas formas de estado de necessidade, ulteriormente, incorporadas ao texto legal, isto é, estado de necessidade justificante (excludente de ilicitude) e estado de necessidade exculpante (excludente de culpabilidade), assim elucidadas por Assis Toledo:

Primeiro se configura quando o agente comete o ato para afastar, de si ou de outrem, perigo inevitável para a vida, para o corpo, para a liberdade, para a honra, para a propriedade ou para um outro bem jurídico, se, na ponderação dos interesses conflitantes, o interesse protegido sobrepujar sensivelmente aquele que foi sacrificado pelo ato necessário.O segundo se verifica quando o agente realiza uma ação ilícita para afastar de si, de um parente ou de uma pessoa que lhe é próxima, perigo não evitável, por outro modo, para o corpo, para a vida ou para a liberdade, excluída a hipótese em que o mesmo agente esteja obrigado, por uma especial relação jurídica, a suportar tal perigo e também a de que este último tenha sido por ele provocado (TOLEDO apud TAVARES, 2008)



Tais considerações levam a crença de que o direito, neste caso, é um instrumento de coerção social, formado por uma consciência coletiva, onde o todo é mais que a soma das concepções individuais, fazendo o sujeito "sistemático" ? no sentido de preso ao precedente ? e ao mesmo tempo um imperativo que reflete a luta de classes e que, demonstra, de uma certa maneira, o fracasso do direito em equalizar suas contas, uma vez que coíbe um estado de necessidade proveniente de um estado de pobreza, alias não só coíbe como os contrapõe, daí a contradição com o pensamento Marxista, o controle, na visão desse autor, se manifesta na medida em que observamos a manipulação do sistema pelas classes, endossando o coro da desigualdade e da penúria daqueles que se encontram em condições de infortúnios.
A idéia recente dos Tribunais, como Escamila bem retratou, é que o trafico de drogas não pode ser justificado pela condição de miserável, pois a saúde pública é um bem maior. Os problemas de ordem sociais: neste caso, tráfico e pobreza, sendo que o primeiro se estabelece como eixo para suportar o segundo, não podem ficar à margem de uma interpretação Marxista, no sentido que devemos apreciar a questão levando em conta não puramente o indivíduo, mas a colaboração social para que ele estivesse ali e, além disso, o esforço social para retirá-lo dali, esse é o ponto essencial para discordar do entendimento do Tribunal: saúde pública prevalece quando se equivale à inclusão e oportunidades, mas em condições "subnormais", prevalece o estado de pobreza.



BIBLIOGRAFIA



Durkheim, E. As regras do método sociológico. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2002.


ESCAMILLA, Margarita Martínez. Los ?Correos? De La Cocaína" Y El Tribunal Supremo: Pobreza, Estado De Necesidad Y Prevención General.Direcho Penal Comtemporáneo, nº 12, Legis p.p 5-52, Bogotá, 2005.

MARX, Karl. El Capital, 3 tomos. México: Fondo de Cultura Econômica, 1946, tomo I, p. 18. Apud IANNI, Octavio. Dialética e capitalismo ? ensaio sobre o pensamento de Marx. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 11.
TAVARES, Heloisa Gaspar Martins. Estado de necessidade como excludente de culpabilidade. Jus navigandi. 2008. Acesso em 20 de jun de 2010
Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5959
TOLEDO, Francisco de Assis, Princípios Básicos de Direito Penal. Editora Saraiva. 2001.