Escritos sobre Nietzsche

Por Arthur O. Bragança | 05/12/2013 | Filosofia

ESCRITOS SOBBRE NIETZSCHE

 

A Sra. Noéli Correia de Melo Sobrinho tem publicado sistematicamente volumes que contém elementos da filosofia do Sr. Friedrich W. Nietzsche, sobre Educação (2003), sobre História (2005), Política em 2 vols. (2007), Direito (2009) e Psicologia (2013).

Os textos de Nietzsche reunidos neste primeiro volume “Escritos sobre Educação”, na maior parte inéditos no Brasil, pertencem a seu período de juventude. No início de 1872, ano das conferências “Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino”, Nietzsche acaba de completar 27 anos. É também o ano de sua primeira e fundamental obra “O Nascimento da Tragédia”. O jovem professor de filologia clássica na Basileia – embebido de classicismo regenerador – sonhava com uma educação que formasse (Bildung) e não apenas profissionalizasse. Pensava em uma cultura ligada à vida e não em artefatos eruditos que servissem a uma mesquinho pragmatismo.

Textos de juventude, os aqui reunidos, ma sobretudo panfletos de adesão à figura do mestre. Em “Schopenhauer como educador” (1874), a terceira consideração exteporânea, a noção de guia, de ideal exemplar percorre as exigentes páginas de um ensaio perturbador. Se “viver significa estar em perigo”, não é menos verdade que uma voz que “nos inspire respeito e admiração “pode nos guiar na via da verdadeira cultura.

Conclamações para um classicismo ligada à vida, manifestos contra a erudição estéril, os textos educacionais do Nietzsche nos advertem: o tecnicismo e a mediocrização não são os caminhos da cultura.

Este livro é destinado aos leitores calmos, aos homens que não foram ainda arrastados pela pressa vertiginosa da nossa época precipitada e que não experimentaram um prazer idólatra de se deixar esmagar por suas rodas – portanto, a bem poucos homens! Mas estes homens não podem já habituar-se a calcular o valor de cada coisa pelo tempo economizando ou pelo tempo perdido, eles, têm “ainda tempo”; e lhes é ainda permitido, sem experimantar remorso, escolher e buscar as boas horas do dia e seus momentos fecundos e poderosos para meditar sobre o futuro da nossa cultura, eles têm o direito de acreditar que passaram seu dia de maneira digna e verdadeiramente útil, na “meditatio generis futuri”.

 

Os “Escritos sobre História”, seleção e tradução de textos de F. W. Nietzsche (1844 – 1900), organizam-se em torno de uma questão: qual o sentido e o valor da História para a vida? A distribuição dos textos também persegue o mesmo problema. “Fatum e História” (1862), a “II Intempestiva: sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida” (1874) e os “Fragmentos póstumos” (1872 – 1889) procuram responder a uma dupla exigência: uma “crítica” e uma “clínica”.

Uma “exigência crítica”, na medida em que a denúncia das pretensões da História realizadas tanto pelos “filósofos da história” quanto pelos “historiadores profissionais” se atém ao reconhecimento de suas “falsas aplicações”. Ao pretender corrigir e aprimorar o sentido histórico do homem moderno, essas duas perspectivas terminam por promover a ressurreição de um espiritualismo, abstrato e reverente, que só inspira respeito pelo passado e pelos valores reconhecidos. Elas não foram capazes de realizar a crítica completa e radical do mundo e da sociedade, limitando-se a rebatizar os antigos valores e a difundir por toda a parte um conformismo insípido.

Uma “exigência clínica”, uma vez que filósofos e historiadores, ao procurar na História o lenitivo universal contra o desespero do mundo, desprezaram a constelação de males e sofrimentos do homem moderno, vítima de uma febre irreversível, fonte de todas as doenças. Na busca de um princípio capaz de conduzir à realização da “modernidade feliz”, só encontram, entretanto, uma “justificação” para seus padecimentos e um “consolo” para sua virose histórica. O homem moderno se consome na narcose de seu próprio presente.

Os três principais modos pelos quais a História concebe o passado (monumental, tradicional e crítico) podem conferir ao sentido histórico uma tonalidade exacerbada e doentia: do “pathos” à patologia. A História só adquire sentido e valor quando se coloca a serviço da vida e a intensifica como um instrumento para criação do desconhecido. Contra a mistificação a-histórica do fato consumado, Nietzsche reclama um direito ao “intempestivo”, a transvaloração radical que arranca a História de seus eixos.

Nestes “Escritos sobre História”, cujos interesse e importância ultrapassam os limites teóricos do historicismo, o leitor encontrará páginas vibrantes, capazes de devolvê-lo ao fluxo incessante da própria vida.

Toda ação exige esquecimento, assim como toda vida orgânica exige não somente a luz, mas também a escuridão. Um homem que quizesse sentir as coisas de maneira absolutamente e exclusivamente histórica seria semelhante àquele que fosse obrigado a se privar do sono, ou a um animal que só pudesse viver ruminando continuamente os mesmos alimentos. É portanto possível viver, e mesmo viver feliz, quase sem qualquer lembrança, como o demonstra o animal; mas é absolutamente impossível viver sem esquecimento. Ou melhor, para me explicar ainda mais simplesmente a respeito do meu problema: “há um grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, para além do qual os seres vivos se verão abalados e finalmente destruídos, quer se trate de um indivíduo, de um povo ou de uma cultura (Kultur)”.

 

            Um esclarecimento preliminar se faz necessário. Como é sabido, Nietzsche não escreveu nem publicou qualquer obra que tratasse sistematicamente da política no sentido em que este termo é tomado tradicionalmente na história do pensamento político ocidental, no entanto, em muitas ocasiões, ele lidou com questões e materiais de natureza política num sentido que extrapola a acepção predominante do termo e se põe como a esfera propriamente do jogo do poder e do sentido deste jogo. Ao discutir uma série de temas e problemas dessa ordem, ele apresenta alternativas no âmbito da cultura e da sociedade de cujas conseqüências são indiscutivelmente de natureza política. A política no pensamento de Nietzsche é certamente um campo no qual ele trava os seus combates filosóficos e culturais: como poderíamos pensar na vontade de poder, na transvaloração de todos os valores, no superhomem, na necessidade da dominação e da guerra, por exemplo, sem fazer referência à dimensão da política?

O caráter demagógico e o propósito de atuar sobre as massas são atualmente comum a todos os partidos políticos: todos são obrigados, em razão do referido propósito, a transformar os seus princípios em grandes baboseiras a fresco para assim poder printá-los nas paredes.

 

Os grandes príncipes e os grandes conquistadores falam a língua patética da virtude, em sinal de que esta, graças ao sentimento de poder que acarreta, é reconhecida entre os homens. A falta de probidade de toda a política consiste em que as grandes palavras, que cada um deve ter na boca para manifestar que se está de posse do poder, não podem coincidir com as condições e os motivos verdadeiros.

 

            A coletânea “Escritos sobre Direito” de que o leitor brasileiro passa agora a dispor reúne vários dos escritos de Nietzsche sobre a atividade genérica da Cultura inseparável da “moralização dos costumes”, bem como sua relação intrínseca com as questões da lei e da justiça. A história da moralidade se confunde com a das torturas, das mutilações e dos suplícios, dos meios mais atrozes e violentos pelos quais um Estado (uma Igreja ou uma Instituição qualquer) se serviu para integrar os indivíduos. Integrar os indivíduos, deste ponto de vista, significa: fazê-los obedecer às arbitrariedades históricas de um povo, de uma ração, de uma classe. Mas, também, de exigir a conformidade de sua conduta às leis. Trata-se de adestrar o homem, de escavar em seu corpo uma consciência e uma memória; melhor ainda, reforçar a consciência pela memória e de dotá-lo de uma nova faculdade.

            Como pode o homem tornar-se um animal confiável para os outros e para si mesmo? Como chegamos a produzir um animal que pode, como faz quem promete, “responder por si como provir”? Como esse animal naturalmente esquecido, que conta com o esquecimento como uma força ativa, que sempre viveu entregue às mais diversas excitações do presente, pode criar para si a dimensão de um futuro, de algo que não remete necessariamente ao passado, mas, antes, de algo que deve ser mantido, guardado e cumprido? Como pode, por fim, o homem render-se ao futuro para dele dispor como um indivíduo soberano?

            A longa história da moralidade dos costumes sempre fez derivar a ideia de justiça do espírito de vingança, a virtude da lei da necessidade da obediência, mas tudo isso não passa de uma ilusão dos moralistas. A filosofia de Nietzsche pressupõe, ao contrário, um olhar aguçado: foi preciso fazer da dor um meio de troca. A equação “dano causado – dor sofrida” só pode ser compreendida se considerarmos a dor em função do prazer que se sente ao infligi-la a outrem, a plena satisfação que ela é capaz de promover em nós. O sentimento de obrigação pessoal, cuja origem deve-se procurar na relação credor e devedor, desenvolveu-se paralelamente ao direito fundamental do credor de fazer-sofrer o devedor. Só assim pôde-se estabelecer um princípio de medida, de equivalência ou de troca. O mercado da crueldade.

            O sentido da responsabilidade-dívida, contudo, deve desaparecer para que o produto superior da Cultura possa finalmente realizar-se: a moralidade dos costumes deve produzir um novo homem, liberto da moralidade e da obediência. O homem que pode prometer ao atingir seu limite não precisa mais responder, escapa a todo esforço de integração. O indivíduo soberano é também um legislador, o autor e ator de sue próprio destino.

A autodefesa é a forma originária de toda justiça; este fundamento originário não pode jamais desaparecer completamente. A justiça oficial é somente a autodefesa organizada em vista da vingança da injustiça. Assim, não deve causar espanto que a autodefesa, na medida em que é o fundo gerador, supra as insuficiências da sua organização. As penas infamantes não bastam absolutamente à consciência natural da justiça.

 

Dando continuidade ao projeto de oferecer ao leitor um conjunto de textos de Nietzsche ligados a uma área de interesse específica, este livro “Escritos sobre Psicologia” reúne os aforismos das obras publicadas em vida e os fragmentos póstumos que tratam da “psicologia”.

Toda a psicologia ficou até agora prisioneira de preconceitos e temores de ordem moral; ela não se aventurou nas profundezas. Considerá-la tal como eu o faço, como morfologia e “teoria genética da vontade de poder”, é uma ideia que ainda ninguém sequer tocou, caso nos seja permitido inferir, disso que foi escrito até agora, o que passou em silêncio. Os preconceitos morais penetram forte e profundamente no mundo mais inflamado de pensamento, aparentemente o mais frio e o mais livre de ideais preconcebidas, e eles incontestavelmente exerceram uma ação nociva, paralisante, geradora de cegueira e de ilusão. Uma fisio-psicologia digna desse nome entre forçosamente em luta contra resistências inconscientes no coração do investigador; ela tem o “coração” contra si. (...) Navegamos diretamente para-além da moral, sufocamos, esmagamos talvez ao mesmo tempo o que nos resta de moralidade ousando navegar até lá, – mas que importa o nosso destino? Jamais um mundo de conhecimentos mais profundos se abriu à ousadia de navegantes e aventureiros, e o psicólogo que se “sacrifica” assim – não se trata do “sacrifizio dell’intelleto”, pelo contrário – este terá pelo menos o direito de reivindicar em troca que a psicologia tenha o seu estatuto reconhecido de ciência rainha, a quem todas as outras ciências têm por tarefa servir e preparar. Pois agora a psicologia se tornou o caminho que conduz aos problemas essenciais.

 

Todas as obras indicadas aqui, os “Escritos sobre...” são da editora Puc-Rio conjunta com a Loyola.

Arthur O. Bragança

Marcelo de Deus Campos

Artigo completo: