ESCLARECIMENTO E EMANCIPAÇÃO: UMA CRÍTICA À EDUCAÇÃO PARA A IRRACIONALIDADE
Por Divino Eterno Pereira Campos | 03/03/2011 | FilosofiaAristóteles define o homem como animal rationale, e é essa definição, segundo o pensamento aristotélico, que distingui o homem de todas as outras coisas que possuem anima. Com efeito, a concepção do homem, desde a filosofia aristotélica, é determinada pelo predicativo rationale; isto é, desde então, o homem é definido como um ser capaz de pensar, de, por meio do pensamento, criar e recriar. Portanto, diante dessa realidade histórica e antropológica, numa perspectiva educacional, formulo as seguintes perguntas: na contemporaneidade, o homem tem se portado como um ser pensante? Os mecanismos sociais de educação têm formado pessoas autônomas, em relação às suas faculdades de pensar e criar, ou estes mecanismos tem formado massas heterônomas?
Em sua crônica Boca de forno, Rubem Alves faz uma crítica à educação na contemporaneidade. Segundo as suas palavras, as instituições de ensino formam os alunos no sentido de serem não pensadores, mas repetidores daquilo que já é estabelecido como saber e lhes são passado como conteúdo educacional. "As crianças são ensinadas. Aprendem bem. Tão bem que se tornam incapazes de pensar coisas diferentes. Tornam-se ecos das receitas ensinadas e aprendidas. Tornam-se incapazes de dizer o diferente" (ALVES, 1994, p.22). Os educadores lhes ensinam tudo, menos exercer a capacidade de pensar, de criar novos caminhos para o saber, de se aventurarem na via do conhecimento sem medo de errar. Assim ele fala:
Acho que a educação frequentemente cria antas: pessoas que não se atrevem a sair das trilhas aprendidas, por medo da onça. De suas trilhas sabem tudo, os mínimos detalhes, especialistas. Mas o resto da floresta permanece desconhecido. (Ibidem, p.25).
Com efeito, Rubem Alves afirma ainda: "o saber já testado tem uma função econômica: a de poupar trabalho, a de evitar erros, a de tornar desnecessário o pensamento. Assim, aprende-se para não precisar pensar. Sabendo-se a receita, basta aplicá-la quando surge a ocasião" (Ibidem, p.23). Diante disso, infere-se que a educação contemporânea forma o homem não para o pleno desenvolvimento e uso da sua razão. "O saber sedimentado nos poupa dos riscos de pensar" (Ibidem). A atual concepção educacional é de uma educação para a irracionalidade, isto é, para o não uso da faculdade de pensar; e não para a formação de um sujeito autônomo, preparado no conhecimento e capacitado para uma autoreflexão da sua realidade circundante: que no pensamento kantiano é definido como sujeito esclarecido, e no pensamento adorniano como sujeito emancipado.
"Se existe uma forma certa de pensar as coisas e de fazer as coisas, por que se dar o trabalho de se meter por caminhos não-explorados? Basta repetir aquilo que a tradição sedimentou e que a escola ensinou" (Ibidem, p.22). O pensamento kantiano concebe essa irracionalidade frente o mundo com o termo "menoridade", que ele define como a falta de decisão e coragem do indivíduo de servir-se do entendimento sem a orientação de outrem. "A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo" (KANT, 1985, p. 100). Portanto, Kant define menor o indivíduo que não pensa por si mesmo, mas age condicionado pelo pensamento de outrem; e esclarecido o homem que sai dessa sua menoridade, da qual este próprio é culpado.
Para o pensamento kantiano, o esclarecimento, do qual o indivíduo é seu promotor direto, é a condição da liberdade e, uma vez conquistado, assemelha-se a ela. "Para este esclarecimento, porém, nada mais se exige senão LIBERDADE. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões" (Ibidem, p. 104, Grifo do autor). Para Kant, fazer uso público da razão consiste no fato de o indivíduo autonomamente manifestar, diante de tudo o que é e compõe o ser público, o seu ponto de vista em relação a toda e qualquer questão que se desenvolva dentro do âmbito público. Para ele, o indivíduo que não faz uso público de sua razão, nega a si mesmo o esclarecimento. E negar a si a condição de esclarecimento é renunciar a própria liberdade.
Um homem sem dúvida pode, no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim por algum tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento (Aufklärung). Mas renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência, significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade (Ibidem, p.110).
Sem dúvida, o maior direito do qual o homem priva-se, ao adiar o esclarecimento, isto é, ao viver na condição da irracionalidade: é a liberdade. Kant, aqui, quer apontar justamente isso. Para ele, quando o homem aceita a sua condição de menoridade, ou seja, uma condição de irracionalidade frente o mundo, e não tem coragem de fazer uso de seu próprio entendimento, este está negando a si mesmo um dos maiores direito da humanidade: a liberdade. Embora Kant neste ensaio não aprofunde o conceito de liberdade ? o que faz na Crítica da Razão Prática ? entende-se que, como ele fala numa perspectiva iluminista, aqui o conceito liberdade esta relacionada à liberdade de pensamento.
Com efeito, Adorno, fazendo uma interpretação do esclarecimento de Kant como a emancipação do sujeito, afirma que: "Para evitar um resultado irracional é preciso pressupor a aptidão e a coragem de cada um em se servir de seu próprio entendimento" (ADORNO, 2003, p. 169). O caminho que Adorno propõe, então, para o homem fugir desse estado de irracionalidade, é a emancipação; isto é, uma educação para a autonomia do sujeito, para a sua capacidade de autorefletir em seu meio circundante.
Este caminho para a emancipação que Adorno propõe, se faz sob uma certa firmeza do eu. "A emancipação precisa ser acompanhada de uma certa firmeza do eu, da unidade combinada do eu, tal como formada no modelo do indivíduo burguês" (ibidem, p. 180); isto é, sob uma determinação interna do indivíduo, a qual não se submete às forças heterônomas sociais, que massifica a sociedade, tornando-a uma sociedade heterônoma, a qual se abstém de sua autonomia e se submete a regência de outrem.
De uma maneira geral afirma-se que a sociedade, segundo a expressão de Riesman, "é dirigida de fora", que ela é heterônoma, supondo nesses termos simplesmente que (...) as pessoas aceitam com maior ou menor resistência aquilo que a existência dominante apresenta à sua vista e ainda por cima lhes inculca à força, como se aquilo que existe precisasse existir dessa forma. (Ibidem, p. 178).
O processo de emancipação é definido, primeiramente, como um ato de estranheza do indivíduo frente às inverdades mascaradas de verdade que sobrevoam o seu meio circundante. "A condição de alheio [estranheza] é o único antídoto da alienação" (ADORNO, ?, p. 83) ? em Kant, entende-se o conceito de alienação como o sujeito que se deixa conduzir por seu tutor, e no pensamento de Adorno, o indivíduo que se submete à regência de outrem. Assim, a emancipação é definida como um vir-a-ser e não como um ser; isto é, não como algo pronto, estático, mas como algo dinâmico, como um despertar do indivíduo frente o mundo, despertar que se constituí a cada instante. Além disso, a educação emancipadora deve ser uma educação para a contradição e para a resistência. "A única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contradição e para a resistência" (Ibidem, 2003, p. 183).
Contudo, Adorno afirma que o processo de emancipação não consiste simplesmente no protesto contra qualquer tipo de autoridade, mas em uma postura crítica frente aos mecanismos de massificação. Ele afirma que "o modo pelo qual (...) nos convertemos em um ser humano autônomo, e portanto emancipado, não reside simplesmente no protesto contra qualquer tipo de autoridade" (Ibidem, p.176). Mas, de certa forma, a priori, numa identidade do indivíduo com uma figura que lhe represente uma autoridade; e, a posteriori, num rompimento com esse referencial, processo no qual o indivíduo se tornará uma pessoa emancipada. Adorno descreve esse processo da seguinte forma:
É o processo ? que Freud denominou como o desenvolvimento normal ? pelo qual as crianças em geral se identificam com uma figura de pai, portanto, com uma autoridade, interiorizando-a, apropriando-a, para então ficar sabendo, por um processo sempre muito doloroso e marcante, que o pai, a figura paterna, não corresponde ao eu ideal que aprenderam dele, libertando-se assim do mesmo e tornando-se, precisamente por essa via, pessoas emancipadas (Ibidem, p. 177).
Esse nos parece ser o ponto em que o conceito de emancipação de Adorno e o esclarecimento kantiano se divergem. O esclarecimento em Kant está na perspectiva iluminista (Aufklärung), em que toda autoridade e tradição eram concebidas como obstáculos ao pleno desenvolvimento da razão. No iluminismo, submeter-se à autoridade era o mesmo que renunciar a própria liberdade, isto é, lançar-se na condição de menoridade. Adorno, embora afirme uma certa firmeza do eu no processo de emancipação, que se concretiza numa educação para a contradição e para a resistência; ele concebe, de certa forma, a autoridade como um elemento importante neste processo emancipador. Contudo, deve-se ater que ele concebe positivamente, no processo de emancipação, a autoridade, não o autoritarismo, haja vista a filosofia adorniana ser oposta a todo e qualquer autoritarismo e totalitarismo.
De fato, submeter-se a uma autoridade não significa alienar-se de sua própria razão. Neste sentido, Hans-Georg Gadamer, um dos maiores expoentes da hermenêutica filosófica, define a autoridade como um atributo de pessoas, cujo fundamento está no ato de reconhecimento e conhecimento de tal atributo, mas não como um ato de submissão e abdicação da razão, como alegava o iluminismo. "A autoridade é, em primeiro lugar, um atributo de pessoas. (...) Reconhece-se que o outro está acima de nós em juízo e perspectiva e que, por conseqüência, seu juízo precede, ou seja, tem primazia em relação ao nosso próprio" (GADAMER, 1998, p.419).
Além disso, a autoridade é adquirida, ou seja, ela repousa sobre o reconhecimento e sobre a ação da própria razão que reconhecendo os seus limites confere credibilidade a outro. "A autoridade não se outorga, adquire-se. (...) Repousa sobre o conhecimento e, portanto, sobre uma ação da razão que, tornando-se consciente de seus próprios limites, atribui a outro uma perspectiva mais acertada" (Ibidem). Com efeito, segundo Gadamer, autoridade neste sentido não tem nada a ver com obediência cega. "Na realidade, autoridade não tem nada a ver com obediência, mas com conhecimento" (Ibidem, 420). O poder de dar ordens e encontrar obediência, de fato, não está associado a uma pessoa em si, mas a autoridade que se reconhece nesta pessoa. Da mesma forma, a autoridade de um superior está não em seu poder de dar ordens, mas num ato, segundo Gadamer, da liberdade e da razão que concede ao superior determinada autoridade.
Sem dúvida que poder dar ordens e encontrar obediência é parte integrante da autoridade. Mas isso somente provém da autoridade que alguém tem. Inclusive a autoridade anônima e impessoal do superior, que deriva das ordens, não procede, em última instância, dessas ordens, mas torna-as possíveis. Seu verdadeiro fundamento é (...) um ato da liberdade e da razão, que concede autoridade ao superior basicamente porque possui uma visão mais ampla ou é mais consagrado, ou seja, porque sabe mais (Ibidem).
Portanto, o processo de emancipação, para Adorno, não consiste na contestação a qualquer tipo de autoridade, mas numa ação crítica e esclarecedora frente a todo e qualquer mecanismo de massificação, que ele denomina: indústria cultural. Conforme Oliveira:
Segundo Adorno, uma das características da atual sociedade tecnológica é a criação de um gigantesco aparato da indústria cultural. A indústria cultural é um instrumento de manipulação das consciências, usada pelo sistema para se conservar, se manter ou submeter os indivíduos (OLIVEIRA, ?, p. 39).
Essa ação esclarecedora, ele propõe como o ato de professores e alunos fazerem visitas conjuntas a filmes comerciais, na qual pudesse ser mostrada aos alunos a ilusão que é tecida nos filmes; também, o mesmo pudesse ser realizado com programas, musicais (Cf. ADORNO, 2003. p. 183); em fim, Adorno propõe uma visão crítica do indivíduo em relação a toda sua realidade circundante. "Assim, tenta-se simplesmente começar despertando a consciência quanto a que os homens são enganados de modo permanente" (ADORNO, 2003, p.183).
Portanto, neste ensaio, cujo objetivo foi realizar uma crítica ao modo de educação que educa para a irracionalidade, Rubem Alves nos introduziu na questão com o texto Boca de Forno. Neste texto, ele nos apontou uma educação que valoriza não o pensamento, a arte de criar, a originalidade; mas uma educação que valoriza o aprendizado que se fundamenta na repetição de conteúdos. Diante dessa educação condicionante, foi contraposto o conceito kantiano: esclarecimento, que segundo a definição de Kant, é a saída do homem de sua "menoridade", da qual ele próprio, o homem, é culpado; ou seja, a saída deste de seu estado de irracionalidade para o estado do pleno e livre uso da razão.
Além disso, foi apresentada a proposta de Adorno para uma emancipação do sujeito. Para este, assim como o já exposto, a educação emancipadora deve ser uma educação para a contradição e para a resistência. Todavia, não uma educação que negue qualquer tipo de autoridade; mas uma educação crítica-reflexiva frente a todos os mecanismos de massificação. Assim, se quisermos evitar esse estado de irracionalidade presente no pensamento educacional contemporâneo, é necessário cada indivíduo ter a coragem e a habilidade de se servir de seu próprio entendimento (Cf. ADORNO, 2003, p. 169); ou seja, cada um ter a capacidade de, por meio de uma ação crítica-reflexiva da sua realidade circundante, determinar a sua autonomia frente a todo movimento de massificação da sociedade.