Escatologia: recomeçar a vida e o mundo (2- Escatologia: campo de discussão?)

Por NERI P. CARNEIRO | 08/01/2020 | Religião

Escatologia: recomeçar a vida e o mundo (2- Escatologia: campo de discussão?)

Muitos de nós gostamos de saber a origem e o significado das palavras. Com a palavra escatologia não é diferente. E ao pesquisar, ficamos sabendo que essa palavra significa o discurso ou o estudo sobre os acontecimentos finais do ser humano e do mundo.

Informados disso, podemos nos perguntar: em que consiste esse fim? Quais são esses “acontecimentos finais”? Se estamos falando dos acontecimentos finais, significa que depois desses eventos estudados pela escatologia não haverá mais nada? Será o fim de tudo?

Além disso, se estamos falando de um “estudo” a respeito da consumação, quais os temas estudados pelos especialistas, os estudiosos dessa área da teologia?

O padre Chemello (2018), num curso de teologia para leigos, afirma que:

A discussão da escatologia foi tradicionalmente intitulada no passado como: “as coisas últimas”, “De Novíssimos”. Elas foram elencadas como De Novíssimos individual: morte, juízo, inferno e paraíso (incluindo o tema do purgatório e o limbo) e De Novíssimos da história humana: fim do mundo, retorno de Cristo, ressurreição dos mortos, ressurreição da carne, juízo universal. (CHEMELLO, 2018. Grifo nosso)

A partir disso já temos uma resposta: para os estudiosos os temas da morte e pós-morte, da consumação do mundo e da parusia (o retorno de Cristo), são temas da escatologia. E com isso retornamos à nossa questão, a qual, podemos dizer, apresenta-se a nós como um paradoxo: ao estudar o fim de tudo, significa estudar a conclusão de todas as coisas? E se isso é assim, significa dizer que depois desse “fim” não restará mais nada? Ou, se restará o convívio com Deus, como é a proposta dos especialistas, então esse fim não é definitivo? Sendo assim, não será o fim de tudo!

Esse fim, na realidade é aquilo que podemos denominar de transformação. A escatologia, portanto, não se dedica à entender o fim (como ponto final), mas a mudança; a transformação das realidades como as conhecemos para uma outra dimensão de realidade, a respeito da qual nada sabemos, nem “olho algum jamais viu” (1Cor. 2,9), mas que contemplamos com os olhos da fé.

O fim, a que se dedicam os estudiosos da escatologia, pode ser denominado de conclusão, ponto de chegada de uma processo de transição. O que sobra, portanto, depois da consumação, é a conclusão. Não se está falando em ponto final, mas em chegada a um objetivo. Esse ponto de chegada, esse objetivo ou essa conclusão, passará a ser a realidade existente após a consumação. Não se está falando, dessa forma, sobre o fim de tudo, mas das transformações que culminarão na construção de uma realidade transformada. O fim definitivo é a recriação de uma nova realidade de completa ausência de Deus ou o definitivo convívio com o criador (na teologia tradicional: o paraíso e o inferno).

Entre os irmãos plenamente instruídos, de certo, falamos de sabedoria, não porém a sabedoria deste mundo, nem a sabedoria dos poderosos deste mundo, fadados a desaparecerem. Falamos da misteriosa sabedoria de Deus, a sabedoria escondida que, desde a eternidade, Deus destinou para nossa glória. Nenhum dos poderosos deste mundo a conheceu. Pois, se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória. Mas, como está escrito, “o que Deus preparou para os que o amam é algo que os olhos jamais viram, nem os ouvidos ouviram, nem coração algum jamais pressentiu”. (1Cor. 2,6-9. Grifo nosso)

Nas conclusões do Vaticano II, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS), no número 39 apresenta o seguinte comentário, frisando a posição dos padres conciliares a respeito dessa transformação:

Ignoramos o tempo em que a terra e a humanidade atingirão a sua plenitude, e não sabemos que transformação sofrerá o universo. Porque a figura deste mundo, deformada pelo pecado, passa certamente, mas Deus ensina-nos que se prepara uma nova habitação e uma nova terra, na qual reina a justiça e cuja felicidade satisfará e superará todos os desejos de paz que se levantam no coração dos homens. (GS. 39)

Ainda a esse respeito, Murad (2015), comentando os documentos conciliares refere-se à evolução e transfiguração pela qual passarão todas as realidades, dizendo que: “Todo o processo de evolução da natureza e da atuação humana para realizar o bem na história será purificado, iluminado e transfigurado.” (Murad, 2015, p. 14).

Alguém poderia argumentar, dizendo que a ação salvífica de Cristo já foi definitiva e que, portanto, não seria necessária essa transição definitiva, escatológica. De fato a ação de Jesus Cristo, sua encarnação, sua vida ao lado dos marginalizados e sua Paixão, foram – e são – atos definitivos. Entretanto o ser humana e todo o cosmo, encontram-se em uma dimensão espaço temporais que depende do processo de transição. Da mesma forma que Jesus de Nazaré precisou passar ela Paixão para voltar ao Pai, toda a criação também depende dessa transição. É o parto da natureza (Rm. 8,22) produzindo o mundo novo.

Sem isso, a obra divina, embora resplandeça a presença de Deus, permanece dependendo dessa consumação para “reencontrar” o criador, “elevando-se” à sua presença, como afirma Murad (2015, p. 14): “Na linha da tensão escatológica, a consumação dos tempos é um “reencontro” e um ato salvador de Deus, assumindo, elevando e transformando as ações e os valores humanos.

Tendo isso presente, podemos redimensionar a ideia comum a respeito da morte. Podemos entender, também, o anseio paulino, segundo o qual “morrer é lucro” (Fl, 1,21). Para a maioria das pessoas a morte é algo assustador, um salto para o desconhecido e está envolvido no medo do porvir. Entretanto, do ponto de vista cristão e com os olhos da fé a morte já não assusta, pois ela não mais representa um ponto de interrogação, uma angústia, uma incerteza. Nessa perspectiva, a morte é o ponto de entrada para o convívio com Deus. Não é um ponto final, mas um ponto de transição e de imersão numa realidade plena.

Então porque as pessoas temem a morte? Claro que cada um poderia elencar uma série de respostas, mas se as analisássemos perceberíamos que todas convergem para o mesmo ponto: o desconhecido. A incerteza em relação ao desconhecido. Claro que ao cristão não é aconselhável a vanglória de dizer “já estou salvo”, mas também não tem cabimento o medo, pois ele expressa uma profunda desconfiança em relação ao que nos aguarda. E se não há confiança na promessa de Jesus é porque ainda se está vivendo um estágio de fé ainda racional: pode até existir uma vivência eclesial, mas não existe, ainda, uma entrega amorosa ao plano divino ao ponto de dizer, como Paulo, “já não sou eu quem vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). A morte, como ponto de encontro com Deus, não deveria ser temida, mas um momento a ser desejado.

Algo semelhante podemos dizer a respeito do mundo e o universo. Da mesma forma que o ser humano tende para o absoluto de Deus, a natureza também, como criação divina, tende ao encontro definitivo com o criador.

Partimos da afirmação de que tudo que existe passou a existir num “momento” determinado; e um vez que essas realidades não existiam antes e passaram a existir, dizemos que foram criadas. Da não existência passaram a existir e uma vez que tiveram um início, por terem sido criadas, terão seu ocaso, seu ponto final. Isso porque tudo aquilo que tem um início é finito e, consequentemente, terá um fim. E nisso manifesta-se algo maravilhoso: se o ser humano, criatura divina, tende para Deus, ou seja, almeja o encontro com o criador; a finalidade da vida humana é repousar em Deus. O mesmo se pode dizer do universo criado. Também o mundo espera seu encontro com o criador. Segundo Paulo (Rm 8,21) toda a “criação espera ser libertada” para se encontrar com seu destino.

E isso nos leva, novamente, ao artigo de Murad (2015), no qual menciona a proximidade das conclusões conciliares (Concilio Vaticano II) e a intuição de Teilhard de Chardin, sobre a amorização do universo, dizendo:

O que se leva desta vida? O que permanece? O amor e sua obra! Aqui ecoa uma bela intuição de Teilhard de Chardin: somos chamados por Deus para contribuir no processo de evolução e cristificação do universo, de ampliação e profundização do amor (amorização) (Murad, 2015, p. 13).

E, muito mais do que isso, se Deus ama suas criaturas humanas, ao ponto de enviar Jesus para resgatá-las, também ama suas outras criaturas: os seres vivos, a matéria orgânica e inorgânica e para tudo isso também planejou uma consumação. Ou seja: no final dos tempos tudo será transformado e esse processo é o objeto de estudo da escatologia: o processo de transformação, do homem e do mundo, como nos faz esperar o apóstolo Paulo, em sua exortação aos romanos (8, 18-23), ao dizer:

Eu penso que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que há de ser revelada em nós. De fato, toda a criação espera ansiosamente a revelação dos filhos de Deus; pois a criação foi sujeita ao que é vão e ilusório, não por seu querer, mas por dependência daquele que a sujeitou. Também a própria criação espera ser libertada da escravidão da corrupção, em vista da liberdade que é a glória dos filhos de Deus. Com efeito, sabemos que toda a criação, até o presente, está gemendo como que em dores de parto, e não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos em nosso íntimo, esperando a condição filial, a redenção de nosso corpo.

A vida após a vida terrestre, essa é a temática da Escatologia. E, pode-se dizer mais: à escatologia cabe a discussão a respeito de como se pode imaginar que serão os processos de transição da condição atual para a condição de definitivo convívio com Deus. Não como responta para o definitivo momento, mas como alimento da esperança na vida plena.

 

Referências

CHEMELLO, Oscar Roberto Curso de Teologia para Leigos: Escatologia. Catedral Santa Teresa, Caxias do Sul. 2018

CNBB. Biblia sagrada. Disponível em: https://www.cnbb.org.br/downloads/ acesso em 20/10/2018

MURAD, Afonso. O Vaticano II e a Escatologia Cristã: Ensaio a partir de leitura teológico-pastoral da Gaudium et Spes. in. Cadernos Teologia Pública. Ano XII – Vol. 12 – No 100 – 2015.

 

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura – RO – neri.pcar@gmail.com