Epístola aos Gálatas e a missiva Feliz

Por Feliz | 07/04/2015 | Contos

Perguntou timidamente aonde acontecia a primeira aula inaugural para a recepcionista do local. Dada as indicações, prosseguiu curiosa. Ao abrir uma imensa e pesada porta antiga, deparou-se com uma multidão de homens vestidos com hábitos pretos. Sentiu-se intimidada.

  • Não posso acreditar em uma coisa dessas! Em que século essas pessoas vivem? Não imaginava que ainda existiam tantos religiosos assim.

Percebi imediatamente que eu era um E.T. A única jovem do local, das poucas mulheres ali presentes, grande parte era composta de freiras. Olhei bem ao redor e comecei a perceber que além de todos aqueles homens com hábitos pretos, haviam outros, com vestimentas marrons, brancas e uma única figura estranha, com uma túnica vermelha. Pensei no quão esquisito aquilo era, mas percebi também que, de alguma forma, poderia modificar meu modo de ver o mundo. Na frente, o comunicador, um senhor de muita idade, debilitado, em uma cadeira de rodas, seu corpo pendia para o lado direito. Em sua mesa havia uma placa: Dom Fellipo Rizzotto. Ele era reverenciado por todos, logo quando iniciou seu discurso todos ficaram de pé. A aula inaugural recebia o título de “Epístola aos Gálatas”. Tentei me ater às questões que ali eram apresentadas, mas não consegui. Todo o ambiente era muito convidativo aos meus devaneios. Analisei cada imagem, observei os gestos das pessoas e seus os círculos de amizades. Não conseguia me concentra. Me senti menos culpada quando percebi que alguns homens de preto também não se importavam com o que o homem de preto mor estava falando. Eles riam baixinho, faziam comentários, escreviam algumas coisas no papel, mas acima de tudo, conversavam. Ao voltar meus olhos para o Dom homem de preto mor, aprendo que a tal carta aos Gálatas era direcionada ao povo da Galácia, território atualmente conhecido como Turquia. Ele começou a falar sobre a história do texto que foi escrito pelo tal apóstolo Paulo para a população do local.

  • Se Paulo fosse nosso contemporâneo, enquadraria seu discurso no fanatismo religioso. Mas eu não sabia nada das cartas bíblicas, não sabia nada da Galácia e muito menos de Paulo até aquele momento.

A voz do pobre ancião começava a embalar meu sono, percebi que se focasse em seu discurso acabaria por dormir no local. Olhei para uma janela que estava situada a minha esquerda, com uma vista para um organizado e modesto jardim. Avistei um santo. Me estiquei toda para conseguir ler o que estava escrito em sua placa. Era latim, reconheci a palavra “civis”. O santo era feio, coitado. Tinha uma outra inscrição em que podia-se ler: São Bento. Óbvio! Eu estava em um ambiente religioso, em uma faculdade religiosa, Beneditina, em algum momento bentinho ia ter que aparecer. Reconhecia os beneditinos porque quando fui entrevistada no processo seletivo da instituição só haviam eles. Mas na aula inaugural, outros homens de preto haviam aparecido, algumas roupas com cortes diferentes de capuz. Passei boa parte da palestra tentando adivinhar a qual ordem religiosa eles pertenciam. Era impossível saber. Meu conhecimento sobre o catolicismo era muito limitado. Em alguns momentos achava que a experiência de estudar ali seria maravilhosa, já que ao final do curso saberia identificar todas as ordens, saberia de cor todas as orações, falaria grego e latim fluentemente, seria especialista em história de qualquer coisa. Daria palestras sobre todas as epístolas já escritas na bíblia, de quebra, conheceria vastamente a religião judaica e falaria também hebraico. Não importava o fato de eu não ter crença religiosa, não importava com que tipo de coisa eu trabalharia, se teria emprego, se conseguiria sobreviver. A questão é que eu saberia. Aos dezoito anos tudo é possível. Quando meus olhos finalmente repousaram novamente na fala de Dom Fellipo ele dizia:

  • Paulo tinha como objetivo salvar a Igreja dos impostores, dos fajutos, dos que queriam tornar Moisés maior do que Cristo.

    Aquilo era enfadonho. Olhando ao redor percebi que D. Felippo estava sozinho. A freira gordinha que sentava próximo a mim, lutava contra o sono. Os que não dormiam, conversavam, os que não dormiam ou conversavam, liam. Percebi que o discurso do religioso estava pautado na busca da identidade religiosa daquele momento histórico do cristianismo. O tal apóstolo Paulo queria romper como o judaísmo e assinalar outra perspectiva e interpretação teológica, ele estava tentando afirmar uma nova identidade para aquela concepção religiosa. Freis, padres e freiras ali presentes deveriam buscar no discurso do ancião uma metáfora para aquele tipo de vida que buscaram percorrer. Mas a dispersão era maior e se fazia muito mais presente.

Distraída com a reflexão sobre a vida de clausura e a chatice do monastério, uma pessoa encosta no meu ombro e sorridente me entrega uma folha. Eu, sorrio de volta. Pego a folha espantada, mas ao analisar superficialmente vi que se tratava de uma simples folha de presença e nada mais. Assinei. Mas notei que não havia analisado bem o grupo de pessoas que estava atrás de mim. Disfarcei. Troquei de lugar. Reparei. Eram jovens! Da minha idade. Fiquei feliz, fiquei triste. Fiquei chocada. Também usavam preto. Cabelos repartidos, magros. Carregavam um terço enorme na cintura. Nunca tinha visto algo do tipo. Na minha precária concepção, jovens não seguiam a vida religiosa. Meus parâmetros eram limitados, padres eram sempre velhos e jovens não levavam religião a sério. Olhei para o rapaz que me deu a folha. Ele era baixo, tinha um rosto bonito, estava com sono, cochilava, brigava com o sono. Atravessei todo o meu corredor de cadeiras e novamente troquei de lugar. Algumas pessoas comentaram, olharam para mim como se eu fosse uma sem noção. E eu era mesmo. Sentei próxima ao rapaz. Perguntei a hora bem baixinho.

  • Olá! Será que você pode me informar as horas? Tenho a impressão de estar aqui há umas três horas, já.

  • Oi, poxa, não tenho relógio. Meu grupo chegou bem atrasado, mas acho que não deve demorar muito. Dom Fellipo não pode mais se desgastar.

  • Ahh! É verdade. Obrigada.

    Fiquei sem graça pela minha atitude. Depois o ignorei completamente. Pensei que aquilo ali estava demorando demasiadamente. Bufei e me inclinei novamente ao discurso de D. Fellipo. Ele agora fala da bondade e da misericórdia de Paulo. Lia trechos da carta e falava também da relevância do texto para a formação da identidade católica. Eu pensei naquele momento sobre a importância do ato que iniciava minha nova vida adulta e acadêmica, de certa forma. Saía da adolescência e dava uma importante passo rumo a minha formação. Pessoas novas, lugar novo, novos objetivos e metas. Nutria certa antipatia pela Igreja, mas tinha conseguido uma bolsa, estava ciente dos desafios. Temi não conseguir concluir o curso, e de fato não o terminei. As aventuras valeram mais do que o diploma. A epístola transformou-se em missiva Feliz.

    Ao término da aula inaugural, todos os alunos receberam o manual de conduta da instituição. Na primeira página lia-se: proibido trajar shorts ou qualquer outra vestimenta acima do joelho. Fica terminantemente proibido entrar na faculdade de chinelo. Era a única de chinelos, camiseta e short. Desapontada com a informação lida, sai rápido e esbarra em um dos religiosos no corredor. O reconhece do momento anterior, cumprimenta-o e sorri ternamente.