Epifania

Por Gabriel Villas Boas | 30/06/2008 | Contos

 

Acho que vou sair esta noite. To precisando encher a cara. Talvez nunca tenha precisado tanto disso.

- E então José – eu digo ao telefone. – Vamos tomar umas essa noite?

- Pode crer! – ele responde como se tivesse rezado por este convite.

- Às onze no bar do Oblíquo então. Fechou?

- Fechou.

Cheguei ao centro uns trinta minutos antes e comprei uma garrafa de vinho pra ficar bebericando até meu amigo chegar. Naquele momento sozinho tive muitas visões. Sabe, eu, minha garrafa de vinho e a paisagem noturna do centro histórico de Curitiba.

Quando se perde as rédeas da própria vida é como se afundar num poço cheio de merda. E frente a isso, tudo o que consigo fazer é poetizar, decadentemente, sobre a vida.

Tem gente que me pergunta por que eu sempre desconfio quando as coisas começam a dar certo para mim. E eu acho que a resposta é bem simples: nunca vi nada de especial concretizado em minha vida.

A cagada é que dessa vez apostei alto de mais. Quando comecei a ver o sucesso se instalar em certas áreas de minha vida, fui atrás de mais. Sempre a ganância. E agora tudo ruiu.

Imagino que o leitor esteja curioso para saber o que aconteceu. Sinto informar que continuará. Pois não é esse o objetivo deste texto.

Sabe, eu sempre quis falar do meu comportamento e minhas reflexões quando, de repente, tudo é uma grande merda. Porém, devo informar desde já que sou muito trivial frente a situações como essa. Não consigo ser, mas deveria e quem sabe um dia serei, muito produtivo quando o cor-de-rosa é trocado pelo cinza escuro.

Mas por enquanto... Dane-se. Só quero escrever sobre o que nunca consegui escrever: minhas revoltas e seus estopins.



Então acontece mais ou menos assim: quando almejo muito alguma coisa eu a estudo de cabo a rabo, procurando principalmente os contratempos. Mas no final eu acabo ignorando os contratempos (quando vejo alguma chance de fazer dar certo).

Na maioria das vezes eu até consigo sentir o gostinho da vitória. Mas, como o leitor deve imaginar, acaba sendo apenas um gostinho mesmo.

Então tudo acaba, eu tenho uma ligeira atitude do tipo "sou brasileiro e não desisto nunca", e logo depois estou abraçado com uma garrafa de uísque.

Mas quando o baque passa, eu começo a poetizar, loucamente, sobre a futilidade humana. Sobre como esse excesso de imbecis me atormenta. E sobre como é mais fácil se tornar humano longe dos humanos.


É gente devorando gente. Quem sou eu para negar?



Como dessa vez a queda foi mais alta, depois que o tal baque passou resolvi me embebedar com meu amigo e filosofar sobre toda essa porcaria.

Seja como for, devo acrescentar aqui porque escolhi o José para tal missão.

José é um péssimo ouvinte. Na verdade, ele até escuta, mas não se interessa por porra nenhuma. E é essa a magia: posso falar e filosofar e poetizar a vontade que ele não faz a mínima questão de interferir ou de dar sua opinião. Ou mesmo de me aconselhar. O que o torna o ouvinte perfeito para o meu monólogo.

A essência de se contar algo (ou escrever, como estou fazendo agora), é se livrar daquilo que não tem mais serventia. Então, eu pensei em sentar-me com o José na frente de algum lugar cheio de gente e soltar os demônios. Falar bem alto como que para todo mundo ouvir. Sempre imaginei que ao fazer tal coisa (o mesmo vale para o ato de escrever), eu estaria transformando aquilo que me aflige em algo não mais meu.

Seja como for, quando eu disse que frente a situações como essa tudo o que eu conseguia fazer é poetizar sobre a vida (e suas desgraças), esqueci de dizer que acabo sempre guardando tudo para mim. E naqueles trinta minutos que fiquei sozinho esperando o José, tive visões de todos os meus fracassos, vindo em minha direção como um arrastão, tão numeroso que acabou por me derrubar. E então resolvi que deveria fazer muito mais do que um simples monólogo para meu ouvinte indiferente. Resolvi que já era hora de me livrar de todo o lixo que acumulei nesses longos anos.

E agora estou aqui. Escrevendo para quem quiser ler.


É gente devorando gente. Quem sou eu para negar?



Minhas revoltas vão de simplórios sentimentos de raiva pela raça humana a desejos de explodi-la. Parece exagero, eu sei. E na verdade é. Afinal, eu nunca explodiria ninguém. Mas o que eu quero dizer é que a maioria das pessoas não sabe o seu lugar, e isso atrapalha, e muito, o fluxo das coisas. Há pessoas que simplesmente não deviam estar aqui.

Quando se acompanha o comportamento dessa violenta massa, entende-se o porquê do mau funcionamento de quase tudo.

Começa com cada um querendo tirar o seu da reta (no melhor estilo "sinto muito, mas não posso fazer nada") e termina com um consecutivo atropelamento resultando na desgraça do mais fraco (que pode ser também o menos ambicioso) e o triunfo do mais forte (que normalmente também é o mais porco de espírito).

Não entendo nada de ambição e, quando o bicho pega desse jeito, imagino-me vivendo em uma fazenda longe de tudo. Confesso que sempre adorei a cidade e sua paisagem urbana, mas as pessoas a estragam. Quando estou andando pelas ruas, freqüentemente tenho vontade de vomitar frente à mesquinhez (seja nas conversas, seja nas atitudes ou mesmo na cara) dos que me cercam.

E o que eu sinto?

Sinto, cada vez mais, que não há lugar para mim aqui. Tenho, cada vez menos, esperanças de que a vida, e toda concepção a respeito dela, possa melhorar.


É gente devorando gente. Quem sou eu para negar?



23h12.

- Dae Jonas – diz José ao me ver. – Chegou faz tempo?

- Pode crê. Mas como você pode ver, arrumei companhia – eu disse me referindo à garrafa de vinho.

Eu então a passei para ele, que deu um longo gole e então perguntou:

- Vamos tomar aqui fora ou lá dentro?

- Aqui fora. O movimento ta mais interessante aqui.

- Beleza. Vou lá buscar uma bera então.

Então, pela primeira vez naquela noite, eu olhei para as pessoas ao redor. E não me pareciam tão ameaçadoras. Fiquei as observando por um tempo e não sabia se devia amá-las ou odiá-las. Mas de alguma forma, cada uma me parecia um livro aberto. Tão expostas e tão confiantes.

- Porra, aumentou o preço da bera de volta! – diz José ao voltar com a garrafa numa mão e os copos na outra.

- Acho que é por causa do inverno.

- É. Pode ser.

Sentamos e bebemos, sem olhar um para o outro. Ambos estávamos interessados em observar os "grupinhos" de pessoas. E então, depois de um tempo de silêncio, eu disse:

- Veja como são todos parecidos. Cada grupinho tem quase o mesmo tanto de integrantes. Eu acho que deve haver algum tipo de código de ética entre eles. Sabe, tipo "já temos um gordinho, não rola deixar outro entrar". Acho que seria legal escrever sobre eles.

- Só – disse José. Como eu disse, o ouvinte perfeito.