Epifania
Por Phelipe Fabres | 07/03/2010 | ContosSentado... Com as costas levemente tortas em uma posição típica de alguém
já com aquela milhagem nas pernas, o peso um pouco acima do normal também contribuía
para a erronia posição em que ele se encontrava e, diga-se de passagem, para a
dor nas costas que por vários meses ele persiste em não levar em conta que o incomoda.
Mas ali naquele momento seu corpo é um mero coadjuvante de um exercício de
concentração singular pelo qual ele estava passando: "Ser ou não ser, eis
a questão..."! Por mais que o texto inteiro do monólogo do príncipe
dinamarquês estivesse bem ali na frente de seus olhos por algum motivo obtuso
ele só fixara seu angulo de visão nessa que talvez seja uma das mais conhecidas
frases do grande dramaturgo inglês. Talvez por ser novo naquele ambiente
desconcertante, mas para seus pensamentos não conseguir visualizar nada além
daquela frase era ao mesmo tempo perturbador e intrigante: "A que ponto chegou!",
era o que mais lhe assustava.
Apenas um mês atrás ele era apenas mais um em meio a vários jovens recém
formados com muitos sonhos, pouca experiência e uma péssima moradia. Depois de
partir do interior em direção ao novo mundo que era a capital do estado cinco
anos antes era muito complicado pensar em voltar sem conseguir a fortuna sonhada
por seus familiares quando fizeram os diversos sacrifícios em prol de sua
educação, por isso nesse momento dormir era o único privilégio que ele poderia
merecer e o destino também não ajudara muito. Em seu "apartamento", a
cama era o que mais perto se aproximava de um móvel no sentido clássico, do
resto apenas uma mesa velha recém ganhada do vizinho que havia se mudado e uma
geladeira velha que fora um presente de sua avó. Mas pra ele não importava,
após cinco longos meses de recém formado em ciências contábeis seu destino
estava destinado a mudar o mundo tão instável e cruel do mercado de trabalho
seria dominado, pois ele acabara de ser convocado para ser um "guerreiro
do estado", e que venha a estabilidade!
Um mês! Um aparelho de TV de 21 polegadas paga à vista; Um computador
financiado nas Casas Bahia; Uma mesa de mogno paga à vista; 6 quilos a mais
devido à nova realidade de sua geladeira; Um mês! E a decepção de estar de
braços atados e ser refém de suas escolhas. Chefe de equipamentos e serviços de
apoio da prefeitura local! "Que cargo!", ele pensava ao assumir. No
entanto descobria com o passar dos dias que era apenas o encarregado de compara
matéria de limpeza, copos descartáveis, papel higiênico, água mineral e o café.
"Comandava" uma senhora que apenas seguia fazendo o que sempre fazia
e mais nada. Como era chefe, possuía uma mesa com computador ao lado do
almoxarifado e um e-mail como todo funcionário. E do sonho de ser chefe apenas
o posto.
Mas ali naquele momento ele estava tentando entender porque ele só conseguia se
concentrar na frase de Hamlet. Procurando por explicações sobre o monólogo da
tragédia ele encontrava desde interpretações religiosas até filosóficas, mas
ele não queria interpretar o monólogo todo só a sua frase mais célebre até que a
Wikipédia lhe salvou: "Os críticos acreditam que Hamlet usa
"ser" para aludir à vida e à ação, e "não ser" aludindo
para a morte e a inércia.", agora ou ele estaria vivo ou morto?! A dúvida
consumia uma hora de sua tarde (não que ela tenha sido agitada) e a não
capacidade de organizar o "ser" ou "não ser" lhe consumia
por dentro a ponto de lhe proporcionar uma rara dor de cabeça.
O dia ainda teimava em não passar quando pelo corredor que dava acesso a sua
mesa e sua "anti-sala" a mulher loira que era a secretária de alguém
que ele nunca lembrava quem era estava se aproximando com um maço de folhas de
sufite de tamanho A4 e prontamente entregou uma cópia a ele que no mesmo
momento parecia não acreditar naquilo que lia: ... "fazer um
pronunciamento para todos os membros da casa", palavras um pouco dispersas
em um folheto que mais parecia ser um anuncio de parques de diversões. Suntuosamente
ele teve um assombro pensante e em uma fração de segundos ele sentiu um êxtase
como a muito não se lembrara: era a epifania, talvez ele seja o santo do altar!
Ao desembarcar de mais um dia em suas acomodações ele parecia não acreditar no
acabava de pensar, "Um discurso! Mas eu nem falo direito quando meus pais
estão reunidos, imagina para esse monte de senhores que mal me conhecem!",
no mesmo momento quando pensava em desistir de sua idéia maluca a alusão do
pensamento fantasioso que tivera naquela tarde de uma maneira estranha o
deixava com vontade de encarar o desafio. Pensando nisso ele apenas sentou na
sua cadeira, pegou a caneta que estava ao lado no monitor do seu PC e atrás do
cartaz começou a dedilhar as palavras em um tom que jamais seus dedos tinham
recitado e como se estivesse extraindo uma anomalia tirou todos os pedaços até
que nada mais fizesse parte de sua cabeça: agora ele era!
No dia seguinte sem pestanejar rodou toda a prefeitura a procura daquela
mulher. Depois de alguns minutos imaginou que àquela hora da manha ela só
poderia estar em um lugar, à cafeteria. Ao avista - lá degustando um café, sem
o menor alarde dirigiu-se até a garrafa e serviu meio copo para ele. Agia como
se aquela fosse a sua rotina e mais naturalmente ainda perguntou:
- Está doce hoje, né?
- Aham!... Ela respondeu e ficou com cara de que nunca tinha
visto aquele rapaz. No entanto ele insistiu:
- Desculpa moça, mas você é que está organizando esse
discurso? E mostrou o folheto para ela.
- Pois é, mas parece que não vai acontecer, disse já se
lembrando do cara que ficava na mesa ao lado do almoxarifado.
- Muita gente é?
- Nada! Não apareceu ninguém! E como o dia da "Conscientização
da questão ambiental no trabalho" é hoje acho que não vai dar tempo... é
uma pena por que até o prefeito disse que iria comparecer.
Subitamente ele entendeu sua "visão".
- Bom eu escrevi algo será que ainda consigo mostrar pelo
menos pra você ver?, Disse ele com uma rara confiança em seu rosto.
- Você é... humm...olha normalmente a gente não
permite que pessoas com menos de 1 ano de órgão realize uma "tarefa"
dessa ainda mais com a presença do prefeito mas nesse caso o tema é atual então
acho que você que começou agora deve ter mais experiência com esse negocio de
meio ambiente que os outros aqui, considere lido e aprovado!
- Mas.
- Esteja aqui às 8 horas em ponto!
- Ok!
As horas subseqüentes pareciam que voavam e ele cada vez mais se entusiasmava
com aquilo que poderia ser o fim de suas chances de agraciar oportunidades caso
falasse besteira, mas para sua cabeça era apenas "ser ou não ser".
Na hora marcada o mini teatro da prefeitura estava cheio em todos os seus 15
lugares basicamente funcionários conhecidos como do "baixo escalão": secretários,
faxineiros, vigias e o representante do prefeito que apenas fuçava no seu
smartphone. Um púlpito a frente deles esperava o homem do discurso que em
poucos segundos atravessou o teatro e sem que ninguém percebesse pegara o
microfone e começava o discurso sem pausas:
"Bom dia. Ontem no fim da tarde recebi a visita de uma
moça loira com um cartaz que indicava que aqui nessa manha haveria a
apresentação de um discurso realizado por um funcionário da casa que se
interessasse pelo tema Conscientização da questão ambiental no trabalho. Eu
naquele momento fiquei muito tentado a participar, pois estava muito cansado de
cuidar do almoxarifado e afinal pra que alguém precisa cuidar dele? Será que
ninguém pode entrar la e pegar o que necessita? O certo é que desde que comecei
nesse emprego não faço absolutamente nada! E outras pessoas também ficam aqui
só tomando café e aproveitando o ar condicionado. Afinal pra que contratar
tanta gente sem necessidade? pra que inflar um lugar já estarrecido de gente?
são respostas que ainda não consegui explicação. Pois então que tive uma
epifania: Vi um ser iluminado que só me mandava ficar sem fazer nada e esse ser
pra mim e para os outros que a ele se curvavam tinha poderes intermináveis: era
um deus! Bom eu felizmente não vou esperar ele se levantar ao meu céu, eu me
demito! "
Quando levantou sua cabeça, todos estavam ali em estado de choque após aquelas
palavras e ao mesmo tempo parecia não entender nada. Ele então pega o microfone
de novo:
"E caso estejam mesmo preocupados com a questão
ambiental no trabalho, por favor, vamos começar uma campanha: Tragam sua caneca
de casa!
Eu tenho certeza que salvarão muitas arvores, o que já é um começo! Até um
dia!”
Ele atravessou o teatro e foi pra sua casa no piloto automático pela ultima
vez, pois agora tinha certeza que o êxtase de controlar seu próprio caminho e
se havia algo que ele não tinha dúvida era que não havia mais "ser ou não
ser", ele era por aqueles segundos a solução Hamletiana.