Entrevista com o Vampiro: Eros e Tânatos
Por Adriana Tinoco de vasconcelos | 10/04/2010 | LiteraturaO pequeno resumo acerca de Lord Byron, que acompanha Fragmentos de um Relato, na coletânea de contos O Vampiro antes de Drácula, define o herói byroniano como dono de:
"uma personalidade bem característica, idealizada cheia de falhas, que só fazem aumentar seu fascínio. Tem um talento imenso e comportamento apaixonado, e, ao mesmo tempo, é um rebelde que despreza as instituições sociais, a posição social e os títulos. Arrogante ou excessivamente confiante, marcado por amores frustrados, esconde um passado obscuro ou sombrio. Todos esses traços levam a um comportamento autodestrutivo" (p. 89)
Essa descrição dos protagonistas das histórias de Lord Byron, contudo, poderia perfeitamente ser também a descrição de Lestat de Lioncourt, amoral criação da norte-americana Anne Rice, em Entrevista com o Vampiro.
O romance de Anne Rice é narrado pelo vampiro Louis Pointe du Lac, que conta sua história para o jovem repórter, Daniel. Ex-proprietário rural de Nova Orleans, Louis foi vampirizado em finais do século XVIII por Lestat.
Os vampiros de Anne Rice trazem muitas diferenças com relação ao vampiro folclórico e ao vampiro que tradicionalmente surge na literatura, por exemplo, eles não têm medo de crucifixos e não se transformam em animais. Contudo, tas personagens se aproximam destes vampiros anteriores de outras maneiras.
Sentindo-se culpado pela morte de seu irmão, que caíra de uma escadaria após uma violenta discussão com Louis, este passa a viver "como um homem que queria morrer, mas não tinha coragem de fazê-lo sozinho "(p. 18). Dessa forma, temos a antiga temática do convite. Em Christabel de Coleridge, por exemplo, a misteriosa Geraldine chega a desfalecer à porta do castelo, sendo necessário que a protagonista que da nome a história a carregue para dentro. Entretanto, em Entrevista com o Vampiro, o convite não aparece como permissão para adentrar determinado lugar, mas para tomar esta vida.
Diferentemente de Drácula, de Bram Stoker, em que o vampiro aparece na narrativa de forma distante, como a encarnação do mal e não temos contato com seus reais desejos e sentimentos, um dos pontos que mais chama a atenção em Entrevista com o Vampiro, é justamente o relacionamento entre Lestat e Louis.
Inicialmente, tal relacionamento remete aos contos O Vampiro, de Polidori e Fragmento de um Relato, de Lord Byron, por se tratar do tema da amizade, com nuances homoeróticas. As atenções de Lord Ruthwen (O Vampiro) eDarvell (Fragmento de Um Relato) provocam em Aubreye no narrador byroniano verdadeiro deleite. Contudo, nesses dois contos, a amizade é uma promessa não cumprida. Os vampiros mantêm um distanciamento e dão um fim ao relacionamento quando bem desejam.
No caso do conto de Polidori há até certo aspecto moralizante, já que o Lord, o qual a sociedade já apontava como dono de um caráter nefasto, se revela maligno, a personificação do mal oculto, que contamina e perverte, tanto que acaba matando a amada e a irmã de Aubrey, além de levar este a um estado delirante, sem que ninguém acredite em sua história.
Em Entrevista com o Vampiro, Lestat também mantém-se fechado à curiosidade de Louis e nada revela sobre seu passado ou as origens de sua espécie, levando Louis a crer que ele as desconhecia, suposição que se mostra equivocada nos romances subseqüentes. Entretanto, a despeito deste aparente distanciamento, apesar de guardar semelhanças com os vampiros de Byron e Polidori, pode-se perceber que o relacionamento entre Louis e Lestat acaba por remeter muito mais a Carmilla, conto de Sheridan Le Fanu, com apenas uma mudança do gênero feminino para o masculino.
Em Carmilla, a personagem título, uma vampira, não exita em declarar sua paixão para a perplexa Laura. Já em Entrevista com o Vampiro, Louis alega que o interesse de Lestat estava em suas terras (explicação não muito convincente, já que Lestat poderia certamente tomar as terras sem que fosse necessário tornar Louis seu companheiro imortal), mas em O Vampiro Lestat, romance em que este narra sua própria versão da história, além de suas origens, Lestat afirma estar apaixonado por Louis, principalmente por sua semelhança com Nicolas, seu amigo durante sua vida mortal:
Claro que o odiava pelas mentiras que contara sobre mim. Mas o amor era muito maior que o ódio. (p. 21) Pouco depois de chegar à colônia, me apaixonei perdidamente por Louis, um jovem fazendeiro burguês de cabelos escuros, um modo de falar encantador e maneiras delicadas que, com seu cinismo e autodestrutividade, parecia o próprio gêmeo de Nicolas. Tinha a intensidade sombria de Nicki, sua rebeldia, sua capacidade atormentada de acreditar e não acreditar e de se entregar ao desespero. No entanto, Louis exercia um fascínio sobre mim muito mais poderoso do que aquele que sentira por Nicolas. Mesmo em seus momentos mais cruéis, Louis despertara ternura em mim, seduzindo-me com sua assombrosa dependência, sua fascinação por cada gesto meu e cada palavra que eu dizia. (631/632)
Semelhante também são as reações de Laura e Louis, um misto de deleite, surpresa e receio; uma confusão de sentimentos, que nenhum dos dois personagens consegue nomear. Laura não dá mostras se quer de ter compreendido a natureza de seu relacionamento com Carmilla, o mesmo se dá com Louis, seus sentimentos em relação à Lestat são confusos e contraditórios:
"Deite-me voltado para ele, extremamente confuso com a ausência de medo e sentindo um mal-estar por estar tão próximo dele, belo e intrigante como era." (p. 31)
Lestat, pode-se dizer, é a personificação do Sublime, enquanto o Belo é aquilo que encanta no limite da superfície, aparência, forma; é da ordem de um prazer agradável, harmônico; o sublime é associado à grandiosidade, ao assombroso, aquilo que provoca comoção. O Sublime nada tem de harmonioso, agradável, ou mesmo racional, muito pelo contrário, costuma despertar emoções conflitantes Prova disso, é que mesmo sob o olhar ressentido de Louis, as falhas no caráter de Lestat parecem aumentar seu magnetismo, afinal, mesmo este narrador que afirma o ódio por seu criador, não consegue ocultar seu fascínio.
O reflexo destes sentimentos conflitantes está na criação de Cláudia, a pequena criança que Louis, em um momento de fraqueza, ataca e que, Lestat, vampiriza, para torturar Louis ou simplesmente para impedir que este o deixasse. Inicialmente, Cláudia vive muito bem com seus dois pais, mas quando sua mente amadurece e seu corpo permanece o de uma garotinha, ela torna-se amarga e, claramente apaixonada por Louis, volta seu rancor para Lestat. O ódio de Cláudia culmina com uma tentativa fracassada de eliminar Lestat, mas que dá a ela e Louis a oportunidade de escapar, iniciando uma viagem em busca de suas origens.
Em meio às atitudes drásticas de Cláudia, temos um Louis passivo; ele sabe que, para que conseguissem partir, aquilo seria necessário, por isso não impede Cláudia, mas não consegue fazê-lo e não participa da ação.
Os conflitos entre Lestat e Louis se dão por conta das diferenças de personalidade e na maneira de enxergar o mundo. Louis não aceita sua natureza, que o obriga a matar para sobreviver, sofre por cada vitima, enquanto Lestat não é atingido por nenhum peso em sua consciência. Contudo, não se trata de frieza, como julga Louis. Para Lestat o ato de matar, se assemelha ao ato sexual; ele vigia os passos de sua vitima por vários dias, como se as cortejasse, para só depois atacá-las. Lestat não sente qualquer necessidade de definir o que é o Bem e o que é o Mal, como um predador, aceita sua natureza e faz o que é preciso para sobreviver.
Lestat, mesmo ganhando nuances de vilão sob a descrição de Louis, está mais para um anti-herói. Embora cheio de defeitos, ele não pode ser descrito como maligno, como boa parte de seus antecessores na literatura. Na verdade, Lestat nasceu para quebrar regras.
Lestat é o sétimo filho do marquês d'Auvergne e nasceu em 1760, na França, em um castelo pertencente a seus antepassados. Apesar do título de nobreza, cresceu em uma pobreza relativa. Desde criança mostrava-se diferente, sendo sua relação com seu pai e irmãos eram tensas devido a diferenças irreconciliáveis, devido ao seu temperamento inquieto e sua inclinação para as artes, que a vida no campo jamais poderia satisfazer. Apenas sua mãe, Gabrielle parece compreendê-lo e sempre se esforça para fazer-lhe suas vontades, mesmo que batendo frente com o Marido. Tal relação, traz contornos edipianos, como aparece também em O Vampiro Lestat. Na passagem a seguir, ela, já transfigurada em vampira, fala dessa relação a Armand:
— Ah, mas você é tão simplista — ela disse. — Você vê, mas não vê. Quantos anos mortais você viveu? Lembra-se de alguma coisa desse tempo? O que você percebeu não é a verdadeira essência da paixão que sinto por meu filho. Eu o amo como jamais amei algum outro ser da criação. Em minha solidão, meu filho é tudo para mim. Como é que você não consegue interpretar aquilo que vê? (...) Eu e meu filho somos da mesma família de muitas maneiras. Em cinqüenta anos de vida, jamais conheci alguém tão forte quanto eu, exceto meu filho. (p. 336 )
Prova caráter atípico de Lestat, esta em como seu espírito de caçador já se manifestava antes mesmo que ele viesse a se tornar um vampiro. Sozinho, Lestat elimina uma matilha de lobos. Essa idéia é sintetizada por Nicolas, em O Vampiro Lestat:
"você pensa ser possíveis coisas que não são! Pelo menos, não para os outros. Como matar os lobos. [...] Lestat, você tem uma aura — ele disse. — E ela atrai todo mundo para você." (p. 65/66)
Após seu encontro com os lobos, ele conhece o jovem violinista Nicolas e acompanhado por ele, ruma para Paris, onde logo se torna ator em um teatro. Durante uma apresentação, ele atrai a atenção de um antigo vampiro chamado Magnus, que afirma que Lestat possui: "A luz do sol nos cabelos (sic) e o céu azul fixado para sempre em seus olhos". Raptado por Magnus, Lestat é transformado em vampiro contra sua vontade. Depois disso, seu criador comete o suicídio, atirando-se em uma pira, deixando Lestat para defender a si próprio, sem qualquer tipo de orientação. Lestat descobre que agora é herdeiro de uma inesgotável riqueza, e inicia uma viagem em busca de respostas. Dessa forma, temos uma característica típica do vampiro byroniano, o nomadismo. Ao contrario, do conde Drácula, por exemplo, que permanece fixado em sua terra natal, a Transilvânia, Lestat é um vampiro viajante. O normandismo, aliás, é uma das marcas dos vampiros de Anne Rice; em todos os seus romances, os personagens realizam longas viagens ao redor do mundo.
Em suas viagens, mais uma vez Lestat comprova que nasceu para quebrar regras. Ele encontra um grupo de vampiros maltrapilhos que habitam o cemitério Les Innocentes. A forma miserável como esses vampiros viviam e seu aspecto sujo e pobre, remonta aos vampiros folclóricos, selvagens e monstruosos. O grupo, liderado por Armand, o ataca por ele freqüentar os mesmos locais dos humanos, como se fosse um deles.
— Vocês desperdiçam seus dons! — eu disse. — E pior, desperdiçam sua imortalidade! Nada em todo o mundo é tão absurdo e contraditório, a não ser os mortais, do que viver sob o domínio das superstições do passado. (...)
— Será que vocês não têm astúcia? — perguntei para os outros, minha voz crescendo no silêncio. — Não têm nenhuma habilidade? Como é que eu, um órfão, encontrei tantas possibilidades, enquanto vocês, criados como foram por esses pais malignos... — interrompi para encarar o líder e o garoto furioso — ficam andando às cegas debaixo da terra?
— O poder de Satã vai fulminá-lo no inferno — o garoto urrou, juntando todas as forças que ainda lhe restavam.
— Você fica dizendo isso! — eu disse. — E continua sem acontecer nada, como todos podem ver!
Murmúrios altos de assentimento.
— E se realmente pensassem que aconteceria — eu disse — jamais se dariam ao trabalho de me trazer aqui. (p. 280)
Porém, suas palavras marcam o fim de tal grupo, que com a sua ajuda deixará as velhas crenças para trás e formará o Teatro dos Vampiros, que passam-se por atores. Este grupo, mais tarde (dentro da cronologia da história, antes na ordem dos livros), destruirá Cláudia e que serão incinerados pelo furioso Louis (exceto Armand).
No entanto, sempre inquieto, Lestat não permanece com eles e, recusando a oferta de amor por Armand, mais uma fez segue viagem, encontrado dessa vez, Marius, um antigo e poderoso vampiro, que conta-lhe os segredos das origens vampirescas, que remontam ao antigo Egito e lhe mostra Aqueles Que Devem Ser Guardados, Akasha e Enkil. Mais tarde, vai de Paris para a Luisiana, tornando-se o primeiro vampiro europeu em solo americano. Nas obras que seguem O Vampiro Lestat, o personagem título continua a realizar feitos incríveis. Primeiramente, ele é o único a escrever sua própria biografia, os demais sempre narram suas história a alguém. Lestat também chega liderar uma banda de Rock, trazendo pânico à comunidade vampírica ao divulgar pela mídia, dissimulados em letras de músicas, os de segredos de sua espécie (A Rainha dos Condenados). Ele ainda troca de corpo com um humano (A História do Ladrão de Corpos) e até faz uma visita ao Inferno (Memnoch).
Lestat, na verdade, é o mais poderoso vampiro deste universo criado por Rice. Vampirizado por Magnus, um vampiro antiqüíssimo, que nunca havia concedido seu sangue a ninguém, ainda bebe do sangue de Marius, outro vampiro poderosíssimo e de Akasha, a primeira vampira. Contudo, Lestat ama a humanidade e não consegue deixá-la de lado, seus desejos são extremamente mortais, como ele mesmo expõe em A Rainha dos Condenados:
Sou o Vampiro Lestat. Lembram-se de mim? O vampiro que se tornou um superastro do rock, aquele que escreveu a auto-biografia? Aquele de cabelos louros e olhos cinzentos, e o desejo insaciável de notoriedade e fama? Vocês se lembram. Eu queria ser um símbolo do mal num século brilhante que não tinha espaço para o mal literal que eu sou. Achei até que faria algum bem dessa maneira — bancando o demônio no palco pintado. (p. 2)
Além da vaidade, ele possui outra característica muito humana: não consegue viver só. Pouco após ser abandonado por seu criador, ele vampiriza sua mãe, Gabrielle, que sucumbia à tuberculose, e Nicolas. Mais tarde ainda, ele dará a eternidade a Louis e Cláudia. No entanto, sua família vampírica parece sempre fadada ao fracasso. Gabrielle, prefere a solidão; Nicolas enlouquece e atira-se ao fogo; a pequena Cláudia volta-se contra ele a ponto de tramar sua morte; por fim, seu relacionamento com Louis é marcado por desentendimentos e magoas.
De acordo com Baitalle (1987), os seres humanos são naturalmente e perpetuamente descontínuos:
"cada ser é distinto de todos os outros. Seu nascimento, sua morte e os acontecimentos de sua vida podem ter para os outros certo interesse: mas ele é o único diretamente interessado. Só ele nasce. Só ele morre. Entre um ser e outro há um abismo, uma descontinuidade." (p. 12)
Ainda segundo Baitalle, os homens buscam o fim desta descontinuidade através do sexo. Entre os vampiros, é no ato de beber o sangue que esta tentativa de completude ocorre. Em Entrevista com o Vampiro, Louis fala sobre o ato de matar:
"O ato de matar não é um ato comum (...). A gente não se satisfaz simplesmente com o sangue do outro (...). Certamente, trata-se do fato de experimentar a vida e , às vezes, a perda desta vida através do sangue, lentamente. É a continua repetição das sensações que tive ao perder a minha, ao sugar o sangue do pulso de Lestat e ao ouvir seu coração rufando junto ao meu" (p. 35)
Dessa Forma, pode-se perceber que Eros e Tânatos se entrelaçam. O ato de sugar o sangue, que também representa beber a vida de outro, é uma forma de compartilhar esta vida, além de emoções, sensações. Através da morte, dois seres se uniriam, mesmo que brevemente, assemelhando-se ao que é o ato sexual para os mortais.
Por fim, podemos afirmar que Lestat é movido por suas vontades. Ele jamais conseguiria viver uma vida contemplativa, como o sábio Marius, por exemplo. Lestat acaba por sintetizar a verbete Vampiro, no Dicionário de Símbolos (1996): "O Vampiro representa o apetite de viver, que renasce tão logo é saciada e que se esgota em se satisfazer em vão" (p. 930). O apetite de viver de Lestat, porém, não está ligado apenas ao ato de beber o sangue, de beber a vida de outro, mas também a viver intensamente, cada instante, como se ele não tivesse a eternidade.
Referencias Bibliográficas:
ARGEL, Marta; MOURA NETO, Humberto (org). O Vampiro antes de Drácula. São Paulo: Aleph, 2008.
BAITALLE, Georges. O Erotismo. Tradução: VIANNA, Antônio Carlos. Porto Alegre: L&PM, 1987.
CEIA, Carlos (org). Dicionário de Termos Literários.http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro, José Olympio-1996.
COSTA, Flavio Moreira. 13 Melhores Contos de Vampiros da Literatura Universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
RICE, Anne. Entrevista com o Vampiro. Tradução: LISPECTOR, Clarice. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
_________. O Vampiro Lestat. Tradução: GUARANY, Reinaldo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
_________. A Rainha dos Condenados. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
STOCKER, Bram. Drácula. SP: Martin Claret, 2002.