Entre o “não mais” e o “ainda não”

Por Central Press | 07/03/2016 | Educação

Daniel Medeiros*

No último dia 24 de fevereiro, algumas dezenas de meninas de 13 a 17 anos – e também alguns meninos – fizeram uma manifestação, no intervalo das aulas, contra a proibição do uso de shorts nas dependências da escola. A escola é uma das mais tradicionais da cidade de Porto Alegre. Uma escola privada, cuja matrícula, feita pelos pais, era condicionada a assinatura de um termo de compromisso em relação às regras da escola. Uma dessas regras dispõe sobre o uso de “roupas adequadas” ao ambiente escolar. A direção entende que shorts femininos não se enquadram no termo “adequado”. As meninas veem nisso uma expressão de machismo e lançaram um manifesto na internet chamado “vai ter shortinho sim”. E estabeleceu-se a discussão.

Maria Rita Kehl, psicanalista – e que foi membro da Comissão da Verdade – fala, na obra Sobre Ética e Psicanálise – que “há uma crise ética em curso no mundo e ( ...) eu situaria essa crise ética em duas vertentes principais: uma diz respeito ao reconhecimento da lei,  outra à desmoralização do código”. Ela conta uma história para ilustrar sua reflexão: um certo dia , em um importante museu da cidade de São Paulo um rapaz, cansado de ficar em pé, deitou-se sobre aqueles bancos que servem para melhor admirar os quadros pendurados na parede, e começou a fazer exercício de yoga. O guarda aproximou-se dele e pediu que ele parasse por que aquele banco não era para aquilo. E prossegue a autora: “Não se tratava de um apelo à Lei, mas ao código: isso não se faz. Mas, o que pode parecer evidente para mim e para alguns leitores, não era para o rapaz, que retrucou com a pergunta abominável, pergunta sempre sem resposta quando se trata dos fundamentos de um código de conduta estabelecido já há muitas décadas: “mas por que não?”.

Não me parece sensato acusar a psicanalista de tradicionalista, retrógada, machista. Ela apenas faz uma análise entre a tensão que existe entre  “a tradição, a educação, as religiões, as grandes mitologias”, como formadoras da cultura que “tentam garantir uma certa estabilidade (simbólica) e uma credibilidade de base imaginária no que concerne à transmissão da lei de geração a geração” e o que ela denominou , com todas as letras, de “pilares de novos modos de alienação”, ou seja, liberdade, autonomia individual, valorização narcísica do individuo, “orientados para o gozo e para o consumo”. Como diz a autora, há uma tensão entre essas duas formações discursivas e uma busca preservar valores historicamente acumulados enquanto outra tenta rompe-los. “Cada indivíduo se crê pai de si mesmo, sem dívida nem compromisso com os antepassados, incapaz de reconhecer o peso do laço com os semelhantes(...)”.

É fato que vivemos em uma sociedade machista e misógina. É fato que a violência contra a mulher – real e simbólica – é abjeta e precisa ser combatida. A pergunta é : as normas estabelecidas por uma escola, assim como as normas vigentes para as repartições públicas ou museus, ou restaurantes, ou igrejas, ou quaisquer outros lugares nos quais se queira preservar uma certa liturgia de respeito e adequação, necessariamente implicam em reprimir o corpo da mulher e seu direito de se vestir “como achar melhor”? E, o que me parece mais importante: como se trata de uma escola responsável pela educação de meninos e meninas de 13 a 17 anos, não é razoável que esta escola assuma alguns discursos de adequação quanto ao modo de vestir e de agir dentro do espaço escolar dessas menores de idade?

Lendo o manifesto das estudantes, cujo título é um imperativo, uma espécie de ameaça – “Vai ter shortinho sim” - , atenta-se, na mesma frase, com o seguinte paradoxo: exigimos que deixe no passado a mentalidade de que cabe às mulheres a prevenção de assédios, abusos e estupros; exigimos que, em vez de ditar o que as meninas podem vestir, ditem o respeito. Perceberam? Tá tudo certo? Sem dúvida, lutemos contra a mentalidade machista! Sem dúvida, mulheres são vítimas e não são responsáveis pelas agressões que sofrem! Evidente! Agora, os mais velhos – pais, professores, autoridades – não devem mais recomendar o que as meninas podem ou não vestir? Pois, diante da lei, o que as crianças fizerem não é  responsabilidade dos adultos?

Hannah Arendt, em uma resenha memorável, fala sobre a quebra da continuidade da tradição histórica e, citando o filósofo Hume, afirma que  a civilização humana como um todo subsiste porque “uma geração não abandona de vez o palco e outra triunfa, como acontece com as larvas e borboletas”. No entanto, a pensadora alemã lembra que o declínio do velho e o nascimento do novo não são necessariamente ininterruptos e surge um “espaço vazio”, uma espécie de terra de ninguém histórica, que só pode ser descrita em termos de “não mais e ainda não”. A reflexão sobre a “revolta do shortinho” pode ser assim encaminhada: por um lado, a saudável reivindicação por liberdade e reconhecimento; por outro, a busca pela manutenção de regras que traduzem valores de respeito por espaços públicos e pelo recato, pela discrição, pela proteção à exposição pública de crianças, de meninas, enquanto não há maturidade para escolher e sustentar suas escolhas.  Não me parece que se possa condenar, demonizar, descartar tanto uma posição quanto a outra. O que é necessário é compreender.

*Daniel Medeiros é Doutor em Educação Histórica pela UFPR e professor do Curso Positivo.