ENTRE O ESPÍRITO POÉTICO E O FUROR: INCIDENTES COM O PADRE ALUISIO E A GUARNIÇÃO DO TENENTE BENEVAL (OS TEMPOS DE COLÉGIO CATARINENSE – FLORIANÓPOLIS – SC)
Por Felipe Genovez | 14/02/2019 | HistóriaI – Os tempos de Colégio Catarinense:
No ano de 1976 estava cursando o terceiro ano de “Mecânica” no Colégio Catarinense (Florianópolis – Santa Catarina). Um dos momentos que mais me marcou naquele ano foi um incidente ocorrido numa determinada aula de Português ministrada pelo Padre Aluisio (irmão do Padre Elógio – Professor de Química). Era uma tarde de sol em meia primavera, em cujo momento nosso ministro cumpria seu monólogo, até que o estado de quase silêncio foi interrompido pela eclosão de um estampido forte próximo de uma das venezianas, muito provavelmente ocasionado pelo estouro de “rojão” vindo do lado de fora.
Padre Aluisio que também tinha formação em literatura, imediatamente após o estrondo inopinado, passou por uma metamorfose, parecendo tomado por uma força descomunal num misto rubor facial, irascível cólera e acesso de ódio incontrolável, passou a urrar, bradar impropérios, se transformou em áulico da própria arte cênica que fazia parte do seu ministério, como se viajasse aos tempos de Virgílio, Ovídio, Homero, dentre outros próceres do mundo da literatura clássica.
Nós, os alunos, mais parecendo reunidos em claque, tomados pelos inesperados gestos liquefeitos em pura energia e poesia antiqua, diante destas locuções cadenciadas tipo: “nojetos”, “crápulas”, “vermes”, “demônios”, retribuímos às pencas com gargalhadas, gritos, uivos...
Mas esse estado não durou muito. Padre Aluisio, sem perder o furor, ficou estático, lançou um olhar fulminante e altivo sobre todos os seus alunos que imediatamente beijaram suas mesinhas. Eu, achando o máximo por sairmos da mesmice, praticamente fui o último a cessar os risos da situação e seu olhar parou na minha posição sem que tivesse tempo suficiente de me recompor, talvez não o mais petulante, isto sim, autêntico, porque a situação me pareceu hilariante e bastante cômica.
A seguir, a frase vaticinante e autoritária, ao mesmo tempo que apontava o dedo em riste na minha direção, fez soar a seguinte ordem:
- Ponha-se fora da sala!
Foi a única vez na vida de estudante que experimentei a sensação de ser expulso de uma sala de aula e logo pensei: “alguém teria que ser sacrificado, provavelmente alguém de uma sala ao lado deve ter provocado esse incidente...”. Olhei para meus colegas mais próximos, dentre os quais Renato Grillo (sentava atrás de mim), Jayme Bastos Pires, João Savas (aposentado da Prefeitura Municipal de Florianópolis e atualmente residente numa fazenda em Urupema (a cidade mais fria do Brasil), Olavo Arantes (até hoje meu amigo), dentre outros, todos permanecendo emudecidos ante a reação inaudita do ilustre professor.
Deixei a sala e fui me apresentar ao Senhor Vitorino, coordenador de ensino. Logo que acessei o interior da secretaria fui recepcionado pelo pessoal do setor que pareciam curiosos até porque aquele incidente tinha chamado bastante a atenção de todos que questionavam a autoria. Depois que passei a conversar com “Vitorino” ele formulou a seguinte pergunta:
- O que aconteceu, foi você que soltou o “rojão”?
Relatei o fato e ele percebendo minha isenção de culpa acabou contendo uma gargalhada, passando a achar em engraçada a situação, dando a impressão que já conhecia o temperamento do Padre Aluisio. Fiquei sabendo que o referido professor havia sido preso em campos de concentração durante à 2ª Grande Guerra Mundial na Europa e que por isso tinha traumas terríveis com barulhos de “bombas”, portando, passei a entender os acontecimentos e lamentei meu procedimento e de meus colegas.
Depois disso, retornei às aulas normalmente, muito embora nunca mais esquecesse o ocorrido.
II – Parte: A Guarnição do Tenente Beneval:
Durante o transcorrer do ano de 1978, durante a madrugada de um determinado plantão na antiga Delegacia Especializada de Costumes e Menores de Florianópolis, em cuja repartição comandava uma das equipes de policiais, fui surpreendido com a chegada de uma Guarnição da Polícia Militar comandada pelo Tenente Beneval.
Logo que veio a minha presença o Oficial foi relatando que a sua guarnição havia sido chamada no início da madrugada para atender uma ocorrência na subida do Morro do Mocotó (parte insular de Florianópolis – próximo do centro da cidade). Visinhos se diziam incomodados com a presença de um casal deitado em trajes sumários num terreno baldio, em situação bastante constrangedora, ouvindo vozerios que afrontavam os costumes e a moral.
Diante dos fatos, passei a observar mais detidamente o “conduzido” que parecia transtornado, com a roupa bastante suja de barro, cabelos desalinhados, fazia meias voltas como se quisesse se esconder, parecia tenso, andava sob custódia dos militares de um lado para o outro junto ao “Comissáriado”, tudo isso sob visu enquanto eu permanecia sentado junto a minha mesa ultimando o recebimento da ocorrência.
O excelente Tenente Beneval foi bastante discreto e fez o seguinte comentário permeado por pitadas de ironia:
- ...Esse cidadão não tem documentos, não quer se identificar, não tem endereço, não diz o que faz, não se sabe nada a respeito dele, fica falando frases desconexas...
Logo a seguir o “estranho” foi conduzido a minha presença e a guarnição deixou o local, quando pude confirmar que realmente se tratava do Padre Aluisio. Procurei me inteirar dos acontecimentos, fazendo de conta que ele era um estranho, um andarilho, um louco...
Tão logo passamos a tratar dos acontecimentos, após solicitar a sua versão sobre os fatos, o nosso “conduzido” passou à narrativa ao mesmo tempo que parecia declamar uma poesia, levantava os braços como se quisesse se esconder de alguma luz, de raios luminosos da lua e da rua, como se encarnasse o próprio semideus “Enéas”, fazendo relatos sobre uma pseuda pseudo amorosa inspirado em “Dido” (a rainha de Cartago relatada em “Eneida” no épico de Virgílio):
- A noite pecaminosa, o luar, o orvalho, o calor da madrugada, aquela relva, corpos cheios de luxúria... a carne é fraca, oh como a carne é fraca, oh Deus, como a carne é fraca..., afasta-te de mim senhor das trevas...!
Os policiais a minha volta passaram a rir da situação pensando que realmente se tratava de um foragido da “Colônia Santana”. Sabendo de quem se tratava, porém, guardando total silêncio, quando fiquei na companhia solitária do jesuíta procurei fazer um aconselhamento:
- Senhor, não me interessa saber quem é você, nem quero ver seus documentos. Existe um quarto reservado ali no alojamento e o senhor vai permanecer lá até as seis horas da manhã. Depois eu vou liberá-lo com uma condição: o senhor vai direto para sua “casa” (Colégio Catarinense) e nunca mais vai me dar o desprazer de encontrá-lo envolvido nesse tipo de ocorrência policial. Estamos conversados?
Padre Aluisio baixou a cabeça e com humildade me agradeceu muito e o conduzi até o quartinho nos fundos onde havia uma cama e banheiro. De manhã cedo pedi a um dos policiais militares que integrava a equipe de plantão para que fosse até o local e providenciasse a liberação do “desconhecido”, sem que ninguém soubesse a sua verdadeira identidade.