ENTRE O CASO E O "CAUSO"
Por suely fassio | 03/05/2011 | PolíticaENTRE O CASO E O "CAUSO"
A felicidade proporcionada pela juventude reside no total desconhecimento do quanto a vida é repetitiva... A melhor idade, já habituada a essa circunstância, vem nos mostrar, com dispensável clareza, onde e quando perdemos, ao longo do tempo, cada uma das maravilhosas letrinhas da palavra "ilusão".
Pois bem.
Nos noticiários da TV, tão infelizes quanto necessários, tivemos a oportunidade de ver o Senador José Sarney, aquele mesmo dos brasileiros e brasileiras, defendendo a necessidade de um novo plebiscito sobre a liberdade do cidadão comum para comprar ou ter uma arma de fogo em casa.
Desnecessário dizer que o motivo invocado reside no cruel assassinato de crianças numa escola do Rio de Janeiro, por um ser humano totalmente desequilibrado, que restou morto após a prática do ato.
A imprensa também exibiu, juntamente com a fala do senador, um vídeo gravado pelo assassino, meses antes do fato, onde despejou toda sua inadequação com a vida que estava vivendo e as reações do mundo à sua volta diante dela.
E, então, me veio à memória um "causo jurídico" sempre lembrado quando advogados se reúnem para um café ou numa boa cervejinha, no final de uma tarde de verão.
E lá vai.
Numa pequena cidade do interior de qualquer lugar, havia um homem portador de certa debilidade mental. Era quieto e não aparentava qualquer sinal de ser violento. Exatamente por isso, a crueldade dos seres humanos ditos normais resolveu que ele deveria perder seu nome de batismo e ser conhecido e chamado por "loquinho".
Quando ouvia essa palavra ele ficava nervoso e ofendia as pessoas, que se riam e iam para suas casas, felizes pela sanidade que lhes foi dada, sabe por quem ? Por Deus !
Bem, se foi exatamente Deus quem lhes deu a tal higidez mental, não posso afirmar, pois sei tão pouco a respeito de mim mesma...
Mas, o fato é que ?um dia- o filho de um coronel, da época, e hoje conhecido como "bacana da cidade" resolveu escolher o nosso "loquinho" para se divertir, seguindo-o por toda a cidade e, em voz alta, chamando-o pelo nome que o infeliz tanto odiava.
Portando uma faca, que ninguém sabe de onde saiu, o pobre homem desferiu vários golpes no rapaz, como se o fizesse contra a cidade inteira, causando-lhe a morte.
O pai, revoltadíssimo com tal injustiça, moveu céus e terras para que o "loquinho" tivesse um julgamento severo. Seu poder era tanto, que nenhum advogado da cidade se dispôs a defender o réu.
Não sei se os procedimentos processuais foram assim exatamente, mas o certo é que o infeliz foi levado a júri popular, como determina a lei para os casos de crime contra a vida (humana, claro).
Ali, sentadinho no banco dos réus, ele estava mais uma vez à disposição da sociedade, ávida por dar-lhe o desejado corretivo.
Mas, o juiz não conseguia instalar a sessão do júri porque o nosso pobre "loquinho" não tinha advogado. Embora acreditando que entre os presentes não houvesse um, pois todos os da cidade evitaram comparecer exatamente para não serem convidados, o meritíssimo perguntou: existe um advogado presente para atuar como defensor dativo do réu ?
Infelizmente (?), havia um rapaz, recém casado e em lua de mel, que resolveu assistir o júri tão comentado na cidade. E apresentou-se.
Teve meia hora para ler o processo e disse que já poderia iniciar a defesa do réu.
Após a fala do digno promotor, cientificando a todos sobre os termos da acusação, como a lei determina, nosso advogado teve a palavra e falou: Meritíssimo Juiz, Nobre Promotor, Senhores Jurados membros deste respeitável conselho de sentença, público aqui presente. Meritíssimo Juiz, Nobre Promotor, Senhores Jurados membros deste respeitável conselho de sentença, público aqui presente. E assim repetiu essas palavras por mais de dez vezes.
Todos olharam para ele indignados, e começou um burburinho entre os assistentes, um mal estar entre os jurados, que se remexiam nas cadeiras, o promotor olhando para o juiz a cobrar uma atitude...
E diante disso, S. Exa., não titubeou, dizendo:
"Doutor, sob pena de entender sua conduta como uma afronta a todos nós, exijo que inicie exatamente a defesa do acusado!"
O jovem advogado, muito educadamente e com uma expressão de felicidade no rosto, disse a todos:
"Vejam meus senhores, até agora eu apenas pronunciei palavras de elogio a todos os presentes, com o respeito devido, e provoquei a indignação em pessoas totalmente saudáveis, do corpo e da alma. O que dizer do meu cliente que, por anos, vem ouvindo desta cidade uma só palavra que reflete o nada e insano que ele, infelizmente é ? Os termos da minha defesa estão, agora, na consciência de cada um dos senhores jurados!"
O "loquinho" foi absolvido, para voltar às ruas e ser punido novamente com o mesmo e malsinado adjetivo, até que o bom Deus dele se lembrasse...
Não, nós não precisamos de um plebiscito sobre armas, até porque elas estarão nas mãos dos malfeitores de verdade sempre.
Nós estamos carentes de educação, dignidade e leis coerentes com o nosso tempo, que realmente permitam à sociedade excluir de seu meio os delinqüentes, educando-os com dignidade, através da laborterapia. Que, aos insanos, se possa dar sanatórios decentes, capazes de curá-los ou lhes amenizar a dor...
Afinal, como diz o rock, "nessa terra de gigantes, que trocam vidas por diamantes" (HUMBERTO GESSINGER, Engenheiros do Hawai), quantas crianças morrem sem atendimento em hospitais públicos, por falta de quase tudo, enquanto os sanguessugas do dinheiro que seria utilizado para a saúde continuam impunes ?