SINOPSE: ENTRE MUROS E LINHAS: CONTROLE SOCIAL E FACISMO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA  

Por LETICIA DE LIMA FARIAS | 11/06/2018 | Direito

Letícia de Lima Farias 

1 DESCRIÇÃO DO CASO

O filme brasileiro “Bicho de Sete Cabeças” (2001) retrata a história de Neto, um jovem que é internado em um hospital psiquiátrico por seu pai. Lá ele vivencia situações desumanas, e abusos realizados pelo hospital. O livro reportagem “Holocausto brasileiro” (2013), remete ao o corrido no hospital Colônia, localizada em Barbacena – MG retrata os maus tratos aos pacientes, e as milhares de mortes ocorridas lá, por depoimentos dos sobreviventes e dos ex-funcionários da instituição. 
Diante da negação da humanidade desses indivíduos, é possível fazer-se uma analise sociológica utilizando a teoria das linhas abissais, enquadrar a situação em um dos tipos de fascismo social advogados por Boaventura, e questionar se estaríamos perante a emergência de uma nova forma de Estado, o Estado de exceção?

2 QUESTÕES PARA ANALISE

2.1 Em qual dos tipos de fascismo os casos narrados no livro e no filme podem ser classificados?

É válido afirmar que a loucura esta presente na sociedade há séculos. No século XVIII, Phillippe Pinel consagra o tratamento a esses indivíduos em manicômios, instituições especializadas em doenças mentais. Pinel buscava em sua teoria a “reeducação dos alienados, respeitando as normas, para ele a função do manicômio deve ser exercida com firmeza, porém com gentileza, denotando assim o caráter moral com que a loucura passa a ser vista” (CCS. SAÚDE [?]). Porém com o passar do tempo o que restou dessa corrente de pensamento fora o mecanismo de correção ao comportamento dos pacientes e a imposição da ordem. No século XIX o tratamento resumia-se a agressões físicas. (CCS. SAÚDE [?]).
Durante a maior parte do século XX funcionou o maior hospício do Brasil, o hospital Colônia, localizado na cidade de Barbacena, os maus tratos faziam parte do dia-a-dia dos pacientes, sendo os médicos e funcionários da instituição coniventes com tal situação. Aproximadamente 70% dos pacientes não tinham um diagnóstico de doença mental, eram mandados para lá por não se enquadrar na sociedade (pessoas tímidas, alcoólatras, homossexuais, pessoas sem documentos, etc.) (CCS. SAÚDE [?]).
 Fato esse explicado pelo conceito de fascismo social: “regime social de relações de poder extremamente desiguais que concedem à parte mais forte o poder de veto sobre a vida e o modo de vida da parte mais fraca” (SANTOS p.45, 2010). Ou seja, os indivíduos têm o poder de dizer quem pertence ou não a sociedade, quem é louco ou não.
Através do pensamento abissal, advogado por Boaventura de Sousa Santos é possível explicar sociologicamente o que ocorreu com esses indivíduos.
O pensamento abissal consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis. [...] Há uma divisão da realidade social em dois universos distintos: o universo deste lado da linha e o universo do outro lado da linha. A divisão é tal que o outro lado da linha desaparece enquanto realidade torna-se inexistente. [...] A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade de copresença dos dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante (SANTOS, p.32, 2010).
As linhas abissais são percebidas ao analisar a sociedade brasileira do século XX, no momento em que os indivíduos não aceitos socialmente foram jogados para o outro lado da linha, para o hospital Colônia, no intuito de serem calados e esquecidos, para “dar um fim” na escoria da sociedade. O filme bicho de sete cabeças (2001) retrata esse sentimento de ser calado e tratado de forma subumana.
É válido afirmar que a maioria dos hospitais psiquiátricos possui uma localização estratégica, afastada dos grandes centros urbanos. No intuito de evitar fugas e a sociedade não ter conhecimento dos tratamentos desumanos a que são submetidos os pacientes. Fato esse bem explicado a partir da ideia de fascismo do apartheid social:
Trata-se da segregação social dos excluídos através de uma cartografia urbana dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas. [...] As zonas selvagens são as de guerra civil e as civilizadas são as zonas do contrato social e vivem sob a constante ameaça das zonas selvagens (SANTOS p.45, 2010).

2.2 Interdependência entre o controle social formal e o informal 
2.3 Coerção social física e simbólica.

“Controle social os mecanismos materiais e simbólicos, disponíveis em uma dada sociedade, que visam a eliminar ou diminuir as formas de comportamento desviantes individuais ou coletivas” (TOMAZI, 2007).
O controle social formal é aquele exercido por autoridades, o legitimado, da mesma forma é a coerção física. Esse tipo de controle é observado no caso do hospital Colônia, pois era também uma instituição pública, lá havia pacientes que foram recolhidos pela policia das ruas, e por não apresentarem documentação de identificação eram mandados para o manicômio, ou seja, algo totalmente legitimado pelo Estado.
Já o controle social informal é o exercido por mecanismos casuais, sorrisos, olhar de reprovação, isolamento social, etc. Tal controle é visto no filme Bicho de sete cabeças (2001), ao passo que Neto fora internado em um hospital psiquiátrico por seu pai, que o julgava e rejeitava seu comportamento, e na tentativa de melhorar o comportamento do filho e o afastar das drogas e das más companhias optou pela internação. 

2.4 O processo de marginalização sofrido por grupos estereotipados na modernidade fere princípios jurídicos?

É válido afirmar que há um sistema legal que regula nosso comportamento, o Direito. Este ainda consagra os direitos humanos, como proteção a vida e a liberdade, e também direitos sociais como a paz social (SANTOS, 2010).
Visando garantir a paz social, o melhor para a sociedade, utilizamos o próprio direito para jogar os indivíduos para o outro lado da linha, sem sequer atentar para a condição humana deste, sem reconhecer seus direitos. 
Tanto no caso real ocorrido em Barbacena, quanto no filme fictício, é possível perceber que o individuo ao adentrar no manicômio, uma instituição total (“lugar do qual as pessoas estão isoladas da sociedade e no qual se usurpa tudo aquilo que o individuo é” (GOFFMAN, 2010)), é tratado com indiferença pela sociedade, como se sequer existisse, não tendo assim seus direitos reconhecidos.
Diante dessa violação de direitos, da consagração dos direitos sociais em detrimento dos humanos questiona-se: Estamos em um Estado de Exceção?
O estado de exceção é um estado anômico, no qual a vida é reduzida à dimensão meramente biológica, apolítica e, portanto, destituída de direitos (sequer aos procedimentos judiciais, formalmente assegurados universalmente), que faz lembrar a todos o privilégio da Lei (de se poder obedecer à Lei) (SOUZA, 2010).
Agamben, 2004 demonstra em seu estudo que a articulação entre Estado de exceção e ordem jurídica é impossível, ao passo que na modernidade o real significado de Estado de exceção estaria vinculado ao estado de necessidade e esse possibilita a suspensão de garantias das liberdades pessoais em casos de grandes dificuldades. (AGAMBEN, 2004 apud SOUZA, 2010).
Seriam falsas todas as doutrinas que tentam vincular o estado de exceção ao direito (baseadas na ideias da necessidade como fonte jurídica originária), entendido como exercício de um direito do Estado à própria defesa e sobrevivência, pois o estado de exceção consistiria num espaço sem direito (anômico), mas tão essencial à ordem jurídica que esta buscaria, por todos os meios, assegurar uma relação com ele (SOUZA, 2010).
REFERÊNCIAS

ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro: vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil. São Paulo: Geração, 2013. 

BICHO de sete cabeças. Direção: Laís Bodanzky. Interpretes: Othon Bastos; Rodrigo Santoro; Kássia Kiss. Roteiro: Luiz Bolognesi. Brasil: Colúmbia Pictures do Brasil, 2001, 1 DVD (1h14min).

CCS.SAUDE. Disponível em: < http://www.ccs.saude.gov.br/vpc/reforma.html>. Acesso em 28 set 2014.

GOFFMAN, Erving. As características das instituições totais, IN Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, Perspectiva, 2010.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.) Epistemologias do Sul. Coimbra, Portugal: Edições Almedina, 2010.

SOUZA, Angelita Matos. Estado de Exceção. Revista Espaço Acadêmico. Campinas, 2010. Disponível em: . Acesso em 27 set 2014.

TOMAZI, Nelson Dacio. Sociologia para o Ensino Médio. 1. ed. São Paulo: Atual, 2007. Disponível em: < http://www.escolamobile.com.br/emedio/vereda/arquivos/filosofia/2cfil_41.pdf>. Acesso em 28 set 2014.

 

Artigo completo: