Ensino técnico frente à ciência e à ética

Por Werner Schror Leber | 12/09/2024 | Educação

DA EPISTEME DO ENSINO MÉDIO TECNICISTA À EPISTEME DO ENSINO PROFISSIONAL TECNOLÓGICO EM CORRELAÇÃO COM A CIÊNCIA E A ÉTICA.

 

Werner Schrör Leber1

 

RESUMO:

 

O estudo apresentado analisa aspectos do ensino médio brasileiro e bifurca-se em duas frentes de investigação. A primeira, mira o panorama da educação técnica e tecnológica no Brasil dos últimos 60 anos. Apresenta a visão tecnicista sob o crivo dos objetivos educacionais bem como também a visão atual, que instaurou o ensino técnico integrado ao ensino médio regular. Dentro dessa moldura, procura apontar que antes o ensino técnico focava apenas no adestramento para operações industriais e objetivos empresariais. O ensino tecnológico, agora recém-iniciado, prima pela autonomia dos sujeitos e pela interação social, e não simplesmente por treinar ou moldar pessoas para objetivos predeterminados. A segunda bifurcação, aponta para a necessidade da ética diante da capacidade inventiva que a ciência e a técnica modernas tornaram possíveis. A atualidade exige um novo paradigma ético para a ciência, um paradigma que extrapole os limites antropocêntricos da ética tradicional à medida que o que interesse é toda a biosfera e não somente os seres humanos.2

 

Palavras-chave: técnica; tecnicismo; educação profissional; ética aplicada.


 

1.0 CONSIDERAÇÕES INICIAIS


 

Quando ouvimos expressões que se tornaram banais e corriqueiras nos tempos atuais, termos e frases repetidas muitas vezes como, por exemplo, vive-se uma explosão tecnológica no século XXI, fala-se tão somente de um refinamento e aprimoramento do que as balizas filosóficas e epistêmicas dos últimos quatro séculos nos trouxeram (ARAÚJO; BRIDI; MOTIM, 2017). O que significa, sucintamente, que as tecnologias do neolítico, surgidas há cerca de 10 mil anos, passaram por uma nova evolução nos últimos 400 anos. E, em final do século XX e XXI, por uma aceleração que modificou a forma de humanos se movimentarem e interagirem pelo mundo (LEVY, 2015). Esse processo pode ter trazido confortos e facilidades nunca vistas em qualquer momento da história universal, mas trouxe consigo também enormes conflitos e antagonismos entre nações, povos e etnias.

Nunca como hoje, questões religiosas, as economias locais e problemas políticos foram tão sensíveis e problemáticos (SROUR, 2012). Somos uma aldeia

 

1 Professor de Ensino Médio, na área de ciências humanas.

2 O texto acima é um trabalho feito para uma pós-graduação sobre Ensino Técnico e Tecnológico.

global na qual fica-se sabendo de praticamente tudo, sejam banalidades sejam coisas sérias, de maneira muito rápida. A informação circula a uma velocidade não imaginada há poucas décadas. Esse cenário cibernético e altamente influente exige também a pergunta pela ética. Mas trouxe um desafio ainda mais central: a necessidade de ensinar e educar de acordo com esses avanços tecnológicos.

O ensino técnico, o ensino profissional e tecnológico, mesmo diferentes entre si, surgiram daquilo que os humanos fizeram com seu saber e sua capacidade de dominar a natureza, modificar cenários, criar equipamentos, automóveis, aviões e toda sorte de quinquilharia eletrônica, para ficar apenas em alguns exemplos modestos.

 

  1. OBJETIVO PRINCIPAL


 

Traçar o caminho percorrido pelo ensino no desenvolvimento da técnica e a respectiva tecnologia no Brasil dos últimos sessenta anos, apontando os elementos ideológicos presentes e a necessidade da ética no desenvolvimento dos saberes.

 

  1. Objetivos específicos

  • apontar a diferença entre a ideologia tecnicista dos anos de 1960 a 1980 e a nova proposta de ensino tecnológico integrado;

  • enfatizar a importância do conhecimento e do ensino em uma era tecnológica e a relação com a ciência;

  • evidenciar a necessidade da ética no desenvolvimento da ciência e no emprego dos instrumentais tecnológicos.

 

3.0 ENSINO, TÉCNICA E TECNOLOGIA: DO QUE SE FALA AFINAL?


 

Seguramente existem inúmeras formas de definir o que seja tecnologia e técnica. Afinal, trata-se de algo inerente às capacidades humanas. Diz respeito às formas que o ser humano engendrou ao longo de sua trajetória para ajudar a si e aos outros. De modo mais formal vale dizer que tecnologia e técnica é

[...] uma atividade socialmente organizada, baseada em planos e de caráter essencialmente prático. Compreende, portanto, conjuntos de conhecimentos e informações utilizadas na produção de bens e serviços, provenientes de fontes diversas, como descobertas científicas e

invenções obtidas por meio de diversos métodos, a partir de objetivos definidos e com finalidades práticas (BAUMGARTEM; HOLZMANN, 2011, p. 391 Apud ARAÚJO; BRIDI; MOTIM, 2017, p. 137).

 

Ensino técnico, tecnológico e tecnologia mantém um vínculo matrício entre si em termos linguísticos. A palavra técnica deriva do grego Techne (τέχνη), que significa, de modo lato, conhecimento ou arte de saber realizar determinadas ações. Assim sendo, a arte de realizar determinadas ações, ou seja, a técnica e a tecnologia, não surgiu ontem ou no século passado. Desde tempos imemoriais, quando o ser humano passou a construir artefatos e domesticar animais, isso por volta de 10 a 12 mil anos atrás, a tecnologia acompanha a humanidade. Dentro desse quadro, surgiu também a escrita, fundamental para as estratégias de poder, de conquista territorial e socialização do humano moderno – o sapiens-sapiens. Nesse sentido, dizem as sociólogas:

As mudanças aceleradas instituíram a renovação constante de técnicas e tecnologias e revolucionaram as relações sociais, as formas de se comunicar, de se deslocar, de curar e amenizar a dor, de produzir, de trabalhar, de conhecer e repassar o conhecimento (ARAÚJO;BRIDI; MOTIM, 2017, p. 136)

 

Segundo alguns pensadores a escrita permanece sendo a mais revolucionária tecnologia de todos os tempos na história da humanidade (LEVY, 2015). Sem ela, muitas das evoluções tecnológicas não seriam possíveis.

Mais recentemente, a partir do século XVI, o mundo ocidental começa um empreendimento tecnológico que se alastra rapidamente para os quatro cantos do mundo. Falamos aqui do Renascimento europeu, o qual legou ao mundo, queiramos ou não, um padrão de ciência exploratória que deu origem à tecnologia e nanotecnologia atual, esse imenso Ciberespaço no qual todos estamos mergulhados.

 

  1. – TÉCNICA, TECNICISMO E CIÊNCIA


 

Vivemos tempos em que o ensino técnico volta a ser visto como importante ante as demandas que o mundo tecnológico e trabalhista atual apresenta. Antes de verificarmos o que diferencia o ensino técnico passado do ensino técnico e profissional integrado atual, precisamos construir um enredo e apontar, ainda que brevemente, as trajetórias que foram percorridas. Ao longo das últimas duas décadas houve inúmeras leis, resoluções e esforços por parte do Governo Federal brasileiro e também de

governos estaduais visando dar uma maior plausibilidade ao assim chamando Ensino Técnico profissional e Tecnológico. Mas não é isso uma contradição quando se condena o ensino tecnicista de Lei de 5.962 de 1971 e agora volta-se ao ensino técnico? Precisamos analisar essa questão para entender onde reside a diferença. Afinal, os termos tecnicismo e técnico indicam a mesma coisa? Sigamos os passos das comentadoras quando elas afirmam que:

[...] pode-se dizer que o elemento central da pedagogia tecnicista era a organização racional dos meios, sendo que o planejamento era o centro do processo pedagógico, elaborado pelos especialistas. O professor e os alunos eram relegados a posições secundárias; não se valorizava a relação professor-aluno, pois o aluno devia se relacionar coma tecnologia. Essa abordagem deu ênfase à reprodução do conhecimento, valorizando o treinamento e a repetição para garantir a assimilação dos conteúdos. O problema da educação era, fundamentalmente, um problema de método: a suposta neutralidade científica implica em não se questionar as relações entre educação e sociedade; não há espaço para a contradição. (MIRA e ROMANOWSKI, 2009, p. 10.210)

 

As autoras que acima citamos seguem, digamos assim, uma determinada linha de raciocínio que vê o ensino técnico das décadas de 1960, 1970 e 1980 como que atrelada única e exclusivamente ao processo capitalista e empresarial de produção.3 Digamos assim que essa é a linha majoritária dos pensadores da educação recente, especialmente no Brasil. E, nessa linha ainda, as autoras nos indicam também uma outra questão: o ressurgimento do ensino técnico, conforme elas, pode ser chamado de neotecnicismo. Todavia, as autoras, a nosso ver, não são muito incisivas em diferenciar o que seria tecnicismo e neotecnicismo. De modo geral, porém, percebe-se que o neotecnicismo, conforme o que pode ser depreendido das informações por elas apresentadas, é uma espécie de continuidade do tecnicismo, mantendo a linha central de ensino na qual o que visa-se é a produção final e não o desenvolvimento humano. O objetivo final permanece mais importante do que quem executa todas as ações. Tal alteração ocorre, segundo elas, pela internacionalização do modelo capitalista e seu


 

3 Importa dizer que entre os pensadores e pensadoras nacionais, por via de regra, associar o Ensino Técnico às necessidades da produção capitalista e ver na escola apenas uma espécie de arrendatária passiva do modelo para formar pessoas que a ele sirvam, parece ser uma linha majoritária de crítica nacional. Mas ela não encontra eco em muitos autores que nós são poucos estudados. Como exemplo, citaremos apenas Bernardin (2013, p. 39-66), cujas ideias apontam para uma “refrorma psicológica do ensino” gestado em oraganizações como ONU e UNESCO e que, segundo ele, mantém um objetivo ideológico e militante que nada tem a ver com a libertação e a democratização do ensino. Muito pelo contrário. O que os libertários defendem como ensino democrático e humanista não passa de uma faceta mascarada que esconde o domínio psicológico e ditatorial da dita escola libertária. No entanto, não vamos adentrar ao pensamento deste autor agora; isso exigiria um outro trabalho.

modo de fazer circular a moeda e os serviços adjacentes ocorrida a partir da década de 1990. Vejamos essa passagem em que as autoras fazem a seguinte ponderação:

Assim, a educação deve dar conta da formação de um trabalhador com certos tipos de competências, habilidades e virtudes, cujo aprendizado deve ocorrer antes de sua inserção no mercado de trabalho. Para tanto, é necessário que os jovens permaneçam mais tempo na escola, pois o aprendizado dessas novas exigências requer mais tempo, maior convívio social. É com esse objetivo que são propostos os diversos mecanismos de progressão automática, progressão continuada, bem como de correção da distorção idade-série: mais do que garantir mais tempo na escola aos estudantes, esses mecanismos estão relacionados à lógica da redução de custos, de aumento da produtividade do sistema escolar.(MIRA e ROMANOWSKI, 2009, p. 10.214)


 

Como vemos, o neotecnicismo dos anos de 1990 e da primeira década do século XXI pouco quase nada se diferencia daquele de final década de 1960 e que persistiu até à de 1980. Os conteúdos podem ter mudado, mas as intenções e os procedimentos permaneciam os mesmos. Ainda nos anos de 1990 os especialistas já haviam percebido que:

  1. o ensino básico e técnico vai estar na mira do capital pela sua importância na preparação do novo trabalhador; b) a didática e as metodologias de ensino específicas (em especial alfabetização e matemática) vão ser objeto de avaliação sistemática com base nos seus resultados (aprovação que geram); c) a “nova escola” que necessitará de uma “nova didática” será cobrada também por um “novo professor” – todos alinhados com as necessidades do novo trabalhador; d) tanto na didática quanto na formação do professor haverá uma ênfase muito grande no“operacional”, nos “resultados” – a didática poderá restringir- se cada vez mais ao estudo de métodos específicos para ensinar determinados conteúdos considerados prioritários, e a formação do professor poderá ser aligeirada do ponto de vista teórico, cedendo lugar à formação de um prático; e) os determinantes sociais da educação e o debate ideológico poderão vir a ser considerados secundários – uma “perda de tempo motivada por um excesso de politização da área educacional” (FREITAS, 1995, p. 127; Apud MIRA e ROMANOWSKI, 2009, p. 10.215)

 

No entanto, vários autores e autoras discordam que o ensino tecnológico recém-iniciado seja apenas uma sequência aprimorada do tecnicismo antigo. Mas afinal, o que visa então o ensino técnico atual? A que se deve seu ressurgimento? Apenas uma roupagem nova ou intenções também novas? Podemos dizer que ele não quer colocar os objetivos empresariais e mercadológicos à frente do indivíduo. E nisso ele se diferencia substancialmente do modelo de ensino tecnicista ou neotecnicista. Mas como?



 

5.0 - EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA PROFISSIONAL


 

Compete-nos agora apontar quais as motivações da pedagogia recente em torno da educação tecnológica e quais são seus pressupostos. Busca-se assim, aclarar, isto é, jogar luz sobre essa questão tendo como foco as diferenças entre a nova pedagogia e epistemologia de ensino quando comparada à antiga, a tecnicista. E não menos importante também é procurar entender a necessidade do ensino técnico e tecnológico e como que ele busca equacionar a relação objetivos técnicos e a vida humana.

O percurso percorrido até que se chegasse a ter o ensino profissional de ensino médio integrado à educação básica foi longo e tortuoso. Não nos compete agora reconstruir todo esse itinerário pela absoluta falta de espaço para esse empreendimento em nossa modesta pesquisa. Assim sendo, limitar-nos-emos àqueles pontos em que as informações pesquisadas colaboram com as nossas comedidas intenções.

Quando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - a LDB de 1996 - foi promulgada a Educação técnica não existia em seu texto como educação regular de modo peremptório. Ela aparecia apenas em paralelo aos graus básicos de ensino ali previstos, mas de modo ambíguo e minimalista. Os artigos 36 e 40 da LDB de 1996 referiam-se à educação técnica de modo questionável. Como lembra o Documento de Brasília (BRASIL, 2007, p. 262)4, publicado em dezembro de 2007, a educação técnica e profissional era mencionada ora como possível parte da educação básica regular e em outros momentos permitia a interpretação segunda a qual a educação profissional e técnica também deveria correr completamente desarticulada da educação média regular.

O Novo Ensino Médio, que surge em 2017, estrutura a educação básica por competências e habilidades, definidas pela BNCC - Base Nacional Curricular Comum. Essa modalidade de ensino passou a vigir em 2021, quando enfrentávamos a pandemia de covid. Em 2023 o Governo atual suspendeu o Novo Ensino Médio para

4 Este texto, agora de domínio público, ao qual tivemos acesso pelo Portal Kindle, traz muitas informações sobre todo o histórico do desenvolvimento da educação profissioanal e tecnológica no Brasil, elaborado pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Governo Federal.

um consulta popular. Recentemente ele voltou mas mantendo o princípio de ensino por competências e habilidades e a perspectiva que já constava antes, ou seja, “o estudante protagonista da aprendizagem” (PRADO; RIGOLIN; SILVEIRA, 2020, p.216).

 

5.1. Visão nova para dirimir preconceito arraigado


 

Educação técnica profissional não é, ao menos não quer ser, a repetição do tecnicismo das décadas de 1960 a 1980. O decreto 5.154 de 2004 trouxe uma perspetiva em que o ensino médio poderia contemplar simultaneamente também a formação profissional técnica. Como lembra o documento de 2007, “[...] algumas iniciativas governamentais tem potencializado essa ampliação” (BRASIL, 2007, p. 452). De modo sucinto, os anos que vão de 2003 a 2007 foram fundamentais para gestar ideias novas sobre a visão que até então se tinha sobre ensino técnico bem como pavimentar uma nova estrada.

O que se pretendia era mitigar o preconceito segundo o qual as classes menos favorecidas deveriam se voltar ao ensino técnico e pragmático ao passo que os jovens mais abastados deveriam ocupar-se do ensino universitário. Esse tipo de visão classista e preconceituosa vem de longa data em nossa famigerada tradição social. À medida que a noção de ensino técnico integrado ao médio regular foi ganhando força, novas perspectivas foram sendo esculpidas. Passou-se a ver o ensino técnico e profissional não mais como tecnicismo ou adestramento para determinados fins. E sim como parte do desenvolvimento integral do jovem adolescente à medida que valorizava, sobretudo, a autonomia, a ética e as escolhas que se pode fazer. Em outras palavras, o que estava-se a dizer é que a educação profissional e tecnológica não pode prescindir da ética. O ser humano, se nossa pesquisa estiver certa, passa a ser o protagonista do percurso e não um mero sujeito passivo adestrado para finalidades meramente funcionais. Decorre daí que a perspectiva hoje diferencia dessa formação acrítica da Lei 5962, na qual imperavam modelos prontos e objetivos pré- estabelecidos, e sim vincular o mundo do trabalho às práticas sociais.


 

6.0 A ÉTICA E O DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO


 

Há muitas razões para que a tematização ética se faça presente. O mais elementar deles, no nosso caso, é perguntar-se tecnologia, educação profissional e tecnológica para que e para quem? A tecnologia, em si mesma, como vimos, é um instrumental surgido de nossos complexos modo de vida que impinge aos humanos a necessidade de inventar instrumentos e equipamentos (ARAÚJO; BRIDI; MOTIM, 2017). A tecnologia, pode-se dizer também, é resultado de pesquisas das ciências naturais e sociais à medida que o campo teórico da ciência encontra na técnica a sua execução e praticabilidade. Nas abordagens e estudos sobre ética em nossos tempos há três grandes ramos que se destacam: a bioética, ecoética ou ética ambiental e a ética dos negócios também conhecida como ética corporativa. Há autores que preferem o termo “ética aplicada” (ARANHA; MARINS, 2017, p. 168).

A tecnologia e o profissionalismo somado não são neutros e destituídos de interesses, de buscas, de objetivos à medida que não há pessoas neutras, interesses neutros, objetivos neutros. Mesmo que o conhecimento científico “[...] não deve atender a nenhum outro valor além do cognitivo”, como indicam as comentadoras (ARANHA; MARTINS, 2017, p 304), não existe currículo escolar neutro e nem ciência neutra. Tudo, absolutamente tudo, que humanos fazem está carregado de sentido. Ademais, a ciência, malgrado sua grande importância ao conhecimento, traz também perigos e desvios que devem ser evitados. Nesse sentido vão as palavras do comentador:

Desde que a ciência passou a ser praticada, o campo da ética tem desempenhado um papel significativo em seu desenvolvimento e regulamentação. Por mais importantes que tenham sido as novas descobertas, como avanços tecnológicos, curas e práticas, para o progresso da humanidade, é igualmente vital considerar as implicações éticas que essas descobertas podem ter na sociedade. Sem ética, a ciência tem dificuldade de se basear na verdade, pois práticas inadequadas, como falsificação de dados e má conduta, podem levar a resultados tão convincentes quanto o trabalho feito honestamente (NANGIA, 2023)

 

Como conferir credibilidade àquilo que é descoberto e divulgado na área do desenvolvimento tecnológico e científico? As instituições universitárias, os centros de produção tecnológica, as publicações periódicas, como revistas, livros e resultados de

pesquisa avançada, somadas aos pesquisadores, que exercem funções determinantes em estudos e investigações sobre tecnologia, fármacos e novos materiais industriais, são agentes basilares na preservação da ética nas pesquisas e avanços das ciências. Por via de regra, são os especialistas em ciência, a chamada “comunidade científica” (ARANHA; MARTINS, 2017, p. 303) que dão lastro às publicações e pesquisas, certificando sua validade e seriedade. Ademais, são também os pesquisadores e estudiosos das ciência que fornecem os padrões, métodos e paradigmas que conferem credibilidade ao que é apresentado e publicado pelas universidades e centros tecnológicos de pesquisa (CHALMERS, 2017). As filósofas Aranha e Martins (2017, p. 303) lembram que “não faz tanto tempo que as grandes realizações científicas eram fruto de gênios individuais, mas atualmente a ciência resulta de trabalho em equipe [...]. A ética não quer ser um freio à ciência como se sobre ela legislasse. E nem poderia, pois não tem competência técnica para avaliar resultados de pesquisas. No entanto, as potencialidades que os conhecimentos e descobertas podem trazer são imensas. Muito além do bem que, no mais das vezes, se prensa estar realizando. Disso se seque que é preciso perguntar o que deve e o não deve ser feito. É nesse campo que a filosofia ocupa um papel central à medida que a ética é uma área da

filosofia. Nesse sentido cabem as palavras das comentadoras:

 

O papel da filosofia com relação à ciência e suas aplicações encontra- se na investigação dos fins e das prioridades a ciência se propõe, na análise das condições em que se realizam as pesquisas e nas consequências do uso das técnicas (ARANHA; MARTINS, 2017, p. 305)”

 

É o caso, por exemplo, das discussões sobre aborto que estão em evidência nos últimos tempos aqui no Brasil, a tal ADPF 442.5 Nesse sentido, a ética exerce também a pergunta pelo alcance social das pesquisas e pela moralidade das ações científicas. Afinal, a legislação deriva, sobretudo, de problemas morais e éticos que permeiam a formação das sociedades. Toda e qualquer sociedade é formada por um conjunto de valores que lhe dão sustentação moral. Se a ética não fosse necessária, também não precisaríamos das Leis, das Normas e recomendações morais sobre o proceder das pesquisas e inovações.

 

5 Por exemplo, reportagem de Shirlei Alves, O que você precisa saber sobre a ADPF 442, que pede a descriminalização do aborto no Brasil, de 02 de outrobro de 2023. Disponível em: www.generonumero.media/reportagens/adpf442-descriminaliza-aborto/. Acesso em 16 de agosto de 2024.

No campo genético e neurológico, por exemplo, são possíveis muitas coisas, como aperfeiçoamento de etnias, clones, inteligência artificial, decifração do código genético, criações de seres humanos imunes a doenças e até máquinas que podem substituir totalmente o ser humano. Descobertas e invenções podem ser utilizadas em amplos sentidos. Mas quais são aceitáveis? Quais devem ser rejeitados? Que critérios utilizar para considerar algo eticamente aceitável ou reprovável? Diferentes áreas de saber como, por exemplo, a teologia, medicina, biologia, direito, antropologia, economia, psicologia participam do debate e da elaboração de normas, recomendações, decretos, leis sobre os alcances da ciência e da tecnologia com o objetivo de verificar se eticamente é aceitável o que a tecnologia e a ciência podem fazer. Como nos lembra Jonas (2011), a capacidade da mente humana é grande demais para uma natureza limitada. É por essa razão que centros de saúde ou de pesquisas com seres humanos trazem recomendações éticas para os seus profissionais (MATTGE VN, LACERDA MR, GOMES IM, 2019).

Há ainda outro motivo para a ética entrar em cena nos tempos atuais com muito mais relevância que antes. Para Jonas (2011, p. 35), durante séculos e milênios o ser humano não precisou verificar que lugar ocupa a natureza no todo das coisas. O ser humano definia os padrões éticos de acordo com somente a natureza humana. Era, diga-se assim, uma visão antropocêntrica: o que importa é ação humana e não as coisas. Ou como ele diz, “[...] em suma, a atuação sobre objetos não humanos não formava um domínio eticamente significativo”. Mas isso mudou radicalmente na era tecnológica e inventiva que estamos a viver. A natureza, também chamada de ecosfera por ambientalistas, não pode mais ser castigada. Não é mais possível falar em ética sem considerar a natureza e os outros animais pela relevância capital que estes têm para a sobrevivência do Planeta Terra. As rápidas transformações alcançadas pela técnica avançada e pelo desenvolvimento científico trouxeram também problemas, como excesso de lixo e destruição de florestas, rios e mares, ameaçando a fauna que neles habita. Em outra passagem o autor afirma: “O braço curto do poder humano não exigiu qualquer braço comprido do saber [...]” (JONAS, 2011, p. 37). E aponta uma situação que precisa ser considerada pela urgência e centralidade do problema:

O hiato entre a força de previsão e poder do agir humano produz um novo paradigma ético. Reconhecer a ignorância torna-se, então, o outro lado da obrigação do saber, e com isso torna-se uma parte da ética que deve instruir o autocontrole, cada vez mais necessário, sobre nosso excessivo

poder. Nenhuma ética anterior vira-se obrigada a considerar a condição global da vida humana e o futuro distante, inclusive a existência da espécie. O fato de hoje eles estejam em jogo exige, numa palavra, uma nova concepção de direitos e deveres, para a qual nenhuma ética e metafísica antiga pode sequer oferecer os princípios, quanto mais uma doutrina acabada (JONAS, 2011, p. 42)

 

Como se depreende da citação acima, o conhecimento, o saber técnico, científico é que deve ser sob um prisma novo. Conforme visão dele, a era tecnológica trouxe desafios que extrapolam a visão simplista de pensadores iluministas como, por exemplo, Immanuel Kant. Jonas considera Kant e outros pensadores modernos e contemporâneos simplistas porque supunham um ética de humanos para humanos somente, desconsiderando a natureza e os demais seres vivos.

 

7.0 CONCLUSÃO


 

A tecnologia existente na atualidade é complexa e pode ser importante em muitos casos e, imprescindível, em muitos outros. A necessidade de uma pedagogia que aborde formas de ensinar e desenvolver saberes dentro do assim chamado ensino tecnológico é necessária e urgente. Não há volta. Estamos irremediavelmente mergulhados em um era tecnológica para a qual cada vez mais surgem demandas que precisam ser apreendidas e precisa haver também quem ensine. Como foi visto, o Brasil implementou nova legislação que torna concomitantes o ensino regular e o ensino de conhecimentos técnicos e tecnológicos. O argumento central para essa mudança curricular reside no fato de as camadas mais carentes da população necessitam trabalhar. Fazer dois cursos, primeiro o médio e depois um curso técnico, inviabiliza a situação de grande parte dos estudantes brasileiros. Ainda não se sabe se os resultados serão melhores ou piores do que se teve até o presente.

Ressalva-se que, de acordo com o que pesquisamos, são precárias, para não dizer inexistentes, as abordagens pedagógicas que se voltam exclusivamente ao ensino tecnológico profissional de modo paradigmático. A grande maioria de textos e artigos consultados abordam a tecnologia e seu uso no ensino, mas não discorrem sobre a episteme - o princípio fundador de saber - que orienta o ensino tecnológico profissional. É provável que isso se dê por conta do pouco tempo em que o ensino tecnológico está em nova roupagem. Por exemplo, se levarmos em consideração estudos mais recentes sobre metodologias ativas como os de Bianchi e Moran (orgs.

2018) e Cavalcanti e Filatro (2019) Silva; Bilessimo; Machado (2021) ou mesmo a aprendizagem invertida (BERGAMANN, 2018) não se encontra uma abordagem voltada somente ao ensino tecnológico e profissional.6 Entendemos que isso não constitui um entrave, e sim que os procedimentos pedagógicos relativos às aprendizagens são válidas seja para o ensino regular como para o ensino tecnológico profissional.

A técnica e a tecnologia, resultado das investigações científicas, diversificam- se a cada que passa. Estamos mergulhados na tecnologia e já não sabemos fazer muita sem a ajuda dela. A ciência, seja a natural ou a ciência social e humana, participa ativamente do desenvolvimento de novas técnicas e novas tecnologias. Conhecimento científico e técnica andam sempre juntas. Uma não vai sem a outra. É nesse cenário que entra a ética, os valores e as moderações morais. Muita coisa é possível de ser feita no campo das ciências médicas, biológicas e da engenharia genética. Mas o que é viável e por quê? O que pode e o que não pode ser feito por atentar contra os valores civilizatórios? Quem decide o que pode e o que não pode? Vimos que a ética, por meio da comunidade científica, desempenha um papel central e decisivo.

Nos tempos atuais a ética não está ligada mais somente aos elementos que compõem as relações entre humanos. Jonas (2011), como ficou dito, apontou o perigo da ciência exploratória e antropocêntrica se um outro paradigma não for levado em consideração. Trata-se de perceber que a ciência e a técnica não impactam apenas os valores humanos, mas impactam a preservação da biosfera ou sua completa destruição. Ciência, técnica e tecnologia sem a devida equidade ética pode ser desastrosa e funesta se princípios éticos forem negligenciados. O ensino atual precisa focar e centralizar suas assertivas no desenvolvimento ético dos humanos para que não vejam a técnica e a respectiva tecnologia somente como ferramenta de explorações mercadológicas e lucros a qualquer custo.

A educação tecnológica, como tentou-se evidenciar, difere da educação tecnicista justamente porque não vê a técnica como mais importante que o ser humano. No tecnicismo, cabia à escola e ao estudante aprender as técnicas necessárias para executar tarefas cujos contornos mais amplos eram conhecidos apenas pelos donos

6 As abordagens que esses autores apresentam referem-se à educação básica de modo geral. Uma pedagogia do ensino técnico e técnológico está, no máximo, pressuposta, mas nunca abordada de modo particular e pormenorizada.

dos empreendimentos e pelos especialistas. Não havia, por assim dizer, espaço para críticas, sugestões e considerações da parte de quem está a estudar e aprender. O conhecimento tecnológico leva em conta o ser humano e suas relações mais elementares. Não há, de antemão, um projeto pronto a seguir de maneira cega e obstinada.


 

8.0 REFERÊNCIAS


 

ARAÚJO, Silvia Maria de; BRIDI, Maria Aparecida; MOTIM, Benilde Lenzi. Sociologia. São Paulo: Scipione, 2017. (Volume único - Ensino Médio)

BACICH, Lilian; MORAN, José (Orgs.). Metodologias ativas para uma educação inovadora: uma abordagem teórico-prática. Porto Alegre: Penso, 2018.

BERGMANN, Jonathan. Aprendizagem invertida para resolver o problema do dever de casa. Tradução de Henrique de Oliveira Guerra. Porto Alegre: Penso, 2018. BERNARDIN, Pascal. Maquiavel pedagogo: ou o ministério da reforma psicológica. 1ª edição. Tradução de Alexandre Müller Ribeiro. Rio de Janeiro: CEDET, 2013.

BRASIL. Lei 9.394/1996. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Atualizada. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2018.

BRASIL. Presidência da República Federativa do Brasil. Educação profissional técnica de nível médio integrada ao Ensino Médio. Brasília (DF): Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica, 2007, 1137 pp. Livro de domínio público da Biblioteca Kindle. Disponível em: https://ler.amazon.com.br/?asin=B00AH37DGE&ref_=dbs_t_r_kcr Acesso: 23 de jul., 2024.

CAVALCANTI, Carolina Costa; FILATRO, Andrea. Metodologias inov-ativas na educação presencial, a distância e corporativa. 1ª Edição da 2ª Tiragem. São Paulo, Saraiva, 2019.

CHALMERS, Alan. F. O que é ciência afinal? Tradução de Paul Fiker. 14ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2017.

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JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para uma civilização tecnológica. 1ª reimpressão. Tradução de M. Lisboa e Luiz B. Montez. Rio de janeiro: Editora da PUCRIO, 2011.

LIMA, Francisco Vale. O desenvolvimento exaustivo da ciência e da técnica enquanto motivação para o esvaziamento ético contemporâneo: Uma análise à luz de jürgen habermas e hans jonas. Cadernos do PET Filosofia, Vol. 3, n. 5, Jan-Dez, 2012, p. 91-101 Disponível em: C:/Users/sofos/AppData/Local/Temp/MicrosoftEdgeDownloads/c68c0f5b-691e-4c78- b25c-d9e73a110ae4/landrescastillo,+Art+-+9.pdf Acesso em 12 de maio de 2024

KUHN, Thomas. A estrutura da revoluções científicas. Tradução de B. V Boeiraq e Nelson Boeira. Edição comemorativa dos 50 anos da publicação com ensaio introdutório de Ian Hacking. São Paulo: Perspectiva, 2018.

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