Ensino de matemática na escola do campo
Por mário de oliveira martins | 07/09/2017 | EducaçãoO artigo de Oliveira (2008) traz um excelente estudo de caso ou pesquisa qualitativa feita com trabalhadores rurais do município de Santo Antônio da Patrulha –RS. Identificou-se os jogos de linguagem e as dificuldades dos agricultores em conseguir o crédito rural do PRONAF, em forma de debate, para evitar prejuízos com as lavouras e com o projeto. Nos jogos de linguagem há expressões do tipo “rezar para ter um bom ano; pois se chover muito pode perder a roça”; “o dinheiro demora...é preciso esperar o sindicato nos avisar...”; “é preciso levar a escritura da terra para o sindicato calcular o valor do empréstimo...”. Tais expressões caracterizam uma cosmovisão capaz de alienar a pessoa e fazê-la agir com passividade. Com o objetivo de fortalecer e valorizar o agricultor familiar, o projeto do governo traz boas intenções de agregar valor e avançar no cultivo da agricultura. Ao analisar as estratégias própria de sobrevivência dos agricultores percebe-se uma confiança ilimitada no sindicato. Eles terceirizam sua responsabilidade de calcular, fazer os projetos, para o sindicato.
A partir de tal análise empírica, com estudo de caso, utilizou-se a fundamentação teórica de Wittgenstein que enfatizaas semelhanças que existem entre os membros de uma família; diferentes formas de matemáticas: a matemática escolar, acadêmica, a camponesa – cada uma com sua forma de vida, mas conservando o caráter do formalismo e da abstração, tem uma pretensão de universalidade. Todo o cálculo fica a cargo do sindicato, demonstra assim uma fragilidade no sistema de medida das terras, a tamina. Há uma distância na prática, de uma matemática informal, flexível da matemática oficial e eurocêntrica. Já Michel Foucault destaca ossaberes locais, singulares, sistemas marginalizados, excluídos, desprezados, pois a “matemática oficial, escolar e acadêmica” não inclui estes agricultores. Assim é um saber rejeitado pelo currículo oficial, hegemônico e eurocêntrico.Esse arcabouço da matemática escolar é um “ideal”, mas que não é reflexo do mundo.
O universo da matemática é amplo e profundamente complexo. É fundamental que a vida estudantil das pessoas decomunidades rurais seja organizada de modo que favoreça uma aprendizagem contextualizada. A razão de muitos prejuízos causados por métodos mal aplicados faz o aluno ficar indiferente com a disciplina. Há também uma política pedagógica centrada no currículo oficial de maneira irregular, em que trata todas as realidades de modo igual. Assim a equipe multidisciplinar precisa adaptar e reorganizar o currículo especial ao meio social dos habitantes e pequenos agricultores, a fim de preservar dignidade da pessoa. O ser humano necessita de direitos e de segurança. Estudar é bom, mas com qualidade e eficiência. De maneira ampla e holística a educação no campo visa lidar com aspectos psicossociais dos estudantes, tais como os fatores físicos, cognitivos, sociais, culturais e ambientais, tudo tendo por base a tríade: ser, fazer e saber-fazer, isto é, pressupostos fundamentais para a qualidade de vida no âmbito educacional, de forma sistêmica.
A matemática escolar e a não escolar possuem regras diferentes e isso precisa ser evidenciado para se fazer uma análise mais precisa e científica da questão. Não é necessário que se leve para a sala de aula urbana ou escolar de forma regular a matemática camponesa. Pois cada ângulo de estudo é diferente. A educação no campo exige a metodologia do aprender a aprender e isso significa que nada é tão rigoroso em regras aritméticas ou de expressões numéricas, porque isso é desnecessário. Além disso o contexto rural exige adaptações criativas, simbolismos diferentes, significados diversificados, sentidos profundos sobre pecuária, agricultura, agronegócio, tudo integrado numa linguagem simplificada e contextualizada. Não é fundamental utilizar pedagogias que utilizem termos tais como metrô, cibercultura, etc numa epistemologia rebuscada e fora do contexto do aluno. Ao invés disso utiliza-se fontes próximas do aluno, tais como animais, plantas, atividades de agricultura. Por outro lado não se pode desmerecer a capacidade de inovação e de ampliação dos métodos pedagógicos, necessários a uma aprendizagem significativa. É por isso que a pedagogia deve ser a histórico-crítica que parte da realidade do aluno, problematiza-a, depois se adquire o resultado esperado com êxito. Isso quer dizer que não se pode forçar a maneira de aprender do aluno. Ele precisa ter liberdade de expressão e aprender com entusiasmo a matemática, dentro de seu contexto social e cultural, não como um problema de fórmulas vazias, fora de sua realidade, mas ao seu nível.
A etnomatemática propõe sair das aulas teóricas e partir para algo prático, diferente do método tradicional da matemática escolar. Se a etnomatemática exige adaptações do currículo é necessário antes de tudo conhecer seu aluno, e seu contexto, de onde ele vem, seus limites e problemas. Depois verificar suas expectativas e anseios. Junte-se a isso a necessidade de cada sub-região, dentro da mesma comunidade. Pois há agricultores que plantam feijão, outro que plantam hortas. Outros ainda só criam animais. Diante dessa diversidade existente em uma região é preciso o educador ter a perspicácia de levar em consideração os métodos híbridos e críticos, obedecendo aos incidentes e valores de cada cultura. Aqui cabe muito bem o uso do hipertexto, da linguagem integrada que contempla várias facetas e vários pontos de vista no debate matemático. O hipertexto é uma ferramenta fundamental na educação no campo, porque ele é abrangente, não usa reducionismo no aprendizado e amplia a visão de mundo do estudante. Alguns exemplos seria trabalhar os números a partir de sementes, frutos da terra, plantas, folhas, remédios caseiros, energia solar e eólica, sustentabilidade a partir da reciclagem e do cuidado com a terra, com a água, com o solo, o cuidado com a preservação da ecologia, da fauna e da flora, o clima, a vegetação, o efeito estufa, o aquecimento global e efeito estufa, os seres vivos e a preservação da espécie, a história, o corpo humano e seus cuidados, medidas de terra, plantar árvores e fazer reflorestamento. Com uma pedagogia hipertextual se trabalha em sala de aula com os moradores rurais todos estes temas sem precisar buscar palavras difíceis, dicionários e internet para complicar a aprendizagem. Porém o papel do professor é facilitar e motivar a aprendizagem de maneira satisfatória, construindo conceitos práticos, de forma dinâmica.
Outra maneira de trabalhar a matemática de forma crítica e com sentido é a interdisciplinaridade, pois em conjunto com as demais disciplinas como História, geografia, ciências (os países, as capitais, etc), pode-se trabalhar em forma de projetos e o resultado será surpreendente. Esta é mais uma forma de dinamizar e engrandecer o fazer pedagógico.
A matemática para agricultores não pode ser apenas uma educação bancária, tecnicista, que reproduz fórmulas prontas e soluções de problemas já calculados no livro, sem muitas vezes o aluno saber a utilidade na prática. Isso torna rotineiro e enfadonho o modo de aprender. Deve-se preocupar em formar cidadãos críticos, capazes de transformar o saber em ideologias políticas práticas na sociedade em que ele vive, através de adaptações das contas propostas, dos conteúdos referentes aos números decimais, à potenciação, à porcentagem, bem como às operações fundamentais.Acredita-se que também o uso das calculadoras padrão e científica devem ser repensadas, sem comprometer o raciocínio matemático e não trabalhar os cálculos repetitivos e cansativos sem compreensão, sem sentido e significado para o aluno.
O construtivismo e o método de Paulo Freire, de educação popular trouxeram novidades ao dizer que ninguém educa ninguém, mas se educa em comunhão, ou seja, o aluno e o professor, ao construírem juntos o conhecimento, aprendem. Isso enfatiza quatro fatores fundamentais: metodologia, conteúdo, pedagogia e aprendizagem. Só há educação transformadora no meio rural ou no campo se houver essa ressignificação da matemática.
Percebe-se que a metodologia tradicional do ensino da matemática trouxe uma educação bancária opressora, limitada, em que se decorava a tabuada e reproduzia expressões numéricas e problemas já resolvidos desvinculados do contexto do aluno. O desinteresse, o preconceito, a evasão e indiferença para com a matemática se deve a esse passado histórico. Com a influência de autores que desconheciam a sala de aula, ou de outros países ou estados do país, influenciando assim uma desmotivação. Via no aluno apenas o fator cognitivo e ainda de forma rudimentar. Isso causou um transtorno enorme na educação por séculos. É necessário no atual pluralismo e globalização transformar a matemática numa atividade de prazer, numa ação leve, sem rigorismo. Para que isso acontece de fato é preciso realizar a reforma da educação em nível geral a começar dos anos iniciais até o ensino médio, de modo que tais princípios e postulados aqui enfatizados sejam adaptados em nível local e comunitário.
Dessa forma, os pressupostos aqui expostos objetivam humanizar a matemática e fazer a aprendizagem acontecer de forma flexível e democrática. Se cada ponto de vista é visto por um ponto, esta crítica quer despertar nos pedagogos e professores do campo e dos agricultores uma nova postura, em que se possa rever seus métodos, repensar a educação transformadora e garantir um conhecimento matemático eficiente e eficaz, no sentido de aprender não apenas fragmentos de problemas, mas um conhecimento profundo, de resolução dos problemas concretos da vida, de forma sistêmica. O conhecimento matemático, a educação matemática, os modos de ser e tornar-se professor de matemática precisam passar pelo crivo da crítica e da reconstrução processual. Só se torna real, interessante, eficiente esse processo se houver uma profunda e eficaz transformação na maneira de olhar, perceber, ensinar e viver a matemática e sua condução pedagógica.
REFERÊNCIA:
OLIVEIRA, Sabrina Silveira de. Matemáticas de formas de vida rurais: a unidade de medida. Santo Antônio da Patrulha, Rio Grande do Sul, Ed. UNISINOS, 2008.