Elementos do dever de indenizar e sua aplicação no abandono afetivo

Por Gisele Corbellini | 24/05/2012 | Direito

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, em seu estudo sobre os pressupostos, elementos e limites do dever de indenizar por abandono afetivo, ensina que o dever de indenizar decorrente do abandono afetivo deve encontrar seus elementos de configuração na funcionalização das entidades familiares, vez que estas devem tender à realização da personalidade de seus membros, com especial destaque para a pessoa dos filhos. Nesta visão, a autora apresenta os elementos clássicos da responsabilidade civil segundo este paradigma.

 

I – DANO

A ausência injustificada do pai ou da mãe origina – em situações corriqueiras – evidente dor psíquica e consequente prejuízo à formação da criança, decorrente da falta não só do afeto, mas do cuidado e da proteção (função psicopedagógica) que a presença dos pais representam na vida do filho, mormente quando entre eles já se estabeleceu um vínculo de afetividade.

 Com o estabelecimento de um vínculo de afetividade será mais fácil configurar o dano decorrente da cessação do contato e da convivência entre pais e filhos, na exata medida em que se conseguir demonstrar e comprovar que a sensação de abandono foi nociva à criança. Esta prova deve ser feita por perícia técnica, determinada pelo juízo, com o intuito de se analisar o dano real e sua efetiva extensão.

 Indagação interessante que poderia ser levantada, diz respeito ao fato de que somente filhos menores poderiam ser prejudicados pela ausência de afeto, no desempenho integral do dever de educação e convívio a ser produzido pelos seus genitores.

 Nesse sentido, como argumento de autoridade, seguem  as conclusões de Maria Isabel Pereira da Costa:

 “Assim, só os filhos menores de idade, ou incapazes, têm legitimidade para pedir indenização aos pais pela omissão do afeto. Em relação aos filhos maiores de idade e capazes, não tem cabimento indenização pela ausência de afeto por parte dos pais, porque não estão em fase de formação da personalidade. [...]. No caso do afeto, a cobrança da reciprocidade pura e simples não é conveniente, pois os filhos não têm o dever de fornecer as condições para formar a personalidade dos pais, por impossibilidade absoluta!”

Inversamente, contudo, e igualmente como argumento de autoridade a ser considerado, estão as análises oriundas de estudos psicológicos sobre o tema, segundo os quais se tem entendido que não se pode garantir que a personalidade – enquanto atributo pessoal da dignidade humana seja um processo de contínua evolução e que, por isso, não seja um dado acabado ou completo com a assunção da plena capacidade – não se modifica mais depois que esta etapa etária da vida de uma pessoa tenha sido alcançada.

 É este, portanto, um assunto a ser bem pensado e cuidadosamente tratado, no caso concreto, quando este se apresentar à consideração judicial. Novamente aqui, esquemas fechados de organização do raciocínio jurídico não podem ser aceitos sem a flexibilização das hipóteses concretas.

 

II – CULPA

Além do dano, torna-se necessária a comprovação da culpa do genitor não-guardião, que deve ter se ocultado à convivência com o filho, e deliberadamente se negado a participar do desenvolvimento de sua personalidade, de forma negligente ou imprudente. Como o caso é de abandono afetivo, com a concomitante inobservância dos deveres de ordem imaterial atinentes ao poder familiar, expressão maior da relação paterno/maternofilial, configurar-se-á a culpa em sua modalidade omissiva.

 Desta forma, na conduta omissiva do pai ou da mãe (não-guardião) estará presente a infração aos deveres jurídicos de assistência imaterial e proteção que lhes são impostos como decorrência do poder familiar.

 Assim, não há que se falar em culpa do não-guardião, sempre que se apresentar, por exemplo, fatores que o impedem de conviver com o filho, como será o caso da fixação do domicílio em distância considerável, que encareça os deslocamentos a fim do cumprimento do dever de educar e conviver, mormente em hipóteses de famílias menos abastadas, assim como na hipótese de doença do genitor que, a bem dos filhos, prefere se afastar para não os colocar em situação de risco, e, ainda, da comum hipótese de não ser sabido se “este suposto incumprimento é imputável à própria omissão do genitor não-guardião ou aos obstáculos e impedimentos por parte do genitor guardião”.

 

III – NEXO DE CAUSUALIDADE

A responsabilidade civil decorrente de abandono afetivo é calcada na ideia de culpa (teoria subjetiva), razão pela qual se torna mais difícil a sua configuração. Ainda que comprovada a culpa do genitor que assume conduta omissiva e abandona afetivamente a sua prole, mesmo com perícia psicológica que ateste os danos sofridos pelo filho abandonado, bem como a sua extensão, mais difícil será estabelecer o necessário nexo de causalidade entre o abandono culposo e o dano vivenciado.

Avulta, assim, a importância da perícia a fim de se estabelecer não só a existência do dano, como a sua causa. Necessário, portanto, a fixação, em caráter retrospectivo, da época em que os sintomas do dano sofrido pela criança começaram a se manifestar, pois não se poderá imputar ao pai que abandonou dano que tenha se manifestado em época anterior ao abandono.

 

IV – PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS

            A primeira vez que o tema foi objeto de recurso num Tribunal Superior foi no ano de 2005. No julgamento do Recurso Especial 757.411-MG, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em decisão publicada em março de 2006, o entendimento foi de que o abandono afetivo é incapaz de gerar reparação pecuniária.

             Entretanto, a primeira decisão sobre a matéria ocorreu no Rio Grande do Sul. Em sentença proferida pelo juiz Mario Romano Maggioni, da Comarca de Capão da Canoa, o pai foi condenado pelo abando moral da filha, tendo que arcar com o pagamento de 200 salários mínimos. Esse caso, por ter corrido à revelia, não chegou ao Tribunal de Justiça do Estado, tendo sentença transitado em julgado.

             Outro precedente é a decisão da 31ª Vara Cível de São Paulo. Neste caso, o juiz Luís Fernando Cirillo condenou um pai a pagar à filha indenização no valor de R$ 50 mil, para reparação de dano moral e custeio do tratamento psicológico desta. Por meio de uma perícia técnica, foi constatado que a jovem apresentava conflitos, dentre os quais de identidade, deflagrados pela rejeição do pai. Ela deixou de conviver com ele ainda com poucos meses de vida, quando o pai separou-se da mãe. Ele constituiu nova família e teve três filhos. A jovem abandonada sentiu-se rejeitada e humilhada em razão do tratamento frio dispensado a ela pelo pai, especialmente por todos serem membros da colônia judaica de São Paulo, “crescendo envergonhada, tímida e embaraçada, com complexos de culpa e inferioridade”, realizando, por isso, tratamento psicológico.

        Na sentença, o juiz Cirillo afirma que “a decisão da demanda depende necessariamente do exame das circunstâncias concretas, para que se verifique, primeiro, se o réu teve efetivamente condições de estabelecer relacionamento afetivo maior do que a relação que afinal se estabeleceu e, em segundo lugar, se as vicissitudes do relacionamento entre as partes efetivamente provocaram dano relevante à autora”.

  Seguem colacionadas ementas de outras decisões proferidas favoravelmente às indenizações: 

EMENTA:  ECA. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. DESCUMPRIMENTO DO DEVER INERENTE AO PODER FAMILIAR. ADOLESCENTE QUE PRETENDE APROXIMAÇÃO COM O PAI. ABANDONO AFETIVO POR PARTE DO GENITOR. INFRAÇÃO AO ART. 249 DO ECA CARACTERIZADA. CONDENAÇÃO QUE SE PÕE COMO DEVIDA. MULTA NO MÁXIMO COMINADA. REDUÇÃO, PORÉM, QUE SE RECOMENDA PARA O MÍNIMO LEGAL. VALORAÇÃO DAS DIRETRIZES BALIZADORAS. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70037322781, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Ari Azambuja Ramos, Julgado em 12/08/2010).

 INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS - RELAÇÃO PATERNO-FILIAL - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE O dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana. (TJ-MG – Ap. Cív. 2.0000.00.408550-5/000 – Publ. em 29-4-2004). 

            E, em sentido contrário: 

EMENTA:  APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ABANDONO AFETIVO NÃO DEMONSTRADO. DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA. A reparação de danos que tem por fundamento a omissão afetiva, no âmbito do direito de família, é sabidamente de interpretação restritiva, pois que, visando a traduzir o afeto humano em valor monetário, é marcada por enorme subjetividade, e não se configura pelo simples fato de os pais não terem reconhecido, de pronto, o filho. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70033848615, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Conrado Kurtz de Souza, Julgado em 14/04/2010)

 EMENTA:  APELAÇÃO CÍVEL. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. ABANDONO AFETIVO E MATERIAL. DESCUMPRIMENTO INJUSTIFICADO DOS DEVERES INERENTES À PATERNIDADE. A impressão que fica é que o apelante está aqui se insurgindo contra a decisão e ofertando alimentos apenas para não dizer que perdeu a filha para outro homem, para o atual marido de sua mulher, em uma mera disputa de poder. Agora quer a filha porque soube que outro a quer. O apelante foi um dia pai de V., na concepção e no registro civil. Além disso, nada mais. Eles não se conhecem, nada sabem um do outro, porque o apelante assim o quis. Outro foi o verdadeiro pai da menina. E este é o atual marido da mãe, que formou com ela verdadeira relação socioafetiva, que, tudo indica, levará à concretização da adoção. O ato de ser pai não se limita à procriação, mas exige amar, compartilhar, cuidar, construir uma vida juntos. E se a procriação é apenas um dado, a efetiva relação paterno-filial exige mais do que apenas os laços de sangue (J. Delinski). NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70008755159, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 11/08/2004) 

RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido. (STJ – Resp. 757411 – MG – Publ. em 27-3-2006).

DANOS MORAIS DECORRENTES DO ABANDONO AFETIVO. A simples recusa do réu em reconhecer a paternidade investigada não gera, por si só, dano moral indenizável, porquanto sua configuração dependa do preenchimento dos requisitos da responsabilidade civil. (TJ-SC – Ap. Civ. 2006.007021-8 – Julg. Em 17-04-2007). 

Nota-se que a tendência jurisprudencial está no indeferimento do pedido de dano moral. Isso acontece porque existe a necessidade de se comprovar todos os pressupostos da responsabilidade civil, a exata apreciação das provas e das partes envolvidas. 

            A falta de valores humanos ensinados na infância traz prejuízos consideráveis na vida adulta, abarrotando o Judiciário de ações que poderiam ser evitadas pela simples convivência familiar e a interação de seus membros em uma sociedade fraterna e digna. 

Em relação ao afeto, pode-se dizer que não é decorrente do vínculo genético. Se não houver uma tentativa de aproximação de ambos os lados, a relação entre pai e filho estará predestinada ao fracasso. A relação afetuosa deverá ser fruto de aproximação espontânea, cultivada reciprocamente, e não por força judicial. Exceto em casos extremos, onde haja comprovado nexo causal entre dano específico e o abandono, não havendo razão para o reconhecimento do dever de reparação. Após a lide, uma barreira intransponível os afastará ainda mais, sepultando qualquer tentativa futura de reconciliação.

 Portanto, é necessário analisar cada caso concreto, em busca do cerne problemático. A partir de então, deve-se traçar caminhos que possam equalizar e reavaliar situações criadas ou não pela natureza humana.