Educação Sexual: redescobrindo identidades na prática crítico-filosófica dos pressupostos freireanos

Por Gabriela Costa Faval | 13/12/2016 | Educação

 

Resumo

O presente artigo traz como proposta pedagógica a prática crítico-filosófica da Educação Sexual com pressupostos freireanos, aplicada em duas escolas públicas de Belém(PA) através do Grupo de Estudo e Trabalho em Educação Freireana e Sexualidade – GETEFS, vinculado ao Núcleo de Educação Popular Paulo Freire – NEP. Trata-se de uma pesquisa-ação, de abordagem qualitativa, realizada a partir da implantação de grupos de discussão em turmas do Ensino Fundamental e Médio, em duas escolas de Belém(PA), acompanhadas ao longo de um ano letivo, buscando a relação dos saberes curriculares com os conceitos existentes, prévios ou escolarizados, sobre sexualidade. Os sujeitos participantes são educandos dos 3º e 5º anos do Ensino Fundamental e do 3º ano do Ensino Médio, com idades entre oito e dezenove anos. Para sistematização e coleta de dados foram construídas categorias temáticas. Entre os resultados desta pesquisa destacamos a dialogicidade atingida ao longo da prática, tanto com os alunos quanto a partir deles e de suas vivências, confirmando a filosofia crítica e os pressupostos freireanos como instrumentos viáveis para uma prática transversal e interdisciplinar que permitiram aos educandos uma compreensão maior da realidade na qual estão inseridos e as relações de poder que as constituem. Igualmente, ressaltamos relatos pessoais de casos de violência doméstica e sexual, e mudanças de comportamento da maioria dos alunos em relação à sua visão do outro e de si mesmos, alterando as relações interpessoais no espaço escolar.

 

Introdução:

A sexualidade humana transita pelas escolas brasileiras, públicas e privadas, sem que lhe seja dada a devida relevância. Crianças, adolescentes e jovens entram e saem das instituições educacionais com as mesmas dúvidas, geração após geração. Os gestores limitam seu papel de educadores sexuais a palestras médicas sobre saúde, órgãos genitais, drogas, AIDS, DSTs e gravidez precoce, sem acompanhar o próprio tempo e tornando a escola, cada vez mais, um espaço dessexualizado e dessexualizante dos sujeitos que a constituem. A prática aqui apresentada pelo GETEFS, consiste em estratégia metodológica de uma pesquisa-ação de abordagem qualitativa, surgido a partir de uma pesquisa de TCC iniciada em 2012, na qual foram implantados grupos de discussão em turmas do Ensino Fundamental e Médio, acompanhadas ao longo de um ano letivo, buscando trabalhar a relação dos saberes curriculares com os conceitos existentes, prévios ou escolarizados, sobre sexualidade, prática que se estendeu a outras duas escolas públicas, aqui chamadas de Escola 1 e Escola 2.

Ao longo de um ano letivo, as pesquisadoras registraram conceitos, tabus, opiniões individuais e coletivas desses sujeitos e propuseram novas situações, confrontando as opiniões postas com outras possibilidades, propiciando o surgimento da criticidade dos educandos e utilizando os saberes dos próprios educandos como instrumentos dialógicos. Aqui evidenciamos os dois elementos principais de nossa práxis: a atitude filosófica que desenvolve a criticidade e a compreensão de si mesmo e do meio, e os pressupostos freireanos que questionam e instigam a prática docente, dando ênfase aos saberes extra-escolares do educando e buscando relacioná-los aos saberes escolarizados.

Entendemos que a sexualidade, mais do que o ato sexual em si, é o meio de diálogo entre o sujeito, o meio e a sociedade. Não podemos conceber, então, que a sexualidade seja limitada à biologicidade ou à prevenção de doenças, quando é vista, por nós, como elemento de identidade, como resultante de um processo cultural, histórico, religioso, sociológico e ético.

Para Bernardi (1985) a escola é uma instituição que acredita estar realizando Educação Sexual, mas que, na verdade, estaria transmitindo nada menos que “uma informação desencorajante e enfadonha, acompanhada de normas que visam salvaguardar as instituições”(p.29). Para o autor, a preocupação real da Educação Sexual aplicada nas escolas não é preparar os educandos para a vivência plena e saudável da sexualidade, mas sim, dogmatizá-los em regras morais impostas pela sociedade, que venham a garantir a manutenção das organizações institucionalizadas, ou seja, a manutenção do modelo político-econômico vigente.

Não podemos deixar de atribuir-lhe razão ao verificar que as normas morais impostas aos sujeitos, no tocante à vivência da sexualidade, seguem um domínio desses indivíduos e garantem a manutenção de poderes.

Historicamente os professores são preparados para ensinar as disciplinas fragmentadamente, como afirma Lombardi (2003), em uma representação da própria fragmentação da sociedade na qual estamos inseridos. Segundo o autor,

[...] quando se fala em trabalho interdisciplinar na escola é preciso tomar cuidado para não se ocultar toda essa realidade, colocando-o como um recurso que se poderia sobrepor a toda essa trajetória histórica da fragmentação da sociedade, do trabalho, das ciências, das universidades, da profissão e da própria escola” (LOMBARDI, 2003, p.181)

A fragmentação social, para Lombardi, se reflete no processo escolar, quando as disciplinas são ensinadas sem que seja posta entre elas qualquer relação. Os elementos sociais, segundo o autor, são vistos da mesma forma, desvinculados, individualizados e, portanto, as lutas sociais também passam a ser realizadas fragmentadamente. Essa fragmentação, ainda segundo o autor, tem reflexos sobre a sexualidade e os demais temas transversais (ética, religiosidade, cultura, música), que foram erroneamente desvinculados do processo escolar, como se não fizessem parte da vivência dos sujeitos, como se não estivessem diretamente relacionados à constituição do indivíduo em si. Uma transdisciplinaridade negada pela prática educativa e que contribui para uma sexualidade fragmentada, contida, controlada e inconsistente. 

  1. A Sexualidade em Paulo Freire – do cientificismo à dialogicidade

Apesar de não haverem registros diretos de Paulo Freire sobre a sexualidade humana ou a Educação Sexual, a referência que fazemos utilizando o autor deve-se à dialogicidade, à prática docente e à valorização dos saberes do educando por parte do processo educacional, elementos que constituem Educação Popular, por ele instituída.

Segundo o autor, a educação dialógica parte da compreensão que os alunos têm de suas experiências de vida cotidiana, do concreto, do senso comum, para chegar a uma compreensão rigorosa da realidade. Para ele

O rigor científico vem de um esforço para superar uma compreensão ingênua do mundo. A ciência sobrepõe o pensamento crítico àquilo que observamos na realidade, a partir do senso comum. (FREIRE, 1986, p.69)

Desta forma, o autor coloca em questionamento a prática educativa que põe como verdade apenas o que nos é cientificamente apresentado ou comprovado e que nega tudo o que não lhe seja consenso. Assim, o que os educandos trazem como saberes de seu convívio social e familiar passa a ser ignorado, negado e criticado duramente pelos educadores e pela escola, atingindo a formação identitária desse sujeito e provocando a aculturação ou a evasão escolar. Dentre os saberes negados pelas instituições escolares, e que fazem parte dessas vivências familiar e socialmente constituídas, está a sexualidade.

O senso comum, no qual a sexualidade transita é considerado base de vivências e experiências que constituem o conhecimento do indivíduo, e passa a utilizar-se dele para construir a criticidade como afirma Freire ao dizer que,

Como presenças no mundo, os seres humanos são corpos conscientes que o transformam, agindo e pensando, o que os permite conhecer ao nível reflexivo. Precisamente por causa disto podemos tomar nossa própria presença no mundo como objeto de nossa análise crítica. Daí que, voltando-nos sobre as experiências anteriores, possamos conhecer o conhecimento que nelas tivemos. (FREIRE, 1981, p.72)

Assim, a prática não é negar o senso comum, mas criticizar a realidade e configurar conceitos a partir dele. O que o educando traz como “bagagem” não deve ser ignorado pela escola, mas utilizado por ela para gerar novas experiências, novas possibilidades dialógicas e, a partir dessas, que o educando confirme ou refute seus conceitos. A sexualidade em Freire, portanto, deve ser entendida como integrante do senso comum e trabalhada pela escola como um saber a ser ampliado, apresentando-lhe novos elementos para que o educando compreenda os elementos que a constituem, as relações de poder que a permeiam e possa questionar sua própria visão a respeito do senso comum que a constitui.

Nesse sentido, a proposta freireana para a Educação Sexual é, através de certas contradições sua condição de opressão, de privação de direitos, de significação que exige do sujeito uma ação, uma resposta. Assim, “a ação educativa e política não pode prescindir do conhecimento crítico dessa situação, sob a pena de se fazer bancária ou de pregar no deserto” (FREIRE, 1977, p.102).

O que observamos nas salas de aula é justamente esse “pregar no deserto”, pois os conteúdos utilizados e impostos pela escola tornam-se tão castradores, privadores da liberdade do “ser mais” que humaniza o sujeito, que se tornam desinteressantes, enfadonhos para o educando e não surtem efeito algum.

É de conhecimento comum a curiosidade infantil, e esta não pode ser perdida por um educador. A curiosidade é o ponto de partida para o desenvolvimento filosófico de uma criança, à medida que as respostas puxam novas perguntas, damos a ela o poder de criticisar a informação.

Da mesma forma se trata diversos assuntos dentro do tema sexualidade. Conforme o aluno recebe informações, ele amplia sua capacidade de criticar a anterior, o que Paulo Freire chamou de autonomia.

 “A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta faz parte integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos”. (Freire, p.32, 1996)

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