EDUCAÇÃO SEXUAL: PRÁTICA INTERDISCIPLINAR, CRÍTICA, FILOSÓFICA E FREIREANA

Por Gabriela Costa Faval | 13/12/2016 | Educação

INTRODUÇÃO

Para explicitar-se qualquer problemática da Educação Sexual, primeiramente é preciso que se entenda a sexualidade como condição básica para a existência pessoal, dimensionada em um processo biológico, psicológico, sociocultural e existencial do indivíduo. Estes processos definirão a formação do EU, a abertura ao outro (TU), as relações interpessoais (NÓS), e ao mundo, a expressão social do ser homem e do ser mulher, expressão e consciência de vida e morte e o agir moral (BRASIL, 2006). Segundo Freud, “é por meio do prazer que sente, nas várias partes do corpo, que a criança organiza a própria existência”. Popularmente se acredita que a pulsão sexual está ausente da infância e só desperta a partir da puberdade, “equívoco responsável por nossa ignorância sobre as condições básicas da vida sexual”. (FREUD, 2006, p. 22)

É pela compreensão ampla de sua sexualidade que o indivíduo constrói sua linguagem social, sua afetividade e se apropria de seu corpo criando suas realizações ou frustrações. Essas punções sexuais, portanto, estão presentes desde o nascimento e, obviamente, apresentam-se no espaço escolar. Assim, compreende-se que a Educação Sexual jamais poderia ser trabalhada de forma pontual, restrita às questões biológicas e preventivas do ser humano, ou compreendida em uma única fase do desenvolvimento.

Segundo Altmann “cabe à escola – e não mais apenas à família – desenvolver uma ação crítica, reflexiva e educativa que promova a saúde das crianças e dos adolescentes” (ALTMANN, 2001, p. 2). Entendemos, aqui, que ao referir-se à saúde, Altmann não pretendia limitar-se a apenas a vislumbrar o caráter biológico do indivíduo, ou trabalhar-se pontualmente a saúde e a doença, mas sim trabalhar a saúde em toda sua abrangência, no campo físico, psicológico e social e, portanto, englobando a sexualidade em sua total amplidão.

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais, no tocante aos Temas Transversais, a implantação de Educação Sexual nas escolas significou uma grande contribuição “para o bem-estar das crianças e dos jovens na vivência de sua sexualidade atual e futura” entendendo-a inclusive, em sua forma mais ampla, como forma de expressão cultural, com dimensões biológicas, psíquicas e socioculturais e sendo um complemento à função familiar (BRASIL, 2006, p. 8-10).

A publicação dos PCNs, em 1996, representou um salto extremamente importante para a consolidação da Educação Sexual no espaço escolar. Uma proposta que visava, pela transversalidade, ampliar as questões que envolviam a sexualidade. No texto indicavam que o trabalho pedagógico deveria ser feito, principalmente, através da atitude do educador, e que esta não devia estar amparada em juízos pessoais de valores, mas na prática da contextualização de atitudes e manifestações de sexualidade dos alunos, surgidas no contexto escolar, objetivando “o esclarecimento e a problematização das questões que favoreçam a reflexão e a resignificação das informações, emoções e valores recebidos e vividos no decorrer da história de cada um” (BRASIL, 2002, p.68). Isto, no entanto, não significou o efetivo desenvolvimento do tema em todas as escolas brasileiras. A proposta trazida “mostrou-se de difícil implementação devido à ausência de formação específica, falta de condições para realização de trabalhos interdisciplinares, desencontro de professores, falta de estrutura e de material, desinteresse, medo de falar sobre o assunto, dentre outros motivos” (ALTMANN, 2005, p.5).

Segundo os PCNs era clara a falha das escolas na abordagem da temática:

Praticamente todas as escolas trabalham o aparelho reprodutivo em Ciências Naturais. Geralmente o fazem por meio da discussão sobre a reprodução humana, com informações ou noções relativas à anatomia e fisiologia do corpo humano. Essa abordagem normalmente não abarca as ansiedades e curiosidades das crianças, nem o interesse dos adolescentes, pois enfoca apenas o corpo biológico e não inclui a dimensão da sexualidade. (BRASIL, 1998, p. 292)

Entende-se, portanto, a necessidade de se discutir com os alunos a realidade concreta, visto que ainda nos deparamos com essa mesma realidade escolar, associando-a à disciplina cujo conteúdo se ensina, como afirma Freire ao defender que se deve estabelecer “uma ‘intimidade’ entre os saberes curriculares fundamentais e a experiência social destes enquanto indivíduos” (FREIRE, 1996, p.30).

No entanto, apesar da proposta de transversalidade apresentada pelos PCNs recomendar este direcionamento para a prática docente, as discussões sobre sexualidade em sala de aula não se ampliaram, permanecendo restritas ao campo biológico. Altmann, citando Bozon (2004), se refere à Educação Sexual realizada pela escola como uma forma de “administrar” o modo como os adolescentes vivenciam e ingressam na vida adulta, referindo-se à primeira relação sexual. Segundo a autora Maria Werebe, “em geral, a Educação Sexual ‘recuperada’ pelos poderes institucionalizados, torna-se um instrumento de repressão e controle, passando a atender objetivos que, via de regra, não correspondem aos interesses e às necessidades dos educandos” (WEREBE, 1980: 10).

Para Bernardi (1985) a escola é dessexualizada e dessexualizante. Uma instituição que acredita estar realizando Educação Sexual, mas que, na verdade, estaria transmitindo nada menos que “uma informação desencorajante e enfadonha, acompanhada de normas que visam salvaguardar as instituições”(p.29). As críticas a esse enfoque castrador e superficial não são poucas e deixam a certeza de que a transversalidade não atingiu plenamente os objetivos de sua proposta inicial.

É necessário que a Escola seja entendida em um papel secundário quanto à responsabilidade de iniciar a discussão com o aluno sobre sua sexualidade, mas no papel principal de suprir a carência de informações do educando desde a infância, através de uma Educação Sexual clara, sem falsos pudores, problematizadora, não somente a respeito da sua sexualidade, mas também da sua saúde, com o intuito de auxiliá-lo a encontrar sua própria identidade, construir seus critérios morais e avaliar seu contexto, escolhendo o melhor caminho para tornar-se um sujeito crítico, autônomo e social.

Historicamente os professores são preparados para ensinar as disciplinas fragmentadamente, como afirma Lombardi (2003), em uma representação da própria fragmentação da sociedade na qual estamos inseridos. Segundo o autor,

[...] quando se fala em trabalho interdisciplinar na escola é preciso tomar cuidado para não se ocultar toda essa realidade, colocando-o como um recurso que se poderia sobrepor a toda essa trajetória histórica da fragmentação da sociedade, do trabalho, das ciências, das universidades, da profissão e da própria escola” (LOMBARDI, 2003, p.181)

Nesse debate, a transdisciplinaridade é a via para se analisar um conteúdo em sua totalidade, como coloca o próprio autor:

Com a compreensão de que a educação é em si a totalidade do contexto no qual está inserida, a prática pedagógica deve buscar a superação da compartimentação do ensino através do trabalho em suas especificidades, mas com a clareza de que a compreensão da totalidade é que produz a dimensão do trabalho das partes (LOMBARDI, 2003, p.182).

Essa totalidade, segundo o autor, faz-se necessária à compreensão das especificidades, para que cada disciplina permita sua compreensão em um contexto histórico e social, mediante uma mudança na postura político-pedagógica, assumindo, com real competência, o espaço de sala de aula.

Tomando por referência estas colocações, entende-se que os conteúdos disciplinares não podem ser explicados por si só, pois perpassam uns pelos outros em uma estreita relação social, política, cultural, econômica e ideológica, precisando ser relacionados por meio da interdisciplinaridade.

Mediante esse contexto escolar de fragmentação entre os saberes, levantamos como problema de investigação: de que forma a educação sexual pode ser trabalhada pedagogicamente em sala de aula, de maneira interdisciplinar e em diálogo com os saberes experienciais dos educandos?

Para realizar essa investigação optamos por uma pesquisa-ação na qual apresentamos uma proposta de ação pedagógica de educação sexual norteada por três objetivos: (01) desenvolver a prática interdisciplinar da Educação Sexual na escola; (02) realizar a prática da educação sexual, por meio da construção do pensamento filosófico crítico e (03) trabalhar pedagogicamente o respeito aos saberes experienciais dos educandos.

 Propomos no currículo da Educação Sexual, não a vinculação a uma disciplina específica, como normalmente se vislumbra ao mencionar a curricularização desta, mas inserindo-a ao conteúdo de todas as disciplinas, o que forçaria os docentes a se tornarem mais preparados para o surgimento dos questionamentos e problemáticas sexuais, independentemente à disciplina que ministrem.

Buscamos construir o pensamento filosófico crítico, que permite ao indivíduo questionar sua realidade pessoal e social. Conjuntamente ao uso da Filosofia, inserimos o conceito freireano de respeito e valorização dos saberes do educando:

[...] pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam a ela saberes socialmente construídos na prática comunitária – mas também discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos. (FREIRE, 1996: 30)

Para Chauí (1999) a atitude filosófica é inerente ao ser humano e está presente no seu cotidiano através de uma constante interrogação sobre si mesmo, suas crenças, seus sentimentos e valores. E define a Filosofia como:

A decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido. (CHAUÍ, 1999:12)

Se as ciências são resultados de pensamentos filosóficos que questionam a realidade para poder agir sobre ela, a Filosofia, ainda segundo Chauí, se definiria como a “arte do bem-viver”, estudando paixões e vícios humanos, liberdade, vontade, a razão, impondo limites aos desejos e paixões humanas” (p.13). Neste sentido, não seria ela o instrumento que melhor nos levaria a questionar nossa sexualidade e reorganizá-la dentro do meio no qual nos inserimos

[...]

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