É possível a negociação de contratos futuros de água como uma commodity?

Por Sérgio Santos | 21/03/2017 | Adm

Introdução

 

Uma forma de fazer prognósticos para este terceiro milênio é examinar as formas de relacionamento das sociedades humanas com os ecossistemas. As sociedades humanas, apesar de diversificadas em termos de cultura e desenvolvimento, não foram capazes desenvolver tecnologias capazes de proteger a Natureza que sempre teve um fundamento histórico.  A partir da segunda metade do século passado, a urbanização e a industrialização iniciaram um processo de poluição dos rios e lagoas, não escapando sequer os grandes sistemas hídricos da Amazônia, causando o empobrecimento de sua biodiversidade.

 

Estudos realizados pelos organismos mundiais como Unesco, FAO e as Organizações Não Governamentais – ONGs  mostram que humanidade começa a se preocupar com a questão da água potável no mundo. Principalmente porque num prazo máximo de 25 anos os recursos hídricos se tornarão um produto raro.

 

 

Quadro Atual

 

No planeta inteiro, 97,2% da água faz parte dos oceanos, 2,15% concentram-se sobre forma sólida nas geleiras das regiões Ártica e Antártica, 0,63% em rios subterrâneos e apenas 0,02% em cursos d´água superficiais disponíveis, que certamente serão disputados agressivamente pelos 7 bilhões de habitantes, com possibilidade desse número dobrar nos próximos quarenta anos, conforme as previsões da ONU. Da água potável disponível no mundo, 8% encontra-se nas bacias hidrográficas brasileiras, ou seja, de cada milhão de litros de água do planeta, 200 litros são de água potável e 16 litros estão no Brasil. Desta maneira, é possível imaginar as atenções mundiais voltadas para o Brasil visando toda sorte de exploração econômica, perigosamente irracional e predatória.

 

Apesar do enfoque alarmista, há muito tempo que os grupos ambientalistas vêm anunciando que os recursos hídricos estão acabando e que, ao contrário de outros recursos naturais classificados como renováveis, a água é finita. E se as fontes de água secarem, os efeitos serão extremamente danosos.

 

As questões são basicamente relacionadas com a quantidade e com a qualidade da água. Se os agricultores usam agrotóxicos, há chances de que as chuvas levem substâncias tóxicas para os reservatórios que abastecem as cidades, provocando sérias mudanças. Se, ao contrário, houver cidades antes de áreas rurais a falta de tratamento do esgoto doméstico e industrial prejudica a qualidade da água que o produtor usa na irrigação, produzindo ciclos de doenças que embora erradicadas voltam em novos surtos epidêmicos, atingindo primeiramente as comunidades carentes.

 

 

A  Água Como  Instrumento de Guerra

 

A água é o único bem humano que representa culturalmente diversas faces da humanidade, seja  econômico, ecológico,  legal, religioso ou técnico. É também o único bem econômico de acesso livre. Se tornando um bem precioso, gerará uma grande disputa pela sua  posse como no Oriente Médio, em que a escassez de água já causa instabilidades políticas e a perspectiva de intensificação de guerras pela “posse da água”. Nessa região tem visto muitos conflitos sobre a água. O rio Eufrates tem sido uma fonte de conflito entre a Turquia e a Síria, quando a Turquia fechou as comportas, afetando o fluxo de água para a Síria e o Iraque.

 

A história é cheia de exemplos onde o desvio de água levou a guerras ou tragédias ambientais. A antiga União Soviética desviou os rios para cultivos nos anos 60, acabando por secar o Mar de Aral, na Ásia Central, onde os barcos de pesca estão encalhados em terra firme.

 

 

Consumo de Água no Mundo

 

Existe uma disparidade muito grande com relação ao consumo de água per capita. Muitas nações estão abaixo do mínimo estipulado pela ONU, a exemplo da China que sofre com o seu elevado volume populacional em áreas em grande parte desertificadas. Existem, inclusive, áreas com estresse hídrico quando o consumo de água é superior à capacidade de renovação local, tais como alguns países do Oriente Médio, a Índia e algumas regiões no Brasil.

 

Na Jordânia, cada habitante tem acesso a cerca de 85 litros de água por dia, enquanto os americanos utilizam 600 litros. Israel, Jordânia e os palestinos juntos, demandam 3,2 bilhões de metros cúbicos de água, mas a média das chuvas anuais na região não supera 2,5 bilhões de m³. Os 700 milhões restantes são retirados de reservas subterrâneas, sem condições de renovação.

 

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), cada pessoa gasta em média 40 m³ de água por ano (100 litros/dia),  para atender às necessidades diárias.

 

Apesar do progresso considerável que tem sido realizado recentemente, 800 milhões de pessoas ainda não têm acesso a fontes de água potável de qualidade.

 

 

Pais
Consumo p/c
EUA
600
ITALIA
385
MÉXICO
365
NORUEGA
300
ALEMANHA
195
BRASIL
185
INDIA
135
CHINA
85
JORDANIA
85
GANA
35
ETIOPIA
15

Fonte: http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/geografia/consumo-agua-no-mundo.htm

 

 

Gestão da Água no Mundo

 

A poluição deste bem é grave. Primeiramente, o grande poluidor das águas são os governos locais que deveriam estar tratando o esgoto de suas cidades antes do despejo. Segundo o Trata Brasil, 48,6% da população tem esgoto tratado. Em segundo lugar, a agroindústria, face ao uso desordenado de defensivos e agrotóxicos, que acabam por contaminá-la. Em terceiro, as atividades mineradoras, e por último, a indústria com a emissão de seus efluentes tóxicos. Todos se utilizando da água para impulsionar suas atividades sem, no entanto, devolverem nas mesmas condições de qualidade quando captada.

 

É necessária uma mudança radical na forma como os recursos hídricos são utilizados, sob o risco de caminharmos aceleradamente para um desastre global e apenas discutir a gestão da água quando há emergências, como o caso da região de Everglades na Flórida, EUA, que estão obrigando à reversão de projetos, onde o governo americano investiu cerca de US$ 300 milhões  para fazer o Rio Shark voltar a correr através do pântano, que filtrava naturalmente suas águas. O sistema Everglades abastece 4 milhões de pessoas na região de Miami, onde a qualidade da água é considerada uma das piores do país, justamente porque a drenagem para agricultura eliminou o filtro natural.  

 

Outro exemplo é o do Rio Yang-Tse, na China, que corria através de um complexo sistema de lagos e várzeas, drenados e modificados para uso agrícola. As modificações são a causa das inundações, que tem desalojados milhões de chineses todos os anos nas margens do Yang-Tse. O governo chinês também está investindo na reversão das drenagens e reabertura dos lagos para conter a força das águas nas enchentes.

 

Além dos eventos que permitem a troca de informações, existem projetos sendo realizados em todo mundo no sentido de testar as teorias e implementar novas ferramentas. Esses experimentos são patrocinados pelos próprios governos, muitas vezes com apoios externos, de organizações mundiais ou da iniciativa privada, e que é uma tendência em ascensão. Entretanto, todo esforço feito até o momento, ainda é muito pequeno, comparado com o quadro que se anuncia.

 

Um desses casos de sucesso e que tem sido apontado é a dessalinização da água do mar que vem sendo utilizada em países do Oriente Médio e também nas ilhas do Caribe. É um processo caro, mas há casos em que é a única maneira de se ter água potável. E há países que estão tratando o esgoto para consumo humano (reuso) como a Estados Unidos, Israel e Namíbia e outros  tentando guardar água de chuva que podem para o período das secas.

 

No Caribe, por exemplo, a água do mar é dessalinizada. Para cada metro cúbico de água - uma caixa de mil litros - custa US$ 1,50, o equivalente a R$ 4,50. No Brasil, a mesma medida custa R$2,50.

 

 

Gestão da Água no Brasil

 

No caso brasileiro, uma das propostas é o manejo integrado das bacias hidrográficas. Os governos, as concessionárias de água e as comunidades em geral devem discutir abertamente sobre a quantidade e a qualidade da água, e, com isso, desenvolver técnicas de irrigação e tratamento de esgoto, devolvendo à Natureza uma água ao menos semelhante à que ela  emprestou para a sobrevivência humana.

 

Há várias necessidades para se implementar este tipo de manejo:

 

  • A existência de arcabouço legal coerente que permita a ação preventiva e corretiva das organizações que trabalham diretamente com os recursos hídricos,
  • Instituições que administrem as bacias hidrográficas e
  • A disponibilidade de informações para as pesquisas e os projetos de cooperação.

 

A Política Brasileira de Recursos Hídricos, instituída pela Lei 9.433/97, é exemplo de civilidade dentro e fora do país pelos novos paradigmas que incorporou. Sua implementação tem sido difícil por se tratar de uma nova maneira de ver a água pelos três grupos: governo, empresas e usuários.

 

O governo brasileiro também implementou a criação  da ANA - Agencia Nacional de Águas, que funciona nos mesmos moldes de outras agências reguladoras (ANP - Petróleo, ANATEL - Telecomunicações, ANS – Saúde, etc.,)  que é um organismo gestor e fiscalizador de prestadores de serviços públicos e privados de distribuição e fornecimento de água.

 

Segundo o jornal El Pais (15/06/2015),  remunicipalização da água é considerada uma tendência mundial. Em 15 anos, 235 cidades e cerca de 106 milhões de habitantes retomaram a gestão do tratamento e fornecimento de água das mãos de empresas privadas. Entre elas pequenos municípios de países pobres, mas também grandes capitais como Berlim, Paris ou Buenos Aires. Embora no Brasil essa tendência seja observada de longe, Itu, um município no interior de São Paulo que sofreu drásticos cortes de água e protestos violentos, anunciou a intervenção da concessionária Águas de Itu.

 

Embora o valor da água seja um motivo para intensa discussão, o Brasil está numa situação confortável em comparação aos demais países do mundo. Devido ao seu potencial hidrográfico, o Brasil poderia ser um dos maiores exportadores de água potável do planeta, pois no seu território está 8% de toda água limpa do mundo. No entanto, apesar  do Brasil ser um enorme reservatório natural, a população não está concentrada nas regiões com grande potencial hidrográfico, pois 70% de toda água potável está na região amazônica enquanto que 30% está irregularmente espalhado no pais, onde vive 93% da população. Além disso, existem as perdas no sistema de distribuição de água no Brasil que chegam a 40%, enquanto a média internacional é de 15%. Como exemplo, podemos citar as cidades de São Paulo e Campinas que disputam o uso de bacias hidrográficas para seu próprio abastecimento, além do planejamento conjunto de consumo.

 

As responsabilidades frente a racionalização no consumo da água estão em todas as esferas sociais. No que se refere ao poder público, dos cerca  5.570 municípios brasileiros, menos de 10% estão realmente preocupados com os efluentes a nível de redução da poluição hídrica e tratando convenientemente o esgoto das cidades. Desta forma, a baixa eficiência das prefeituras municipais, tem sido o principal causador de danos para o meio ambiente. É preciso alguma forma de cobrança de responsabilidade nas gestões públicas municipais, pois na maioria dos municípios brasileiros, os aspectos ambientais não tem prioridade alguma dentro das administrações municipais, deixando o verdadeiro interesse e comprometimento com as causas sociais, em plano secundário.

 

Como tentativas de administração dos recursos hídricos, várias cidades paulistas decidiram cobrar pelo uso da água. Atualmente se cobra pelo serviço de tratamento e pelo fornecimento, não pela commodity. O Consórcio Piracicaba-Capivari, instituído por 8 cidades do interior do estado de São Paulo recebe a atenção de todo o Brasil por implantar o primeiro programa de solidariedade financeira voltada para a recuperação dos mananciais. O Consórcio introduziu um ensaio da cobrança pelo uso da água, nas bacias dos rios Piracicaba e Capivari. Esta contribuição foi feita pelos serviços de água, através do incremento de R$ 0,01/m3 no valor da água vendida (1999).

 

A aprovação da Lei nº 12.183/2005 que dispõe sobre a cobrança pela utilização dos recursos hídricos do domínio do Estado de São Paulo, sobre os procedimentos para fixação dos seus limites, condicionantes e valores e dá outras providências foi um referencial. A cobrança pela utilização dos recursos hídricos objetiva entre outras coisas:

  • Reconhecer a água como bem público de valor econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor;
  • Incentivar o uso racional e sustentável da água.

 

O Projeto de Integração do Rio São Francisco é a maior obra da Política Nacional de Recursos Hídricos, com o objetivo de garantir a segurança hídrica para mais de 390 municípios do Nordeste Setentrional, que enfrenta sérios problemas com a seca.

 

O empreendimento, além de recuperar 23 açudes da região, construirá outros 27 reservatórios, além de 4 túneis, 14 aquedutos e 9 estações de bombeamento, em 477 quilômetros de extensão em dois eixos (Norte e Leste) de transferência de água do rio São Francisco. A obra beneficiará um total estimado de 12 milhões de pessoas nos estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Além de água, a obra leva também emprego e renda, promovendo inclusão social às comunidades.

 

 

A Água como Commodity

 

A água é o único recurso natural necessário para sustentar a vida no planeta, tornando-se  a mercadoria mais importante na Terra. Segundo o Banco Mundial, 80 países já encontram problemas por escassez de recursos hídricos, com a população crescendo mais rapidamente onde a água já é escassa. A água além de ser um recurso político estratégico, pode representar divisas, como o Canadá, que exporta água para França, ou um bem econômico, segundo o modelo mexicano, em que a água já é cobrada. Como visto, é uma realidade cada vez mais factível.

 

A água não pode ser vista apenas como uma commodity industrial sem que se pense na proteção dos mananciais. Não se pode simplesmente dividir a água entre os diferentes usos humanos e esquecer que a natureza também depende dela e que a proteção aos ecossistemas é fundamental para a manutenção dos recursos hídricos.

 

Desta forma, a água deixa de ser um bem de uso comum e ilimitado, para ser um bem de uso controlado. Isso significa que na prática, todos que se utilizam de recursos hídricos, terão que pagar por isso, como é o caso das empresas de abastecimento público de água, as hidroelétricas ou a agroindústria.  As empresas de fornecimento de água, por exemplo, terão que pagar pela água que captam hoje gratuitamente nos rios para fornecimento público.

 

Outro exemplo, as centrais elétricas terão que pagar também pela água que usa gratuitamente para gerar energia elétrica. Da mesma forma, as atividades agro-industriais terão que pagar pela água que captam gratuitamente em rios e mananciais para uso na agricultura.

 

A partir da regulação do setor, a água entrará no mercado de commodities. É importante diferenciar o termo commodity tradicional de commodity ambiental.  Quando se utiliza o termo “ambiental" entende-se que estas commodities têm características diferentes das mercadorias que são comercializadas em mercados organizados como bolsas ou no mercado de balcão. A diferença principal é que para ser uma commodity ambiental, é necessário a adequação às normas e regras exigidas do mercado ambiental. 

 

Assim sendo, no caso da água deve-se assegurar a gestão comunitária e a participação da sociedade na sua preservação e no abastecimento básico. Todas essas exigências visam assegurar a água como um patrimônio público e um assunto que atinge a própria soberania nacional.

 

Uma das polêmicas é quanto ao valor econômico que a commodity terá no Brasil. A única certeza é que não será igual em todo território nacional, e que ela não deve ser considerada como imposto, mas como instrumento de regulação.

 

 

A Água como um Contrato Futuro Bursátil

 

Embora tenha sido muito discutido pelos governos e supervisionado pelas autoridades, os grupos de Wall Street nunca realmente se interessaram pelo tema. A questão então é: Será que essa commodity tão preciosa se tornará um recurso negociado em uma bolsa de futuros como o petróleo, o milho ou o ouro?

 

Se atentarmos para as  projeções nos próximos 25 anos, perceberemos que desequilíbrios globais de oferta e demanda de água caminham para a deterioração, com regiões de escassez e de estresse hídrico do mundo.

 

A água é uma indústria de vários trilhões de dólares, de acordo com o Banco Mundial  e, sendo uma commodity vital para a vida humana com o agravante de escassez global por causa do aquecimento global e crescimento populacional, os grupos econômicos vão por fim descobrir uma maneira de “comoditiza-la”.

 

A dificuldade de se estabelecer um comércio de água seria difícil, já que o seu abastecimento  é, em última instância, um problema regional  em todo o mundo sendo regulada localmente, por cada unidade governamental.

 

A questão mais importante é como o preço desse instrumento financeiro será formado já que a entrega física a partir de contratos futuros é pequena sendo destinados a manter o preço justo pela commodity.

 

 

Em Conclusão

 

Os países tem de conceber formas de promover o bem  estar humano sem aceitar que seu capital natural seja usado ou degradado. É nesse contexto de escassez de água e de possíveis conflitos internacionais por causa desse bem que o Brasil passará a ter papel importante no contexto internacional. Já esta em discussão  entre todas nações a visão da água para os próximos 25 anos e seus possíveis cenários, na qual se discute as condições para o acesso a água limpa e suficiente, forçando a importância da água como recurso estratégico.

 

Podemos então concluir que devido a sua importância para humanidade que “a melhor medida de como funciona uma democracia é como os governos distribuem os bens da terra”.