"DUPLO FÓRCEPS (MP/PM/PC): DESAFIOS DO GOVERNO DO ESTADO DE SANTA CATARINA PARA AS POLÍCIAS (2019-2022)"
Por Felipe Genovez | 10/12/2018 | HistóriaDUPLO FÓRCEPS: MP/PM/PC (III):
I – A questão do MP e PCl:
Os desafios de antes, agora e do futuro volta e meia estão na ordem do dia. Dos cerca de treze anos atuando na Corregedoria da Polícia Civil acabei acumulando várias experiências. Uma das constatações foi quanto à fragilidade do órgão e a falta de prerrogativas de nossos “Corregedores”, praticamente a totalidade na condição de “designados” (convite do “chefe”), conforme os ventos das mudanças a cada novo governo.
Essa vulnerabilidade dos “Delegados-Corregedores” designados sempre foi responsável por gerar uma insegurança administrativa constante (todos têm receios de ter que voltar para suas lotações pelo interior do Estado, além de não quererem perder o “status” de trabalhar numa atividade meio, distante das Delegacias de Polícia, sem contar os temores de retaliações.
Outro fato digno de registro é, também, a fragilidade da própria figura do “Corregedor-Chefe”, já que nos foi solapada a “Corregedoria-Geral” no governo Luiz Henrique da Silveira (LC 243/2003), sem contar os retrocessos impostos pela PGE por meio da LC 491/2010 (suprimiu nossa autonomia correcional e nos colocou em condição de submissão à PGE. Na época que essa legislação entrou em vigor nossa cúpula da Polícia Civil (sob a direção do Delegado Maurício Eskudlark) e nossa Adepol (sob gestão do Delegado Renato Hendges que naquela transição assumiu o lugar da Delegada Sonéa Neves que renunciou ao mandato) foram pegos de surpresa com o projeto aprovado pela Alesc e sancionado pelo governador do Estado (e assim caminhamos ao longo das décadas, tudo em clima de aparente tranquilidade e de que tudo continua plenamente “normal”...).
Vez por outra, a sujeição da nossa Corregedoria ao Ministério Público deveria causar perplexidade, espanto... Há décadas que isso ocorre (com algumas fases de maior independência). Relembro os comentários de um ex-Corregedor-Geral que costumava visitar regularmente a Procuradoria-Geral de Justiça para prestar contas de procedimentos disciplinares em tramitação na Polícia Civil (ouvi comentários...).
Mas no meu tempo de atividade correcional (2005 – 20017), apenas para ilustrar, num determinado caso envolvendo um Delegado muito conhecido, fui chamado pelo “Corregedor-Chefe” que me avisou que o Corregedor-Geral do MP (e outros membros do Parquet) tinha acabado de sair do seu gabinete, sendo que vieram tratar de “denúncias” contra nosso colega e argumentaram que os fatos eram graves... O processo disciplinar e a sindicância em questão estavam sob minha presidência e aproveitei para argumentar que trataria os procedimentos disciplinares com a maior isenção, que não aceitaria qualquer tipo de pressão, especialmente vindas do MP. O “Corregedor-Chefe” tentou argumentar que – segundo o MP – as denúncias eram muito graves... Na minha condição de único Delegado de Entrância Especial lotado na Corregedoria reiterei que não aceitaria pressões de ninguém e perguntei se nós em algum momento havíamos procurado o MP para tentar influenciar na apuração de autos disciplinares em tramitação envolvendo Promotores de Justiça? Nada contra termos um excelente relacionamento com o “MP” que possui grandes talentos e pessoas ilibadas (além de velhos conhecidos). Mas fiquei imaginando se essa “pressão” tivesse sido sobre outro Delegado-Corregedor que estivesse de “favor” para atuar no órgão? Obviamente, com o passar dos anos, reagindo recorrentemente contra esses tipos de investidas, só me restou o caminho da aposentadoria (a gota d’água: “Maquiavel no Inferno” – webartigos – “audiência de custódia e presos em DPs).
Então, quais seriam os interesses do MP sobre a Polícia Civil? Vários, próximos e distantes, mas só para ilustrar e relembrar:
“Criação do Juizado de Instrução é proposto pelo STF – Controle da atividade policial pelo MP está em discussão – Pelo projeto, procuradores passam a coordenar trabalho investigativo – Polêmica antiga, que gerou inclusive lobbies constantes por parte da Polícia Civil durante a Constituinte de 1988, volta à cena: A coordenação e controle da atividade policial pelo Ministério Público. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Carlos Mário Velloso, anunciou esta semana que vai enviar proposta ao presidente do Senado instituindo a fase do juizado de instrução. Na prática, segundo afirmou o ministro, seria uma etapa preliminar, na qual o Ministério Público coordenaria o trabalho de investigação, hoje realizado pela polícia. Com esse instrumento, o inquérito policial seria extinto. O procurador-geral de Justiça, José Galvani Alberton considera uma proposta nova (...). Indagado sobre o papel da polícia na investigação, Alberton disse que a polícia investigaria sob a coordenação do promotor, como ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos e que o fato acarretaria em agilidade no julgamento. Sugere, entretanto, que haja uma mudança mais ampla, com boa estrutura e reaparelhamento e capacitação para alcançar os delitos mais graves, tais como crimes contra a ordem financeira, tributária, precatórios, e que frustram a sociedade pela impunidade e tantos outros delitos, sem esquecer dos pequenos. Os delinquentes, para ele, têm que ser tratados igualmente, seja quem for. Já o controle externo pelo MP da atividade policial, previsto na Constituição Federal, mas ainda sem Lei complementar para funcionar, está mesmo só no papel, segundo Alberton. Para colocar em prática, explica, é necessário mecanismos, inclusive instrumentos material para exercer a função, não é o caso, por exemplo de peitar o delegado e realizar o controle. ‘Além do que, temos como premissa, um trabalho integrado, solidário, entres os entes públicos’, declara. Para Alberton, as instituições têm que saber respeitar as áreas de atuação de cada uma e para juntas, resultar num trabalho mais proveitoso. O trabalho conjunto – MP e Polícia – como está sendo proposto não será uma sincronia fácil, acentua Alberton. Será preciso muita maturidade e diálogo. ‘É preciso tratar a questão sem a impetuosidade corporativista, sem a tentativa de hegemonia, como se o MP fosse mais importante que o delegado. O compromisso tem que ser com a ética, com a sociedade e para isso é necessário estabelecer um pacto saudável entre as partes. Delegado diz que é um modelo maquiado (...) Para o presidente da Associação dos Delgados de Santa Catarina, Mário Martins, a ideia parece nova, mas não é. ‘É uma proposta velha, num modelo mais maquiado’, disse (...). O que eles querem, acabando com o inquérito policial é a tentativa de mostrar para o povo que assim pode-se resolver o problema da segurança no Brasil’ (...)” (O Estado, 23.08.2000).
II – A questão da PM e PC:
Não há dúvida que as nossas relações com a PM deverão ser repensadas com urgência máxima. Nosso histórico sobre o projeto de “Unificação dos Comandos das Polícias” nos Estados está publicado na “webartigos” e mostra que Delegados e Oficiais terão que se unir para juntos fazerem uma revolução no sistema policial brasileiro (antes que outros a façam...). É fácil, se superarmos questões de “pobreza de espíritos” que permeiam alguns Delegados e Oficiais da PM, acredito que haverá esperança. Qualquer mudança no sistema policial trará consequências imprevisíveis para todos que perderão espaços, história... e a quem interessa isso? A nossa desunião é alimentada por conta de que propósito?
Também, só para ilustrar, o “ciclo único”, um projeto proposto de fora para dentro:
O senador Lindbergh Farias (PT-RJ) acaba de apresentar a PEC-51, cuja finalidade é transformar a arquitetura institucional da segurança pública, um legado da ditadura que permaneceu intocado nos 25 anos de vigência da Constituição cidadã, impedindo a democratização da área e sua modernização.
As propostas chave da PEC-51 são as seguintes: (1) Desmilitarização: as PMs deixam de existir como tais, porque perdem o caráter militar, dado pelo vínculo orgânico com o Exército (enquanto força reserva) e pelo espelhamento organizacional. (2) Toda instituição policial passa a ordenar-se em carreira única. Hoje, na PM, há duas polícias: oficiais e praças. Na polícia civil, delegados e não-delegados. Como esperar respeito mútuo, compromisso com a equidade e coesão interna desse modo? (3) Toda polícia deve realizar o ciclo completo do trabalho policial (preventivo, ostensivo, investigativo). Sepulta-se, assim, a jabuticaba institucional: a divisão do ciclo do trabalho policial entre militares e civis. Por obstar a eficiência e minar a cooperação, sua permanência é contestada por 70% dos profissionais da segurança em todo o país, conforme pesquisa que realizei com Silvia Ramos e Marcos Rolim, em 2010, com apoio do Ministério da Justiça e do PNUD, na qual ouvimos 64.120 policiais e demais profissionais da segurança pública (cf. “O que pensam os profissionais da segurança no Brasil?” Relatório disponível no site do MJ). (4) A decisão sobre o formato das polícias operando nos estados (e nos municípios) cabe aos Estados. O Brasil é diverso e o federalismo deve ser observado. O Amazonas não requer o mesmo modelo policial adequado a São Paulo, por exemplo. Uma camisa-de-força nacional choca-se com as diferenças entre as regiões. (5) A escolha dos Estados restringe-se ao repertório estabelecido na Constituição –pela PEC–, o qual se define a partir de dois critérios e suas combinações: territorial e criminal, isto é, as polícias se organizarão segundo tipos criminais e/ou circunscrições espaciais. Por exemplo: um estado poderia criar polícias (sempre de ciclo completo) municipais nos maiores municípios, as quais focalizariam os crimes de pequeno potencial ofensivo (previstos na Lei 9.099); uma polícia estadual dedicada a prevenir e investigar a criminalidade correspondente aos demais tipos penais, salvo onde não houvesse polícia municipal; e uma polícia estadual destinada a trabalhar exclusivamente contra o crime organizado. Há muitas outras possibilidades autorizadas pela PEC, evidentemente, porque são vários os formatos que derivam da combinação dos critérios referidos. (6) A depender das decisões estaduais, os municípios poderão, portanto, assumir novas e amplas responsabilidades na segurança pública. A própria municipalização integral poder-se-ia dar, no estado que assim decidisse. O artigo 144 da Constituição, atualmente vigente, é omisso em relação ao Município, suscitando um desenho que contrasta com o que ocorre em todas as outras políticas sociais. Na educação, na saúde e na assistência social, o município tem se tornado agente de grande importância, articulado a sistemas integrados, os quais envolvem as distintas esferas, distribuindo responsabilidades de modo complementar. O artigo 144, hoje, autoriza a criação de guarda municipal, entendendo-a como corpo de vigias dos “próprios municipais”, não como ator da segurança pública. As guardas civis têm se multiplicado no país por iniciativa ad hoc de prefeitos, atendendo à demanda popular, mas sua constitucionalidade é discutível e, sobretudo, não seguem uma política nacional sistêmica e integrada, sob diretrizes claras. O resultado é que acabam se convertendo em pequenas PMs em desvio de função, repetindo vícios da matriz copiada. Perde-se, assim, uma oportunidade histórica de inventar instituições policiais de novo tipo, antecipando o futuro e o gestando, em vez de reproduzir equívocos do passado. (7) As responsabilidades da União são expandidas, em várias áreas, sobretudo na uniformização das categorias que organizam as informações e na educação, assumindo a atribuição de supervisionar e regulamentar a formação policial, respeitando diferenças institucionais, regionais e de especialidades, mas garantindo uma base comum e afinada com as finalidades afirmadas na Constituição. Hoje, a formação policial é uma verdadeira babel de conteúdos, métodos e graus de densidade. O policial contratado pela PM do Rio de Janeiro para atuar nas UPPs é treinado em um mês, como se a tarefa não fosse extraordinariamente complexa e não envolvesse elevada responsabilidade. A tortura e o assassinato de Amarildo, na UPP da Rocinha, não foram fruto da falta de preparo, mas do excesso de preparo para a brutalidade letal e o mais vil desrespeito aos direitos elementares e à dignidade humana. A tradição corporativa, autorizada por fatia da sociedade e pelas autoridades, impõe-se ante a ausência de uma educação minimamente comprometida com a legalidade e os valores republicanos. De que serve punir indivíduos se o padrão de funcionamento rotineiro é reproduzido desde a formação, ou no vácuo produzido por sua ausência? (8) A PEC propõe avanços também no controle externo e na participação da sociedade, o que é decisivo para alterar o padrão de relacionamento das instituições policiais com as populações mais vulneráveis, atualmente marcado pela hostilidade, a qual reproduz desigualdades. Assinale-se que a brutalidade policial letal atingiu, em nosso país, patamares inqualificáveis. Para dar um exemplo, no estado do Rio, entre 2003 e 2012, 9.231 pessoas foram mortas em ações policiais. (9) Os direitos trabalhistas dos profissionais da segurança serão plenamente respeitados durante as mudanças. A intenção é que todos os policiais sejam mais valorizados pelos governos, por suas instituições e pela sociedade. (10) A transição prevista será prudente, metódica, gradual e rigorosamente planejada, assim como transparente, envolvendo a participação da sociedade.
(...)”.
*Luiz Eduardo Soares (antropólogo, professor da UERJ)
*Disponível em: "http://www.luizeduardosoares.com/?p=1185".