Doses
Por Beatrice Cavalcante | 21/06/2019 | ContosEnquanto falo sem parar, olho para frente e percebo que você não está lá, quer dizer, não literalmente, por que fisicamente eu te vejo, sinto o cheiro do seu perfume, as vezes você segura minha mão, mas é impossível não ver quando você olha discretamente a hora no seu relógio caro, ou quantas vezes você já bocejou, sei que eu te canso e é essa a parte que eu não entendo, se não quer estar aqui, porque veio? Você que me chamou, afinal, faz tempo que decidi não te chamar para sair, já que sempre existe uma boa desculpa para você não aceitar meus convites, pensei que talvez quando você que me chamasse era porque realmente queria, mas aparentemente não. Olho o celular e dou um sorriso sincero, recebi uma mensagem de alguém que realmente se importa, era uma foto, abro sem tentar esconder de você, era ele com cara de tédio enquanto seu gato tentava roubar a touca que eu já tentei pegar pra mim diversas vezes, mas todas as vezes na hora que você me abraçava para dar tchau, puxava de volta e depois me mostrava o dedo do meio enquanto sorria e chacoalhava a touca como se fosse um troféu. Por 1 minuto eu me desconectei daquele encontro onde a outra parte não estava me ouvindo e fui viver um momento com alguém que realmente me importava, queria que aquele minuto durasse para sempre. Dessa vez foi eu que pediu para ir embora, toda humilhação tem que ter hora para acabar, chega de implorar sua atenção.
Você pagou a conta, sempre deixei você pagar, meu dinheiro seria destinado com alguém que valesse a pena, e sabemos que você ganha muito mais dinheiro do que eu e suas escolhas de restaurantes estão totalmente fora do meu orçamento. Fomos para o carro em silêncio, fazia tempo que não saímos de mãos dadas dos lugares, isso me incomodava um pouco, me sentia a puta barata que meu pai dizia que eu era. Ainda no estacionamento, você começa a me beijar, já sabia que aquela noite não ia render nem uma fodida no motel, se eu quisesse era um boquete lá mesmo, talvez era assim que você achava que eu devesse pagar a conta. Hoje decidi que a comida não estava boa o suficiente e não paguei pela sua companhia de merda.
Ficamos quietos enquanto você dirige até a minha casa, no rádio toca alguma música tão chata quando aquela noite. Saio no carro, falo o clássico "me avisa quando chegar e vai com cuidado", eu sabia que você não faria nenhum dos dois. Cumprimento o porteiro e vou para o hall do elevador, falta pouco para eu estar sentada no meu sofá caro, a única coisa cara daquele apartamento minúsculo, quando me mudei pra lá prometi que teria um sofá muito confortável, pois seria ali que eu dormiria sempre que chegasse bêbada e vamos dizer que isso acontece com uma certa frequência.
Me sento no sofá e começo a chorar, não sei o motivo, só me sento no canto, como uma criança assustada, abraço meus joelhos e escondo meu rosto como se não quisesse que alguém visse aquela cena deprimente mesmo estando sozinha. Sinto o vento frio entrando pela janela, a cortina balança e a lua está iluminando a sala. Levanto e me sirvo uma dose de qualquer coisa. Adorava como aquele apartamento ficava no escuro, me sentia um vampiro andando nas trevas de uma cidade abandonada.
Depois da quarta dose minha cabeça começava a girar e gritar. Voltei para a posição de criança assustada, odiava as vozes na minha cabeça. Entre um copo e outro vinha flashes da noite que acabei de viver, me via sentada perdendo meu tempo com alguém que só quer me usar e que ainda assim eu fazia questão de manter na minha vida. Flashes deu sentada na mesa de um bar sujo com alguém que realmente valoriza a companhia. Flashes de uma infância triste e sem amigos. Flashes da noite que aceitei encontrar outro idiota que só me fez sofrer e que achei que conseguiria sair com ele para dar uma lição pelo que ele me fez, e no final eu só consegui me humilhar um pouco. Flashes, outra dose, flashes, outra dose, mais doses do que flashes... só queria perder a consciência para poder dormir sem ter que sonhar com aquela noite.
A garrafa estava quase no final, aquilo me deu uma certa ansiedade até lembrar que tinha outra garrafa fechada no armário. Me arrasto até o quarto, dessa vez seria uma bêbada que dormiria na cama. Me sento no chão, em frente a cômoda, abro a gaveta com a destreza de uma bêbada. Lá no fundo estava a caixinha que um dia foi de bombons, ganhei de um menino que dei aulas particulares uma vez, achei fofo, uma criança de uns 12 anos super feliz por ter ido bem na prova achando que foi porque eu ensinei algumas equações pra ele, mal sabia ele que eu não ensinei nada, ele já sabia de tudo. Abri a caixinha e ainda conseguia sentir o cheiro de chocolate vindo dela, chocolate e sangue. Como se eu fosse fazer uma cirurgiã, tirei a toalha e coloquei dobrada ao meu lado, mais pra frente separei cuidadosamente um bisturi, algumas agulhas e uma lâmina. É impressionante como é fácil comprar essas coisas pela internet.
Fico sentada olhando para aquela obra de arte enquanto tomo o resto da dose que tinha no copo. Me controlo para não chorar de novo, mas é impossível, as lágrimas apenas escorrem pelo meu rosto sem que eu transmita nenhum som. Antes de começar, meu corpo se levanta e vai na cozinha pegar mais uma dose, já tinha perdido as contas de quantas doses havia tomado, mas sabia que aquela era a última dose da garrafa. Voltei para o quarto e me sentei exatamente no mesmo lugar.
Dessa vez me sento com as pernas esticadas e levanto o shorts, as últimas cicatrizes ainda não haviam cicatrizado, tento a outra perna, a mesma coisa. Dessa vez vou tentar os braços então, não que eu tenha pensado isso, meu corpo simplesmente agia, as vozes da minha cabeça estavam guiando meus movimentos. Pressiono minhas costas contra a parede e sinto o frio passando pela minha coluna e subindo até minha cabeça. Viro a dose de uma vez e me odeio por não ter trazido a garrafa nova para o quarto, não queria levantar de novo.
Dobro os joelhos e apoio meu braço sobre eles, novamente como uma cirurgiã, escolho minha ferramenta de trabalho. Pego o bisturi e pressiono contra o pulso esquerdo, começo a fazer linhas horizontais, quase que dando a volta no braço inteiro. Sinto prazer, o líquido quente escorrendo. Me sinto Picasso pintando uma tela quase que em branco. Os traços estão ficando cada vez mais largos e quentes. Eu realmente preciso de outra dose, me levando com a ajuda da parede e sigo até a cozinha me apoiando. Paro encarando a garrafa fechada e com os braços para baixo, consigo sentir o sangue escorrendo pelos meus braços, chegando até os dedos e sou capaz ainda de ouvir as gotas caindo no chão. Droga, esqueci o copo no quarto. Abro a garrafa e tomo direto dela. Dessa vez não vou cometer o mesmo erro, levo ela comigo.
Meu lugar estava esperando por mim, como uma criança espera pelos seus pais na porta da escola. Me sento, bebo mais e dessa vez escolho fazer uma linha vertical. Acho que não medi minha força, a líquido quente jorra sobre minhas pernas, é tão quente e confortável, estou perdendo os sentidos, talvez pela quantidade de álcool que tomei ou pela quantidade de sangue que estou perdendo, não sei. Tento levantar, mas me sinto fraca e o mundo está girando demais. Tento pegar a garrafa, mas há tanto sangue que ela escorrega das minhas mãos, não tenho forças. Sem forças os flashes voltam, como os créditos pós filme de heróis. Vejo rostos sorrindo pra mim, os bocejos entediados e olhares discretos no relógio, penso em gritar por ajuda, mas não quero ser ajudada. Então me deito e aproveito enquanto sinto meu corpo todo relaxar, só quero perder a consciência e não me lembrar, talvez amanhã eu acordei e não saiba o que aconteceu.