DOS RECURSOS: Análise crítica à restrição do direito de impugnação das decisões judiciais em função da alçada do tribunal a quo

Por Aurélio Nuno Francisco Jumbe | 27/07/2020 | Direito

Monografia de licenciatura em Direito

Resumo

O direito fundamental de acesso à justiça visa garantir a abertura e a assistência plena, útil e efcetiva dos direitos dos cidadãos pelo Estado nomeadamente através dos tribunais, permitindo, entre outros, o direito de impugnação das decisões daí decorrentes e sobre os casos aí submetidos, por meio de recurso (arts.35.º, 57.º, 62.º, 69.º, 70.º e 223.º, todos da CRM), para o reexame da decisão judicial por um órgão hierarquicamente superior, na medida em que reconhece-se a falibilidade do julgador e a protecção constitucional para impugnar actos que violam os direitos fundamentais. A limitação do exercício daquele direito pelo legislador ordinário no condicionamento do seu exercício à superioridade ou igualdade do valor da causa face alçada do tribunal (n.º 1, art. 678.º do CPC), reflecte a discriminação entre cidadãos ricos e pobres, e desarmonia com a Constituição pondo em causa o direto de acesso à justiça plena, útil e efectiva bem como o princípio da igualdade. Face ao problema, sem prejuízo dos vários sistemas de resolução de conflitos reconhecidos em Moçambique, o estudo indaga essencialmente até que ponto é que a restrição do direito de recorrer ordinariamente as decisões judiciais em função da alçada do tribunal recorrido garante o acesso material, efectivo e pleno à justiça e tem como objectivo as razões da existência de alçadas no direito processual civil na restrição do direito de recorrer das decisões do tribunal, por forma a identificar os critérios mais adequados para o exercício do mesmo. A pesquisa foi feita numa abordagem qualitativa, sendo quanto aos objectivos, exploratória. No que concerne aos procedimentos a dissertação tem um carácter bibliográfico. Recorreu-se também à entrevistas a operadores de direito em número de seis, sendo três magistrados judiciais e três advogados, com larga experiência profissional, entre sete a doze anos.

A dissertação começa por reflectir sobre o sentido e alcance do direito fundamental do direito de acesso à justiça destacando a assistência jurisdicional no processo civil recursal descrevendo o regime de tramitação, pressupostos, finalidade e fundamentos. O estudo segue para a discussão sobre as alçadas e suas razões de ser, tanto no processo civil em geral, como nos recursos como pressuposto, em especial. A seguir, o estudo analisa se há ou não, e em que moldes, restrição de exercício do direito ao recurso por força da alçada do tribunal de primeira instância. A reflexão encerra discutindo outras inaplicabilidades e possíveis mecanismos para a solução do problema aí levantado.

O estudo permite compreender que, no ordenamento jurídico moçambicano, a proibição do direito ao recurso nas causas cujo valor seja inferior à alçada do tribunal de primeira instância, prevista no n.º 1 do art. 678.º do CPC, restringe infra constitucionalmente o exercício pleno e efectivo do direto fundamental de acesso à justiça. Com efeito, o direito do acesso à justiça efectiva e plena como direito fundamental só tem lugar quando o cidadão tem a possibilidade de recorrer ao tribunal (quer de primeira como de segunda instância) na sua plenitude com vista à salvaguarda dos seus direitos ou interesses ora violados quer na vertente formal assim como material. E mais, o recurso tem seus fundamentos, entre outros, partindo da sensibilidade humana de que o erro é humano e todo ser humano está susceptível a erros inclusive o juiz pelo que, as decisões do tribunal nem sempre são límpidas; e porque os tribunais de segunda instância, sendo de hierarquia superior ao que apreciou a causa em primeira instância, mostram-se estar em melhores condições para apreciar o caso.

Entretanto, a pesquisa palpou que, com a restrição do direito ao recurso ordinário em processo civil, o legislador pretendeu essencial e alegadamente não “banalizar” o uso de recurso, e esvaziar os tribunais de processos cujos valores estejam baixos da alçada daquele tribunal; deu prevalência às questões processuais em detrimento das materiais. Porém, o interesse e a finalidade do valor da causa são relativos; o recurso extraordinário de suspensão de execução e anulação de sentença manifestamente injusta é ineficiente para resolver o problema criado pelo legislador no recurso ordinário. A partir do estudo compreende-se que, a limitação imposta pelo legislador não permite o exercício efectivo e pleno do direito de acesso à justiça conforme o catálogo constitucional; e, consequente e necessariamente aquela norma ordinária padece de uma inconstitucionalidade material.

Para que o acesso à justiça seja efectiva, plena e útil, no âmbitos dos recursos ordinários, sem prejuízos dos demais pressupostos, o estudo sugere a exclusão da figura de alçadas face ao valor da causa no leque dos pressupostos para efeitos de recurso ordinário, como nas jurisdições administrativa, fiscal e criminal, podendo, por exemplo, o legislador tornar obrigatória a constituição de mandatário judicial, e condenar por litigância de má-fé a parte que fizer uso abusivo do recurso ordinário.

Palavras – Chave: Acesso à justiça, Alçada, Direito fundamental, Recurso, Valor da causa.

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