Dos argumentos e respostas acerca da Cabala Elementar
Por Germano Brandes | 22/01/2016 | FilosofiaAinda que pareça que com excessiva digressão nos desviamos da ordem que levamos nesta escritura, bem se conhecerá não havermos perdido de vista os termos da Ciência que escrevemos; assim, apanhando-nos em sua prática todo o possível, será razão que logo depois de havermos, como dissemos, que esta Cabala, ou Aritmética, se serve de nomes, letras, números e figuras, já por modo resolutório, já por modo compositório. Vejamos quais são as razões com que se prova e impugna a virtude ou valor intrínseco desses nomes, letras, números e figuras.
Para o que é de notar que suposto não esteja até hoje assentado firmemente entre os autores, a qual dos idiomas toca a propriedade, sendo uns de parecer que ao caldeu, outros que ao hebraico, e alguns que ao areneu, como afirma o Doutor Valle: Hebraicam non fuisse primam, sed Araneam doctissimis placet. Todavia, como aquele povo hebraico, enquanto seguidor e observante da verdadeira lei, foi quem mais que outro alcançou a comunicação divina e angélica, mereceu que seu idioma fosse chamado santo, angélico e celestial, com premissas de que na república da Igreja triunfante haja de ser usado depois da final Ressurreição. Alcançou assim mesmo que nele falasse Deus aos Santos Patriarcas, e os divinos Oráculos de suas vozes servissem para ministrar preceitos e respostas aos homens, como sobre os mais discorre Genebrando. Donde parece que justamente se infere e afirma que esta misteriosa linguagem contém em suas palavras, letras, números e figuras, uma virtude única, intrínseca, não igualada nem comunicada a outro algum idioma do mundo. Pela qual razão se não deve querer regular o vigor dela pelas regras comuns filosóficas e naturais que compreendem todos os demais idiomas.
Porém, os que têm a parte negativa contradizem tanto a língua hebréiaa como as mais, a física virtude das palavras e conseguintemente a das letras, números e figuras, dizendo que aquela aptidão afirmada dos hebreus à sua língua não pode ser essencial, porquanto qualquer palavra não é mais que um sinal ex-instituto, constituindo voluntariamente de acordo dos homens, para significação destas ou daquelas coisas sem algum mérito da parte da palavra, para poder fisicamente explicar e denotar aquela própria coisa que por ela se explica e denota.
Isso declaram melhor com um exemplo assaz fácil. Porque se agora em modo cabalístico tomássemos esta palavra, si, que em castelhano vale sim afirmativo, significaria por via do número a quantidade cinquenta e um em ordem ao valor que está constituída à letra S e à letra I, que fazem a palavra si. Porém, esta própria palavra si em outra qualquer língua, que não seja a afirmação si em tudesco, era necessário que dissesse yo; em francês, hui; em inglês, ois; em flamengo, ya; em biscainho, bay. Donde dizem está claro que a virtude significativa não pode ser física e natural da palavra, senão moral, acidental e transitória, em que não há existência importantede algum efeito.
Ao que os cabalistas respondem, não obsta que esta tal virtude nos nomes incluída (principalmente nos de suas palavras) deixe de ser universal para que deixe de ser virtude; antes inferem desse próprio argumento o maior valor da língua hebréia, da qual dizem que estão em seu primeiro vigor todas as palavras livres e purgadas dos acidentes da variedade e propriedade que se pegou às outras línguas, pela original confusão dos idiomas, a qual (defendem eles) não prejudicou nunca a intrinseca significação língua primitiva. Como se, por exemplo, ainda que olhando-se um homem a um espelho, onde seu rosto estivesse afigurado, viesse outro e rompesse o espelho e a figura, nem por isso o rosto verdadeiro do homem ficaria prejudicado. Eque sta opinião tem para si Marcílio Fisino, afirmando Non esse ex Haebrea língua in alium transferenda, sed in suis ipsis caracteribus conservanda. Da mesma maneira entendem que, ainda que os mais idiomas humanos fossem cópias ou imagens do hebraico, nem porque eles participaram daquela grande confusão que os fez vários e incertos, a ele ofendeu ou chegou alguma arte ao idioma primitivo, que se ficou puro e intrinsecamente significante, como se tal confusão e variedade se não padecesse. Entendendo que em sua língua assiste e se conserva a própria energia e eficácia com que Adam, por infusa ciência e providência, deu nome às do espelho sensíveis e insensíveis. E que em suas palavras (também à maneira refletem do espelho) redundam as virtudes e propriedades das coisas, a quem servem ou que por elas se denotam.
Da própria maneira contra o argumento adverso natural opõem outro, dizendo que não se podendo negar tem em si a pederneira fogo intrínseco, nem por que ele se não veja ao golpe do madeiro ou do cordel, se poderá dizer que ela não inclui virtualmente fogo em suas entranhas, e daqui a particular seja bastante em seu idioma, por que se possa dizer e afirmar que são as palavras capazes de virtude física e intrínseca, que nelas se considera sem que lhes obste a limitação de que em outras línguas ignificado. Definindo-a também e afirmando que a virtude da palavra é diversa coisa do significado dela. E que a significação pode estar no nome, como acidente, e , como substância. Ainda que também confessem que a significação é uma das virtudes do nome.
Porém, porque a impugnação ordinária é universal contra toda a virtude dos nomes e palavras, darei também algumas razões com que defendem pela parte afirmativa, por mais que a profundidade desta questão toque antes à Filosofia que à curiosidade.