DONA QUINÔ E O MEDO DE SER SÓ

Por PATRÍCIA MIRELLY | 14/02/2014 | Crônicas

DONA QUINÔ E O MEDO DE SER SÓ

 Dona Quinô, no auge de seus quase oitenta anos de juventude, remexia, entre resmungos, sua bolsa branca com listras azuis. Tristonha, lançava um olhar para fora do ônibus, outro para as caixinhas que, aos poucos, ia retirando da bolsa branca com listras azuis. 

Ela mostra suas cartelas preenchidas por comprimidos. Uns para dormir, outros para regular a pressão. Disse não estar doente, tampouco caduca. Doente mesmo só ficaria se tomasse todos aqueles remédios. Altas dosagens a deixariam entupida, ela brinca.

Dona Quinô era esperta. Não se deixava iludir pelo médico, mesmo voltando de uma longa noite no hospital, internada com pressão alta. A pressão subira depois de acompanhar a novela, aquela das nove horas. Não aguentou ver a personagem “fazendo tanta ruindade” com o marido, como ela mesma me disse, e foi parar no hospital.

A filha mais velha de Dona Quinô, Nilda, conta que certa noite encontrara a mãe, com um chinelo na mão, batendo na tevê. 

 Dona Quino justifica-se, alegando estar, apenas, dando “umas palmadas” na personagem, como corretivo pelo mau comportamento.

A novela era a única coisa que entretinha Dona Quinô. Também gostava do padre que "reza uma novena que nunca se acaba" e "benze a água" toda amanhã. A noite acompanhava a novela. Chorava, ria, brigava. Quando a briga era demais a pressão subia. Mas nada que merecesse um hospital. Nem remédios.

Mesmo assim, o médico a proibira de "envolver-se demais com novelas". De agora em diante só tricô. Pergunto se ela gosta da recomendação. Dona Quinô balança a cabeça, fazendo um sinal que não.

Quando fala da novela, Dona Quinô sorri, levando a mão à boca. Depois volta a ficar triste, cabisbaixa. Percebo o motivo de sua tristeza. Talvez fosse a falta que as tramas noturna lhe fariam. Talvez o medo de, ao chegar à hora da novela, não ter com quem falar, rir, chorar. Era isso.

Os filhos, todos casados, só apareciam aos domingos e quando ela preparava “pirão com carne de galinha e pequi”. Maria, sua cunhada, até aparecia, vez em quando. Conversava só um tiquinho. Vivia apressada. Depois ia embora. Dona Quinô voltava a ficar só. Uma menininha lhe fazia companhia durante a noite. Mas não conversava com ela. Preferia o celular.

O medo de ser só estava sendo doido demais para Dona Quinô. Talvez ela ficasse mesmo doente. Não pelo envolvimento demasiado com as novelas. Doente de solidão.