Dona Palavra
Por Bernard Gontier | 28/04/2009 | CrônicasDona Palavra
Olá Dona Palavra, há quanto tempo, amiga, não, não vá embora, aqui não precisas te esconder, nada ganho, tampouco perco, ao te empregar. Eu sei, Dona Palavra, mas é um outro ganhar, já somos velhos visitantes, estivemos lá, desde o princípio, conhecemo-nos desde a raiz até o improviso. Assim, não há o que temer, sua história é sempre torcida, mal contada ou censurada, mas como não vivemos só do acerto, ganhamos um fôlego novo nas tentativas.
Por éons de tempo, Dona Palavra, te perseguem nos recônditos, te inserem em gavetas e te trancam em cofres, te desenham na areia, em paredes úmidas e escuras, em couro curtido, em extratos vegetais, em tábuas de madeira e até em mármore já te articularam.
Depois te soltaram, ou todos pensaram assim, porém até hoje não estou certo, se tal soltura foi bater de asas, ou triste clausura.
O fato é que sinto saudades, Dona Palavra, da época em que valias por mil imagens, de deitar a cabeça no teu ombro e ouvir-lhe o som pronunciável, onde pedaço de papel algum pode conferir decreto maior do que o seu existir.
Sua sapiência, Dona Palavra, por obséquio, a agilidade das coisas me confunde, as fisionomias me induzem, quero ir junto, mas não vou, qualquer lugar sempre clama algum paladar. Quando te procuro com malícia, reparo que as carícias já não tem vogais, nossa inteligência não arrisca, nossos modos esquecem-na sobre a mesa, preferível não interpretar, tudo à risca é o que se segue, tudo ao pé da letra, num triste riscado sem fluorescência, vocábulos errantes, quando não beiram a demência, deparam-se na insípida essência.
Três coisa aprendi sobre ti:
Um, que não tens favoritos, que a todos contempla com sua plenitude, mas nem mesmo o asseio da rima lhe alcança a longitude, se não for de comum acordo, a sua plumagem e o desfiar da aragem. Dois, ainda tento aprender. Três, não aprendi nada.
Faz favor, Dona Palavra, eu te adulo, te sacudo, te deixo trôpega, caolha e noves fora. Tu gostas, tu preferes, tu pouco te importas, há muito sabes que te usam na forma mas lhe negam o conteúdo, pois no momento que sambas, imitas, agitas, aplaudem de pé, mas quando acham que és autêntica, quase sempre a coisa complica.
Faz assim não, minha amiga, a situação é precária, ao percebê-la sair da minha mente e cair nos meus lábios, nem sempre é uma canção. Nem sempre a sombra da imprecação. Nem sempre o vestígio da oração.
Mas quando desce para o coração, às vezes tenho vontade.
Vontade não mata ninguém. Vontade passa.
“Céus e Terras passarão, mas minha palavra não passará”.
Essa aspas não são suas, Dona Palavra, são de quem
pode empregá-la, chamando-a de Verbo.
Mas como, já estás de partida? Nem mesmo um verso? Pode ser inverso, uma sílaba que seja, tuas esmolas são bem vindas visto vivermos à esmo, nada aventamos, raramente conjugamos, percebemos pouco, amamos pouco, numa curiosa fronteira assim vivemos.
Outrossim doravante, Dona Palavra, dois pra lá dois pra cá, aqui e agora nos despedimos, todos muito ofegantes, olhares de viés, muitas mãos se retorcem supondo lhe achar nos polegares, na palma aflita, na expressão contrita.
Adeus, Dona palavra, nossa estrada continua, nossos desejos finitos um dia hão de entregar-se ao fluxo infinito, até lá e ao que consta, planaremos na mesma cantiga, pois uns nos outros procuramos, Dona Palavra, decerto, a maneira certa, para atingirmos, no jeito certo e sem palavra alguma, algum afeto.