Dois irmãos diferentes
Por Romano Dazzi | 05/06/2009 | CrônicasDOIS IRMÃOS DIFERENTES
Eram dois gêmeos idênticos. Tinham nascido e vivido numa família pequena, no nordeste, passando necessidade, longe de tudo e de todos.
Ainda não tinham vinte anos, quando decidiram tentar a vida em São Paulo.
Arrumadas as poucas coisas que tinham, deram adeus a uma vida para começar outra. Viajaram empoleirados na traseira de um caminhão no meio de uma carga de cocos verdes.
Xente! Não há coisa mais dura, arredondada, incômoda para se apoiar, para se sentar em cima, para dividir um espaço, do que uma carga de cocos verdes.
Ou talvez uma carga de cocos secos chegue a ser pior.
Foi uns cinqüenta anos atrás, esta viagem
Demorou seis dias. Comendo poeira, bebendo chuva.
Êta, lonjura danada!...
Afinal, chegaram. Mas os ossos continuaram doendo por mais uma semana.
Começaram a procurar a casa da prima Verginha, a pessoa mais próxima da família, perguntando a cada quarteirão como se chegaria naquele bairro.
Paulistanos naquele tempo divertiam-se com os matutos, coitados; indicavam a direção errada, número de ônibus que nem existia.
Os meninos tinham muita vergonha, pouco dinheiro e nenhum expediente; tinham até receio de subir num ônibus – nunca tinham experimentado; na terrinha só havia lombo de burro e carroça.
No fim andaram a pé, quilômetros - e acabaram se perdendo umas duas vezes.
A duras penas conseguiram chegar no endereço, rabiscado numa folha de caderno amarfanhada, com a letras tão descoradas que custava para entender.
Foi uma festa só.
A prima tinha chegado a São Paulo três anos antes e já estava ajeitada na vida. Morava em um barraco com água e luz, era arrumadeira extranumerária da Prefeitura e esperava ser promovida porque ganhara uma boa nota no último concurso.
Mas a vida dela só melhorara mesmo, depois que fez algumas amizades na favela.
Trabalhava quatro horas por noite, das nove à uma da manhã, numa espelunca – o cantinho do Zeca – bem no finzinho da rua.
Servia bebidas e salgadinhos no balcão e arriscava-se também a levar algumas bandejas para as raras mesas pelos cantos do salão.
Era o momento da vergonha: ela com as mãos ocupadas, esbarrava pelo caminho em tantas mãos desocupadas, que ficava difícil até manter o equilíbrio.
O Zeca tinha-se apaixonado desde o primeiro dia pela Verginha.
Ela tinha corpo, sorriso e balanço, suficientes para sustentar o bar, até sozinha.
A freguesia tinha dobrado depois da chegada dela.
Pena que ela não quisesse fazer algum número de strip; -“seria um sucesso!”- repetia o Zeca, que não era homem de perder facilmente as esperanças.
Algum dia....- continuava imaginando - algum dia ela vai aceitar...
O centro do salão era reservado para uns poucos shows de três ou quatro meninas, assíduas clientes do bar.
Era isso que mais chamava gente.
Elas não recebiam cachê, mas ficavam conhecidas e acabavam levantando vôo, em poucos meses, para outras praias
Mas Verginha nem pensava numa coisa dessas. Imagine o que diria, como ficaria brabo o Painho Miguel, lá na terrinha, se ficasse sabendo que a Verginha....melhor nem pensar!
Os meninos, Pedro e Paulo - o pai chamara-os assim, simplesmente, sem tanta fantasia - contaram as poucas novidades e pouco se estenderam também sobre a viagem.
É uma sina dos nordestinos esta de viajar.
Quem nunca se aventurou no sul, passa a vida toda sonhando com uma viagem e arrependendo-se por não ter a coragem de encara-la.
Mas quem vem, depois de pouco tempo começa a pensar na volta, nem que seja por um mês ou dois;, qualquer que seja sua condição, mesmo que tenha que largar o emprego, deixar as suas poucas coisas amontoadas na casa de vizinhos, sujeitas a saque, a um incêndio, a uma inundação. Porque este é o preço que se paga para morar aqui, longe de todos, mas amontoados com qualquer um.
Voltam lá para cima, como as andorinhas, a cada dois ou três anos, refazendo a longa viagem, agora um pouco menos desconfortável, de ônibus – quanto demora? três dias, quatro dias? – para mostrar a todos as tralhas que compraram e para respirar um pouco daquele ar quente, abafado, poeirento, mas que para eles tem o melhor cheiro e o melhor gosto do mundo.
E nem bem chegaram já pensam em voltar, porque agora cada um deles já se dividiu em duas pessoas diferentes, uma agarrada lá e o outra sem poder mais sair daqui.
E estão destinadas a sentir sempre saudade, onde quer que estejam, porque estarão sempre longe de casa - de uma ou da outra.
A melancolia do nordestino é diferente da do negro; este continua escravo dos outros, numa terra estranha; o nordestino torna-se escravo da sua terra, morto de saudades, na sua própria casa.
Mas os meninos, Pedro e Paulo, não sentiam nada disso.
Os olhos esbugalhados, tentando assimilar tudo o que viam;
Os ouvidos custando a acostumar com o burburinho, o zumbido, os sons estridentes e assustadores da cidade grande;
Gente e mais gente, apressada e indiferente;
Casas e mais casas, que não dava para contar;
Carros, ônibus, motos, carrinhos; todos correndo, passando, ultrapassando;
Uma loucura.
Mas no fim, uma agradável loucura.
Quantas coisas para anotar, para contar, para comentar.
Era vida, como nunca tinham imaginado que pudesse existir.
Nenhuma das tantas descrições que tinha ouvido, lhe fazia justiça.
Será que numa hora qualquer todo este movimento pararia?
E todo o mundo ficaria estático, encantado, suspenso sobre o instante seguinte, retomando o fôlego, descansando, por meia hora que fosse, das frenética atividade diária?
Mas não: parecia que a noite ainda era mais movimentada que o dia.
Não havia outra palavra: uma loucura.
Próximo problema: morar.
Os meninos nem precisaram pedir.
Verginha falou com dois conhecidos, e apareceu um colchão de casal.
Para salvar espaço, de dia ficaria de pé, atrás do armário.
Assim caberia tudo no único quarto do barraco.
Aqui no sul, usamos palavras compridas, grandonas, que eles nem conhecem: solidariedade, solicitude, entendimento, condescendência prestatividade....
Eles só dizem: “puxa um pouco pra lá, encolhe um pouquinho aqui” . Pronto.
Nem foi preciso pedir. E eles ficaram bem acomodados.
Agasalhados pelo gesto, aquecidos pela simplicidade da atitude.
Sem precisar pedir “por favor” sem precisar agradecer. Apenas com o olhar.
Como fariam eles mesmos, para um outro irmão desconhecido
Ao cabo de uma semana, instruídos pelos vizinhos, os garotos conseguiram a carteira profissional. Verginha pagou a condução e as fotos.
Eles tinham tão pouco e precisavam economizar; não podiam gastar nada.
Pedro aventurou-se. Queria conquistar o mundo.
Verginha levou-o à Prefeitura, ele conheceu gente, criou seu próprio espaço. começou a fazer um favorzinho aqui, uma gentileza alí, acabou que em seis meses tinha-se tornado indispensável.
Ele também prestou concurso, foi aprovado graças às inúmeras dicas recebidas e foi em frente.
O salário era uma droga, mas o horário era moleza, tinha os sábados, domingos e feriados livres, assistência médica, cesta básica, vale transporte e um mês de férias – pagas!...
Nos momentos livres, com sacrifício, aprendeu a ler e escrever.
Sim, porque na escola só tinha aprendido a assinar seu nome – e assim era considerado alfabetizado.
Paulo foi por outro caminho: encontrou logo um serviço de servente.
Não era longe: uns dois quilômetros, talvez.
Só em dias de chuva e frio, incomodava um pouco.
Mas não era nada insuportável.
Trabalhava por produção. Quanto mais serviço, mais dinheiro.
Fazendo as contas, ganhava o dobro do salário que tinham prometido ao Pedro, na Prefeitura .
A comida era de graça, mas muito, muito ruim. Vivia com dor de barriga.
Mas não queria ir ao pronto socorro, para não perder tempo – e dinheiro.
Tudo era provisório; hoje tinha trabalho, amanhã podia não ter.
Vinha um caminhão e levava a turma até uma obra qualquer.
Tudo era feito na palavra; sem registro sem papéis, sem anotações.
Um “toma lá, dá cá” diário.
Ninguém parecia se importar com isso.
Se quiser ficar, tudo bem; se não, azar o seu.
Para cada vaga, tinha dez pretendentes. Fácil, não?
Paulo aprendeu três ou quatro ofícios ao mesmo tempo. Pedreiro, carpinteiro, eletricista, encanador, carregando peso de um lado para o outro, cansando o corpo até não poder mais.
O tempo foi passando.
Pedro foi melhorando na Prefeitura; começaram a notá-lo, a sentir sua falta, a pedir sua assistência.
Desvelava-se, sem pensar muito em resultados, apenas para ajudar, para colaborar.
Mas sabia que estava ganhando pontos.
O futuro diria se a aposta fora compensadora.
Paulo andava meio ressabiado; o trabalho ia e vinha; quando escasseava, ele acabava comendo os ganhos da semana anterior. Estava cada dia mais insatisfeito, mais nervoso, irritável, inconformado..
O relacionamento dos irmãos com a prima Verginha corria às mil maravilhas. Ninguém incomodava demais os outros, ajudavam-se mutuamente e continuavam na humilde vidinha de sempre, unidos mais do que nunca pelas vicissitudes que afetam cada um.
Aos sábados, de noitinha, iam ao forró. Ali falava-se e dançava-se nordestino; comia-se e bebia-se nordestino; vivia-se, respirava-se e matava-se saudades e vontades de voltar.
Até que uma tarde, voltando do trabalho, Paulo ao abrir a porta do barraco sentiu algo diferente; teria sido por causa do calor, ou de uma pinguinha tomada no caminho de casa, ou de um instinto desconhecido , subitamente acordado, do fundo do seu ser.
Verginha tinha chegado mais cedo e estava lá, suada, com pouca roupa sobre o corpo, descansando placidamente, atravessada na cama.
Paulo ficou um longo tempo parado, com a respiração curta, a observá-la.
Sentiu de repente uma vontade grande de tê-la entre os braços, um desejo crescente de beijá-la, um impulso irresistível de possuí-la.
Jogou-se sobre ela, como um lobo sobre um carneiro, com movimentos violentos e incontroláveis, tentando tirar-lhe a roupa, abrir-lhe as pernas, mordê-la, machucá-la.
Ainda antes que ela acordasse completamente, assustada, gritando, sacudindo-se e esperneando para liberar-se do ataque inesperado, a razão dele já tentava inutilmente pôr um freio a esse desejo irresponsável e doentio.
Mas Verginha foi rápida: agarrou com força os genitais de Paulo, apertou-os e manteve ambas as mãos crispadas sobre a carne, num gesto histérico de auto defesa, absolutamente sem controle.
Paulo liberou um grito horrível e desmaiou.
Poucos segundos depois, os vizinhos encontraram os dois, ele esvaindo-se em sangue, ela tremendo como vara verde, sentada na cama, mordendo a ponta de um lençol, totalmente fora de si.
Paulo ficou no hospital por dois meses. Tinha sofrido uma lesão grave e apesar da cirurgia, provavelmente não poderia mais ter filhos.
Mas a vergonha de ambos nunca teria fim. Ficariam marcados pelo resto da vida.
Ter um irmão gêmeo traz ao mesmo tempo vantagens e preocupações.
O outro sempre age como você mesmo agiria; mas você pode ver no outro os resultados daquela ação e perceber perfeitamente os erros feitos, seu peso, suas responsabilidades e conseqüências.
E acaba assumindo ao menos a metade da culpa, mesmo que o autor real não tenha sido você.
Assim, Pedro perguntou-se por semanas a fio, se ele corria o mesmo perigo de agir mal, que tinha sofrido o Paulo.
Se ele conseguiria parar, reagir, pensar, manter-se no controle.
Ou se ele também poderia se transformar de repente num animal, como tinha acontecido com seu irmão.
Os dois tinham agora mais motivos para perderem um equilíbrio construído por anos.
Pedro era agora o bonzinho, o modelo, o funcionário bem sucedido.
Ele, Paulo, era o pária, o servente de pedreiro, o marcado.
Estavam irremediavelmente afastados, distantes, em posições irreconciliáveis .
Verginha também custou a voltar ao equilíbrio.
Acordava de noite, suada e ao mesmo tempo tremendo de frio, revivendo com horror aquela tarde.
A psicóloga da Prefeitura conseguiu aos poucos convencê-la que não tinha acontecido nada de muito grave.
Apenas uma tentativa de estupro por parte de um amador, que por sorte tinha falhado.
De resto, na favela aconteciam diariamente coisas piores; atos simples adquiriam importância enorme; uma simples briga levava facilmente duas vidas: um morto, um preso. Um furto descoberto trazia uma surra e dias de hospital.
Portanto, um quase-estupro não significava nada e logo foi esquecido.
Passou um bom tempo. Anos, diria. Tudo parecia continuar igual. Mas as coisas pioravam . As pessoas custavam mais para chegar sem fome ao fim do mês; furtar alguma coisa na padaria ou no supermercado – fora da favela, porque dentro seria impossível manter uma atividade qualquer – tornara-se rotina. Havia mães que pediam para as crianças pegarem alguma coisa na venda – e elas iam, espertas, ligeiras, atentas; se fossem descobertas, levavam uma surra dos empregados da loja e depois, uma outra em casa. Para aprender a ser vivo – diziam......
Naquele tempo todo, os irmãos pouco falavam.
Haviam perdido simplesmente aquela alegria, aquela vontade de ver, de saber, que os tinha trazido à cidade grande. Paulo chegou a pensar seriamente em voltar. Mas seria uma declaração de incompetência, um reconhecimento da derrota, que ele não poderia aceitar.
E finalmente o destino voltou a decidir por eles. Todas as crianças da favela (umas trinta, talvez) ficaram doentes. Febre, vômitos, dor de barriga.
Água ruim, diziam os enfermeiros (médico nenhum teria coragem de entrar no favelão)
Passavam hidrosteril para pingar na água, e pastilhas de desinfetante intestinal. Uma a cada três horas – diziam. E iam embora.
Na favela, cada um cuida de todas as crianças. Os pais saem para trabalhar de madrugada e voltam de noite, com tudo escuro como breu. As crianças são filhos de todos, responsabilidade de todos. De ninguém em particular. Doentes, elas ficavam largadas, sem vontade de brincar, no sol, no vento. Ninguém cuidando deles.
Pedro, Paulo e Verginha entenderam que a situação não podia continuar assim.
Quase sem comentar, sem falar, resolveram que estava na hora de tomar uma decisão.
Paulo, com a sua prática no canteiro de obras, como pedreiro, carpinteiro, eletricista, encanador, desmontou três velhos barracos abandonados e os transformou em um grande salão. Não era confortável mas prático.
Pedro, com sua capacidade de convencer as pessoas, conseguiu uma doação de caminhas e outros móveis velhos, que couberam perfeitamente no salão.
Verginha, com seu jeitinho feminino, enfeitou, complementou, arrumou tudo o que podia.
As crianças encontraram um lar. A água potável foi providenciada pela Prefeitura.
Havia tanta coisa para fazer, tantas tarefas a cumprir, tantas preocupações, que não foi difícil, aos três, esquecer qualquer desavença e se dedicar de corpo e alma a essas tarefas importantes, em harmonia; e para lembrar os velhos tempos, quando tudo começou, a creche tomou um nome: “Côco verde” .