Doença de Chagas e a assistência de enfermagem: uma revisão do papel do enfermeiro na gestão do agravo.

Por Raone Sacramento | 23/04/2018 | Saúde

INTRODUÇÃO

 

A Doença de Chagas é uma antropozoonose de elevada prevalência e expressiva morbimortalidade. Exibe curso clínico bifásico, tendo uma fase aguda (clinicamente aparente ou não) e uma crônica, que pode se manifestar nas formas indeterminada, cardíaca, digestiva ou cardiodigestiva (BRASIL, 2016). Tem como agente etiológico o protozoário Tripanosoma cruzi (T. cruzi), o qual tem como vetor os insetos triatomíneos conhecidos como barbeiros (CHAGAS, 1909).

A doença é uma das mais prevalentes e negligenciadas nas Américas e mundo. Sua incidência anual varia de 28.000 a 56.000 casos novos, com 10.000 a 14.000 mortes anuais, afetando cerca de 6 – 11 milhões de indivíduos com 65 a 100 milhões de pessoas em risco (TAPIA-GARAY et al., 2018).

A natureza endêmica da infecção pelo T. cruzi tem sido associada a vários modos de transmissão. Como a via oral, insetos vetores, transfusão de sangue, transplante de órgão, e transmissão acidental em hospital e laboratórios de pesquisa, todos esses meios contribuem para a prevalência da infecção exógena na população humana. Além disso, a transmissão transplacentária, da mãe para o feto, é a única forma endógena atualmente reconhecida de infecção (ARAUJO, 2017).   

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), no Brasil cerca de 1,1 milhão de pessoas estão infectadas pelo T. cruzi, o que representa uma das maiores frequências da doença no mundo. Isto tem relação com o desenvolvimento de atividades antrópicas de desmatamentos e ocupações de áreas ambientais, o que reduz as fontes naturais de alimentação e abrigo dos triatomíneos. No país, a maioria dos casos da doença encontra-se em estágio crônico, enquanto, a doença de Chagas Aguda (DCA) tenha ocorrido de maneira expressiva, geralmente, relacionada ao consumo de alimentos contaminados. A região amazônica é historicamente tida como endêmica para DCA (SOUSA JUNIOR, 2017).

Diante desse cenário, um dos maiores desafios para o controle da doença de Chagas é identificar os indivíduos com a forma indeterminada e promover maior estreitamento com o serviço de saúde, uma vez que são fontes potenciais de transmissão do T. cruzi e que podem morrer sem o diagnóstico da doença (CAPUANI et al., 2017). Além deste aspecto, a promoção de ações que visem à prevenção da doença constitui principio básico para a diminuição da incidência.

Portanto, a atuação preventiva do Enfermeiro constitui peça chave para a proteção da saúde das populações que apresentam maior risco de serem infectados, bem como a identificação oportuna daqueles que, possivelmente, apresentam a forma indeterminada incidirá de forma drástica sobre a elevada taxa de morbimortalidade.

METODOLOGIA

Trata-se de uma revisão integrativa da literatura sobre a atuação do enfermeiro na prevenção e cuidados dos casos da doença de Chagas.  As etapas da elaboração da presente revisão foram as seguintes: estabelecimento da questão de pesquisa; definição de critérios de inclusão e exclusão de artigos (seleção da amostra); análise dos artigos, apreciação dos resultados e discussão e finalização da revisão (MENDES; SILVEIRA; GALVÃO, 2008).

Foi elaborada a seguinte questão norteadora: “Qual o papel do enfermeiro na prevenção e na assistência aos casos da doença de Chagas?”.

Para a seleção dos artigos foram utilizadas as seguintes bases de dados, a saber: Lilacs (Literatura Latino-americana e do Caribe), MEDLINE (United States National Library of Medicine) e BDENF (Base de dados de Enfermagem). Foram incluídos os artigos publicados em português, inglês e espanhol, que estavam disponíveis na integra, publicados nos últimos 10 anos. A pesquisa foi feita entre os meses de março a abril do presente ano.

Durante as buscas nas bases de dados foram utilizados os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) de forma combinada - Doença de Chagas and prevenção and enfermagem (Chagas Disease and Disease Prevention and Nursing), Doença de Chagas and controle de doenças transmissíveis and enfermagem (Chagas Disease and Communicable Disease Control  and Nursing), Doença de Chagas and prevenção and controle de doenças transmissíveis and enfermagem (Chagas Disease  and Disease Prevention and Communicable Disease Control  and Nursing). É importante ressaltar que a busca foi realizada utilizando tanto a combinação de descritores em português e inglês, objetivando minimizar os possíveis vieses no processo de seleção dos trabalhos.

Inicialmente, os artigos oriundos das buscas tinham seus títulos e resumos lidos, aqueles que tinham relação com o tema eram selecionados para leitura na íntegra. Conforme o critério de inclusão era atendido os manuscritos tinham seu título, autores, ano de publicação, tipo de estudo e revista catalogados em uma planilha do Microsoft Excel 2010, elaborada especificamente para a revisão. 

 

RESULTADOS

 

O total de trabalhos identificados nas bases, considerando as buscas com os descritores em português e inglês, foi de 64 artigos. Desse total, a partir da leitura do título e resumo foram excluídos 49 trabalhos, pois apresentavam foco de investigação diferente do interesse da presente revisão, ou por haver duplicidade tanto na pesquisa com os descritores em português e inglês, ou por terem sido publicados em anos anteriores a 2008. Foram lidos na integra 15 artigos, contudo, verificou-se que 10 não atendiam aos objetivos da revisão visto que não abordavam de forma utilitária a atuação do enfermeiro na prevenção e assistência a doença de Chagas.  Sendo assim, a amostra final é de 5 artigos, os quais estão presentes na LILACS (2 artigos), MEDLINE (2 artigos) e BDENF (1 artigo). A Tabela 1 revela maiores detalhes dos selecionados.

Tabela 1 – Artigos selecionados

Ano

Autores

Título

Tipo de Estudo

Local do Estudo

Foco da Investigação

Amostra

Revista de publicação

2013

Sánchez Negrette, O.; Monteros, M.C.; Davies, C.; Zaidenberg, M.O.

Diagnóstico de infección por Trypanosoma cruzi en Centros de Atención Primaria de Salta, Argentina

Quantitativo

Salta - Argentina

Conhecer a soroprevalência de infecção com T. cruzi

1647 pacientes

Acta bioquím. clín. latinoam;47(4): 701-707, dic. 2013. ilus, tab

2015

Blood-Siegfried, J.; Zeantoe, G.C.; Evans, L.J.; Bondo, J.; Forstner, J.R.; Wood, K.

The Impact of Nurses on Neglected Tropical Disease Management.

Qualitativo

Durham - USA

Enfermagem e Doenças Negligenciadas

0

Public Health Nurs;32(6): 680-701, 2015 Nov-Dec.

2010

Trivedi, M.; Sanghavi, D.

Knowledge deficits regarding Chagas disease may place Mexico's blood supply at risk.

Quantitativo

Cidade do México

Banco de Sangue e doença de chagas

9 bancos de sangue

Transfus Apher Sci;43(2): 193-6, 2010 Oct.

2010

Colosio, R.C.; Falavigna-Guilherme, A.L.; Falavigna, D.L.M.; Gomes, M.L.; Marques, D.S.O.; Braga, C.F.; Lala, E.R.P.; Araújo, S.M.

Conduta profissional e lacunas de conhecimento sobre doença de chagas na área de transmissão por vetores interrompida

Quantitativo

Maringá e Paiçandu/PR

Conhecimento dos profissionais de saúde em relação a doença de Chagas

487 profissionais

Arq. ciências saúde UNIPAR;14(1)jan-abr. 2010. ilus, tab

2009

Oliveira, D.A.D.; Lisboa, T.B.

Autocuidado de pacientes com doença de chagas: um enfoque educativo

Revisão de literatura

João Pessoa/PB

Autocuidado

0

Rev. bras. ciênc. saúde;13(2)maio-ago.

 

Em todos os artigos selecionados foi possível identificar a importância do enfermeiro na prevenção da Doença de Chagas e na assistência aos casos identificados da doença, demonstrando que um tratamento bem conduzido e iniciado precocemente aumenta a sobrevida e a qualidade de vida dos pacientes chagásicos (BLOOD-SIEGFRIED, 2015).  

Dentro da saúde, a educação em saúde realizada pela enfermagem é primordial na condução do tratamento desde paciente.  Neste sentido, é essencial que o enfermeiro promova o conhecimento do autocuidado com ênfase nas transformações ocorridas no corpo do paciente, para que este consiga compreende-las e monitorá-las, resultando numa melhor qualidade de vida, tornando este paciente autoconfiante e empoderado, já que do contrário, a falta de conhecimento aliado à sintomatologia da Doença de Chagas, pode amedrontar os pacientes, favorecendo hostilidade e repugnância (OLIVEIRA, D.A.D.; LISBOA, T.B., 2009). 

Para melhor manejo e cuidado do paciente chagásico, é indispensável que os profissionais de enfermagem conheçam os meios de transmissão da doença. Os estudos evidenciaram os diferentes meios de transmissão da doença de Chagas, seja via oral, por insetos e vetores, transfusão de sangue, transplante de órgão, transplacentária ou mesmo por transmissão acidental em hospital e laboratórios de pesquisa (ARAUJO, 2017; SÁNCHEZ, MONTEROS, DAVIES 2013; BLOOD-SIEGFRIED, 2015).  

Por isso, é primordial que os meios de transmissão da doença sejam reconhecidos pelos profissionais de saúde e medidas de proteção e prevenção da doença sejam adotados. Porém, um estudo publicado no México aponta que na cidade do México podem ocorrer falhas na análise do sangue do doador já que a seleção é direcionada por meio de questionário realizado por enfermeiros, os quais 80% responderam de forma incorreta a, pelo menos, uma das três questões de fatores de risco do doador, o que pode desencadear erros. Neste contexto, os autores sugerem que em vez de usarem apenas a triagem, seria interessante que os mesmo utilizassem testes laboratoriais de rotina para análise de todo o sangue doado, a fim de evitar iatrogenias (TRIVEDI, M.; SANGHAVI, D. 2010).

Na Argentina, Sanches e seus colaboradores apontaram doença de Chagas como um problema de saúde pública evidenciando a importância de estratégias na detecção precoce e tratamento. Por isso, de acordo com eles, o uso de equipamentos para coleta de sangue capilar e preservação de glicerina (SEROKIT) nos Centros de Atenção Primária à Saúde, na cidade de Salta, se constitui como uma ótima estratégia para posterior detecção de soroprevalência da infecção de Trypanosoma cruzi em unidades que não possuem laboratório próprio já que o mesmo preserva amostras para posterior diagnóstico, se mostrando eficaz e resolutivo (2013).

A preocupação com a promoção da saúde, prevenção, detecção precoce e tratamento da doença de Chagas não se restringe apenas aos países endêmicos, De acordo com Blood-Siegfried e seus colaboradores, embora as Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs) sejam endêmicas nas nações em desenvolvimento na África, Asia, América do Sul e Central, as mesmas estão ressurgindo em países desenvolvidos, e portanto é primordial conscientização dos profissionais de saúde para um diagnóstico precoce, especialmente daqueles com a forma indeterminada (2015).

Tendo em vista a importância da detecção e tratamento precoce da Doença de Chagas, um estudo realizado em Maringá buscou verificar a diferença de comportamento e conhecimento dos profissionais de saúde, incluindo médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde (ACS). E apesar de o Brasil ser um país com um número importante de casos desta patologia, este estudo mostrou uma porcentagem considerável de profissionais de todas as categorias com dúvidas sobre tratamento, reconhecimento de mecanismos de transmissão, triatomíneos e envio da notificação oficial da presença de insetos, testes para confirmação do diagnóstico, tratamento etiológico, e prognóstico da doença, principalmente entre os ACS que são o principal elo entre as unidades básicas e os pacientes, se constituindo como um grave problema (COLOSIO, R.C. et al, 2010).

CONCLUSÃO

É possível perceber que atuação do enfermeiro na prevenção e controle dos casos da doença de chagas é primordial, uma vez que o profissional muitas vezes é o responsável por fazer a interlocução entre o usuário e o serviço de saúde, promovendo maior estreitamento na relação. Desta forma, é essencial que os profissionais de saúde estejam treinados para receber este paciente, facilitando a acessibilidade aos serviços de saúde, oportunizando o acesso à informação, fomentando o autocuidado e a promoção da saúde.

Os enfermeiros, bem como a equipe de enfermagem, passam a ser referências técnicas para os usuários e, consequentemente, poderão ter maior facilidade no desenvolvimento do trabalho preventivo bem como perspicácia clínica na identificação dos potenciais portadores da forma indeterminada. Atuando de forma programática e não mais pontual.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, P.F. et al. Sexual transmission of American trypanosomiasis in humans: a new potential pandemic route for Chagas parasites. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, [s.l.], v. 112, n. 6, p.437-446, jun. 2017.

 BLOOD-SIEGFRIED, J. et al. The Impact of Nurses on Neglected Tropical Disease Management. Public Health Nursing, [s.l.], v. 32, n. 6, p.680-701, 17 set. 2014.

CAPUANI, L. et al. Mortality among blood donors seropositive and seronegative for Chagas disease (1996–2000) in São Paulo, Brazil: A death certificate linkage study. Plos Neglected Tropical Diseases, [s.l.], v. 11, n. 5, p.1-14, 18 maio 2017.

CHAGAS, C. Nova tripanozomiaze humana: estudos sobre a morfolojia e o ciclo evolutivo do Schizotrypanum cruzi n. gen., n. sp., ajente etiolojico de nova entidade morbida do homem. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, [s.l.], v. 1, n. 2, p.159-218, ago. 1909.

COLOSIO, R. C. et al. Professional conduct and knowledge gaps concerning chagas disease in interrupted vector-borne transmission area. Arq. Ciênc. Saúde UNIPAR, v. 14, n. 1, p. 3-9, jan./abr. 2010.

MENDES, K.S.; SILVEIRA, R.C.C.P.; GALVÃO, C.M. Revisão integrativa: método de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem. Texto & Contexto - Enfermagem, [s.l.], v. 17, n. 4, p.758-764, dez. 2008.

NEGRETTE, O.S. et al. Diagnosis of Trypanosoma cruzi infection in Primary Public Health Centers of Salta, Argentina. Acta bioquím. clín. latinoam. v. 47,  n. 4, p. 701-7, dez. 2013.

OLIVEIRA, D.A.D. LISBOA, T.B. Autocuidado de pacientes com doença de chagas: um enfoque educativo. Rev. Br. Ciência da Saúde, v. 13, n. 2, p. 97-102, 2009.

SOUSA JÚNIOR, A.S. et al. Análise espaço-temporal da doença de Chagas e seus fatores de risco ambientais e demográficos no município de Barcarena, Pará, Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, [s.l.], v. 20, n. 4, p.742-755, dez. 2017.

TAPIA-GARAY, V. et al. Assessing the risk zones of Chagas' disease in Chile, in a world marked by global climatic change. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, [s.l.], v. 113, n. 1, p.24-29, jan. 2018.

TRIVEDI, M.; SANGHAVI, D. Knowledge deficits regarding Chagas disease may place Mexico’s blood supply at risk. Transfusion And Apheresis Science, [s.l.], v. 43, n. 2, p.193-196, out. 2010.